Tema: Em busca de espaço – o deficiente na igreja e na sociedade
Explicação do tema:
Numa sociedade em que se valoriza a pessoa pelo que ela produz, está implícito o conceito de que somente os aptos e normais é que têm direito ao reconhecimento pleno do seu valor como pessoa. Quando numa família existe uma pessoa deficiente, a tendência é escondê-la da sociedade. Alguns familiares lamentam a sua sorte, culpam os pais, o médico, a parteira, a falta de experiência para o trabalho, a falta de consideração dos outros. Outros ainda empurram a culpa para Deus e se perguntam: Por que Deus tinha que fazer isto justamente co-nosco?
A sociedade é tão ou mais incapaz do que tais pessoas de aceitar os deficientes e reconhecer a sua dignidade como criaturas de Deus.
Que espaço a comunidade cristã dá ao deficiente e que transformações o Evangelho do Reino quer produzir em igreja e sociedade com vistas ao mesmo?
Texto: Mateus 4.23-25
Autor: Lothar Carlos Hoch
l – Um caso concreto
Tenho algo a dizer. Sinto uma vontade muito grande de comunicação. Sei que a minha experiência é positiva. Por que, então, não tentar um diálogo?
Lembro-me do acidente do qual resultou minha paraplegia. Na época eu tinha 26 anos de idade, casada, mãe de quatro filhos. Vida inteira pela frente.
Se naqueles três meses de hospital eu tivesse ouvido uma paraplégica ou lido algo escrito por uma paraplégica, contando sua experiência, eu me sentiria mais segura para enfrentar a súbita mudança de perspectivas de vida que se me apresentava. Faltou a oportunidade de um diálogo. Hoje sou eu que me proponho a dialogar com quem quer que seja.
Naqueles três meses, recebi palavras de conforto de todo tipo! Uns diziam que eu podia dar graças a Deus que minha cabeça ainda funcionava. Outros tentavam me convencer do quanto as cadeiras de roda, hoje em dia, são eficientes. Não faltava quem apelasse para a religião: Deus nos quer muito bem, diziam, para nos mandar tanto sofrimento. Não faltavam os que davam conselhos ao meu marido: Agora o seu casamento tornar-se-á uma amizade fraterna e você terá outra mulher fora do lar.
Ousaram dizer que ainda bem que fora eu quem ficou paralítica, pois, afinal, minha família tinha posses. Realmente engoli muitos sapos.
Conheci uma psicóloga que me disse: Quando uma pessoa fica paralítica, o normal é desesperar-se, sentir muita raiva da vida, para, enfim, superar a situação. Eu, no entanto, reprimi a raiva e pensei: melhor eu paralítica do que meus filhos, meu marido. Mas a raiva veio: eu não era santa nem pretendo ser. E pior: a raiva veio e não se foi embora. Convivem dentro de mim, raiva, amor, ódio, coragem, desprezo, inveja, orgulho. Sei que carregarei esta bagagem a vida inteira. Tendo que ser o fiel da balança de dois pratos muito loucos: de um lado meu amor à vida e do outro, a raiva por ser diferente.
Não sou a mulher biônica, nem a mulher maravilha. Sou a mulher comum. Não fui atrás de milagres. Não foi Deus quem me escolheu para ser paralítica. Tampouco será ele quem me livrará da paralisia. Poderão dizer: a fé remove montanhas. É verdade. Milagre é o operário sobreviver com o salário mínimo. Para mim, o milagre maior é viver o dia-a-dia. É vencer cada dia.
Se você se sente inválida, você é inválida. Se você não se sente inválida, você não o é! (Leonor R. D. Corrêa de Oliveira. Conselhos práticos de uma paraplégica, p. 731)
II – Ampliando a questão
O termo pessoas deficientes refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas e mentais. (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DAS PESSOAS DEFICIENTES. Resolução 3447, de 09.12.1975).
Como se pode constatar pela declaração acima, a deficiência é uma questão muito mais ampla do que costumeiramente se presume. Ela não se limita apenas a alguns casos considerados mais graves e que, à primeira vista, chamam atenção das pessoas. O termo deficiência refere-se a uma grande variedade de situações, todoas elas merecedoras da mesma atenção.
Em termos globais, faz-se uma distinção entre deficiência mental e deficiência física. Uma pessoa com deficiência mental apresenta um desvio no que é considerado um desenvolvimento mental normal, ou, uma capacidade reduzida de interagir com o seu meio ambiente. O retardamento mental em crianças pode ter causas pré-natais (infecções transmissíveis através da mãe, uso de drogas ou ácool e fatores genéticos, p. ex., o mongolismo); causas perinatais (complicações no trabalho de parto); causas pós-natais (meningite, encefalite, fraturas do crânio, desnutrição). A deficiência mental em adultos pode resultar de lesões cerebrais em decorrência de acidentes, de tumores ou do uso de tóxicos. Deve ser mencionada ainda a arteriosclerose (deficiência de irrigação sanguínea no cérebro), frequente entre pessoas idosas.
As deficiências físicas têm um espectro amplo que vai desde a leve limitação dos movimentos de um braço, passando por um distúrbio visual ou auditivo, até um caso grave de paraplegia (paralisia dos membros inferiores) ou de tetraplegia (paralisia dos membros inferiores e superiores).
Além dos casos mencionados, precisam ser lembrados os milhares de deficientes, mentais e físicos, que resultam de catástrofes naturais (p. ex. terremotos e enchentes), os mutilados de guerra, a respeito dos quais sequer existem estatísticas confiáveis, os que ingerem medicamentos (p. ex. a talidomida) que posteriormente se revelam como causadores de males irreparáveis, etc.
A Organização Mundial de Saúde estima em 400 a 450 milhões o número de pessoas deficientes no mundo inteiro (dados do Conselho Mundial de Igrejas, in: Partners in Life, p. 6s). Esses dados incluem pessoas com capacidade reduzida de desenvolver atividades maiores, tais como: trabalhar, cuidar de si mesmas, zelar pela casa, participar de atividades escolares, locomover-se sem a ajuda de terceiros e fazer contatos sociais sem maiores dificuldades.
Estudos sobre o assunto revelam que existe uma relação direta entre deficiência e problema sócio-econômico-culturais, tais como pobreza, falta de oportunidade de estudo e trabalho, condições desfavoráveis de trabalho, isolamento geográfico, discriminação, fatores étnicos e religiosos. Os índices mais elevados de deficiência física e mental são encontrados entre as camadas mais desprivilegiadas da população, resp. em países subdesenvolvidos.
No Brasil se estima em 12 a 13 milhões o número d,e pessoas deficientes, o que corresponde a aproximadamente 10% da população. É evidente que também no Brasil são as camadas empobrecidas, especialmente em áreas periféricas de grandes cidades, as mais fortemente atingidas. A situação da saúde pública é calamitosa. Doenças há muito consideradas sob controle estão se alastrando em proporções epidêmicas em todo o país, entre elas, a febre amarela, a poliomielite, a tuberculose, a lepra, o mal-de-chagas, o tifo, a malária e outras. Muitas dessas doenças causam deficiências permanentes.
A cada dia que passa cresce o número de pessoas, principalmente de crianças recém-nascidas, que apresentam marcas indeléveis da poluição ambiental. O número de crianças que nascem com deficiências monstruosas é alamante. Cubatão (SP) é conhecida em todo o mundo como símbolo da perversão ecológica e do descaso das empresas e dos órgãos públicos responsáveis. Os acidentes de trabalho, devido à falta de segurança no emprego, no Brasil, atingem um dos índices mais elevados do mundo. Acrescentem-se a isso as deficiências decorrentes das criminosas condições de insalubridade, em meio às quais milhares de brasileiros são obrigados a trabalhar.
O Brasil se situa entre os países onde ocorrem os mais elevados índices de acidentes de trânsito, os quais, além de vítimas fatais, causam anualmente milhares de deficientes. Despontamos também como uma das nações que tom a lamentar um dos maiores números de acidentes com produtos agrotóxicos, muitos deles deixando sequelas físicas e mentais permanentes. Não podemos deixar de mencionar também o exército de crianças subnutridas que cresce a cada ano nesse país. A fome é hoje a maior causa de deficiência física e mental no Brasil. São milhões as crianças brasileiras que, devido à subnutrição, sofrem danos irreparáveis sobre o desenvolvimento do organismo, especialmente sobre o cérebro, de forma que jamais conseguirão absolver um grau de escolaridade mínima, suficiente para competir em condições iguais no mercado de trabalho.
O atendimento aos deficientes, no Brasil, é extremamente difícil. São muitos os obstáculos que eles e seus familiares enfrentam para conseguirem assistência médico-psicóloga, oportunidade de estudar e de trabalhar e de se integrarem na vida social. As instituições de assistência e amparo aos deficientes, como a APAE, sobrevivem de contribuições espontâneas dos associados e de campanhas para angariar fundos. O secretário da APAE de Porto Alegre, Paulo Sérgio Leite Beccon, disse que as verbas liberadas pelo governo, apesar da intenção, não passam de uma gota d'água no oceano. Os convênios da LBA beneficiam apenas uma pequena parte dos necessitados. Sobrevivemos de teimosos, disse Beccon (entrevista a ZERO HORA de 02.03.86, p. 34).
Ill – Perspectiva teológica, a partir de Mt 4.23-25
Numa abordagem temática interessa o modo como a Escritura como um todo trata de um determinado tema. Assim sendo, o texto proposto é a principal, mas não a única, fonte de referência bíblica.
Mt 4.23-25 é um sumário que resume, em termos gerais, a atividade de Jesus (cí. sumários semelhantes em Mc 1.32-34 e Lc 6.17-19). Faz parte desse género literário a generalização: o trazer de todos os doentes e a cura de todas as enfermidades (v. 23s). Igualmente faz parte desse género literário o fato de não se entrar em detalhes. Os exemplos concretos, a comprovação do que aqui é sumariamente anunciado virá depois. Destacados são apenas os casos de especial gravidade: os possessos de demônios, os lunáticos e os paralíticos (v. 24).
Jesus veio como o que prega e o que cura. Na verdade, o pregar se completa no agir. Por isso o evangelista apresenta inicialmente o Messias da palavra, nos capítulos 5-7 (Sermão do Monte) e depois o Messias da ação, nos capítulos 8-9. O nosso texto se constitui efetivamente de uma introdução programática aos dois blocos que estão para vir. Desse modo, as curas que aqui são anunciadas serão exemplificadas depois:
Possessos: Mt 8.28-34; 9.32-34; 12.22-32;
Lunáticos: Mt 17.14-21 (no caso dos lunáticos, trata-se, na verdade, de epiléticos, doença cujos sintomas se atribuía à influência da lua (cf. os sintomas em Mt 17.15 e em Lc 9.39,42));
Paralíticos: Mt 8.5-13 e 9.1-8.
A atividade de pregar e de curar são manifestações da vinda do Reino.
Eis porque no v. 23 se fala em pregar o evangelho do reino e em curar toda sorte de doenças e enfermidades. O fato de os cegos verem, os coxos andarem, os leprosos serem purificados, os surdos ouvirem, os mortos ressuscitarem e de ser pregado o evangelho aos pobres (Mt 11.5) é sinal de que Jesus é aquele que estava para vir. Em Lucas essa relação entre a atividade terapêutica de Jesus e a vinda do reino torna-se mais clara ainda: Se eu expulso os demônios pelo dedo de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós (Lc 11.20).
Na hora da atividade de Jesus se destaca a atenção que ele dispensa aos doentes e aos que sofrem deficiências, quer físicas quer mentais. Passagens como Mt 9.6 (levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa) mostram que Jesus não só curava os paralíticos, como também os reintegrava no seu convívio familiar. Fato idêntico verificamos em Lc 9.42, em relação a um menino epilético (Jesus repreendeu o espírito imundo, curou o menino e o entregou a seu pai). Jo 5.1 ss mostra o quadro de desolação a que estavam expostos os deficientes no mundo antigo. Fala-se ali de um tanque, junto ao qual jazia uma multidão de enfermos, cegos, coxos, paralíticos esperando que se movesse uma água considerada milagrosa. Mostra esse texto igualmente a sensibilidade de Jesus em atentar para um homem que há trinta e oito anos estava chegando tarde, pois não tinha quem o levasse ao tanque. Alguém que não está em condições físicas e mentais de competir com os demais encontra apoio em Jesus.
A questão da deficiência levanta igualmente problemas de natureza teológico-sistemática bastante difíceis. Complementando as considerações bíblico-exegéticas, reporto-me rapidamente a três desses problemas:
a) A relação entre deficiência e pecado. No mundo antigo, doença e deficiência eram entendidos como castigo de Deus por pecados cometidos. Se esses pecados não podiam ser atribuídos à própria pessoa deficiente, como no caso de uma deficiência de nascença (cf. Jo 9.1ss), procurava-se atribuí-los aos pais ou a gerações anteriores. Lutero se colocou nessa mesma tradição quando, ao final dos dez mandamentos, deu destaque a Ex 20.5: Eu sou o Senhor teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem. Muitos dos nossos membros, particularmente os que têm presente o Catecismo Menor, poderão estar inclinados a estabelecer essa relação de causa e efeito entre deficiência e pecado. É muito comum que a pessoa deficiente ou aquela que tem deficientes na sua família procure por uma explicação para esse fato.
A relação causal entre o sofrimento, respectivamente deficiência e pecado, se mantém viva até hoje entre os espíritas. O espiritismo entende que o sofrimento seja uma forma de expiação dos pecados cometidos em encarnações anteriores.
É marcante que Jesus, em Jo 9.3, não entra nessa linha de argumentação. Admitir uma relação casual simples e direta entre pecado e deficiência seria permanecer dentro do esquema da lei do talião, ou seja: assim como tu ages com Deus, ele age contigo ou com alguém da tua família ou descendência. Jesus quebra o esquema da lei com o Evangelho. Enquanto a lei procura por aquilo que incrimina a pessoa, o Evangelho proclama aquilo que Deus pretende com ela (cf. Voigt, p. 327).
b) A pergunta pela teodicéia. A deficiência frequentemente levanta perguntas teológicas e existenciais de difícil resposta. Como explicar o primeiro artigo do Credo Apostólico (Creio que Deus criou a mim e a todas as criaturas), p. ex. no ensino confirmatório, a alguém que nasceu sem braços? Se Deus é o criador de tudo que existe, por que ele cria pessoas deficientes? E se ele quer que a criação seja perfeita, sendo todo-poderoso, por que não a transforma? Como explicar a uma pessoa deficiente que, apesar de tudo, ela é imagem de Deus?
Na verdade, não existem respostas fáceis para perguntas dessa natureza. O problema da teodicéia é tão antigo quanto a própria teologia e a filosofia. Quem aborda a temática da deficiência não pode, por isso, fugir de tais perguntas e nem tampouco oferecer respostas baratas. A pessoa deficiente costuma refletir profundamente sobre essa questão. A única pista que a Escritura oferece é a cruz de Cristo. E esta tem uma lógica especial, a qual tentarei esboçar a seguir.
c) A cruz como paradigma da existência humana. Como centro da teologia evangélica, a cruz é o signo da salvação e, simultaneamente, o paradigma da existência humana à espera da redenção. Neste mundo à espera da sua verdadeira destinação, a deficiência não é a excessão mas a regra. Toda a criação a um só tempo geme e suporta angústias até agora (…) aguardando a redenção (Rm 8). Estamos inclinados a entender que o normal seja o sadio, o forte e o perfeito. Com isso colocamos um padrão que desclassifica o fraco, o doente e o carente como sendo o anormal. Não nos apercebemos do quanto todos dependemos uns dos outros.
É importante ter presente que Jesus não curou e não eliminou todos os males da face da terra. Ele próprio sujeitou-se ao sofrimento, suportando até ao fim o caminho da cruz. Eis porque a pregação de um Deus glorioso e de um Jesus milagreiro não só é questionável sob o ponto de vista teológico como também pode despertar falsas expectativas entre pessoas deficientes.
Ao pedido do apóstolo para que fosse libertado do espinho na carne (há quem suspeite que ele sofria de alguma forma de deficiência), o Senhor responde: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza (a Co 12.8-9). Isso significa que, também após a Páscoa, o senhorio de Cristo permanece o senhorio do crucificado que pode nos conduzir por caminhos contrários aos de nossos anseios e necessidades. O batismo aceito e confirmado em fé é a ordenação para o seguimento a Cristo na sua via crucis. Ao nos defrontarmos com a deficiência, própria ou alheia, nos defrontamos, na verdade, com o próprio Cristo – com a sua cruz e igualmente com a esperança que ela representa.
IV – Considerações de natureza psico-social
Helen Keller afirmou certa vez: A pessoa com grave incapacidade nunca fica sabendo quanta força tem reservada até o dia em que é tratada como ser humano normal e encorajada a decidir sua própria vida (Companheiros, p. 15). Essa afirmação demonstra o quanto questões de ordem psicológica que, por sua vez, são condicionadas por fatores sociais, influem sobre a pessoa deficiente. O contexto familiar e social imediato e a macro-estrutura da sociedade são decisivos so-foro o modo como o deficiente vive a sua situação. As palavras de Leonor Corrêa do Oliveira, transcritas bem no início, igualmente refletem esse fato.
Hoje ninguém mais contesta que vivemos em uma sociedade que valoriza as pessoas, em grande parte, não só pelo que elas produzem, mas também pelo que elas ostentam em termos de poder, de capacidade física e intelectual e de realizações. Só os primeiros, os vitoriosos são admirados e prestigiados. A heróica luta dos deficientes que, à mercê de toda sorte de adversidades, conseguem encontrar uma forma de não sucumbir, dificilmente faz manchetes. Por que se haveria de dar emprego a um deficiente num país como o Brasil, com um contingente tão grande de mão-de-obra ociosa constituído de pessoas normais?
A falta de oportunidade de estudo e de emprego se acrescenta a incapacidade da maioria das pessoas de se relacionar duma forma natural e sadia com um deficiente. A imagem estranha de um corpo mal-formado causa uma sensação de insegurança sobre muitos não-deficientes. Ela não cabe dentro dos padrões daquilo que se entende como sendo um ser humano normal. Duma deficiência física, não raro, se conclui uma anormalidade da totalidade da personalidade. Além disso, o deficiente não sofre apenas com a sua deficiência, ele carrega consigo também o estigma da discriminação. As duas coisas combinadas o condenam ao isolamento social e frequentemente a privações materiais.
Uma pesquisa feita na Alemanha por um grupo de apoio ao deficiente revelou que:
91% dos entrevistados não sabem como se comportar diante de uma pessoa deficiente;
56% não gostariam de morar numa mesma casa com uma pessoa deficiente;
63% entendem que uma pessoa deficiente deveria viver em uma instituição apropriada (cf. O. Seeber/Y. Spiegel, p. 33).
Não tenho conhecimento de levantamentos semelhantes aqui no Brasil. Mas, a julgar pela visível incapacidade da maioria das pessoas em conviver com pessoas deficientes, entendo que os resultados aqui não seriam muito diferentes.
Não é por acaso que mesmo os familiares de uma pessoa deficiente acabem por se isolar do convívio com outras pessoas. Porém, onde também esse último reduto de aceitação é destruído, o círculo vital do deficiente se reduz a níveis quase insuportáveis. Paulo Sérgio Beccon, já citado anteriormente, afirma que se a família não aceita o excepcional, está aniquilando qualquer possibilidade, principalmente das crianças, de terem alguma chance na vida e no meio social.
Intrinsicamente ligada às questões de ordem social e familiar está a questão psicológica. Quanta estrutura psíquica é necessária para que uma pessoa deficiente consiga manter uma relação de auto-estima consigo mesma, se ela, em cada contato e em cada olhar, sente uma onde de pena, desprezo ou perplexidade vindo ao seu encontro! Já ouvi muitas vezes da boca de pessoas deficientes que o que elas menos precisam é de compaixão. A compaixão humilha e arrasa a auto-estima. A sensibilidade nesse particular pode assumir dimensões tais que, mesmo alguém nutrindo um genuíno sentimento de amor e de afeto por uma pessoa deficiente, esta nunca se livrará completamente da desconfiança de que, bem no fundo, o que essa pessoa sente por ela é compaixão. Devido às experiências que vai acumulando ao longo da vida, ela tende a achar que não seja digna de ser amada.
Próximo à compaixão se situa a sensibilidade diante de manifestações de desprezo ou de deboche. Certa vez li a respeito de um menino com uma leve deficiência numa perna que, antes de iniciar a jogar futebol com seus colegas, os advertiu: Se alguém me chamar de aleijado, esse eu mato!
Pessoas deficientes não querem atitudes paternalistas e de super-proteção em relação a elas. Elas querem é oportunidades para poderem, elas mesmas, tomar as rédeas da vida em suas mãos, respeitadas as suas possibilidades e limitações. Mas, ao invés de continuar falando a respeito do assunto, prefiro deixar que uma pessoa deficiente o faça (Grande Sinal, p. 756ss):
– Não adianta bater teimosamente com a cabeça na porta irremediavelmente fechada. A questão é aceitar a realidade tal qual se apresenta e recomeçar a construir a vida com os instrumentos que ficaram e continuar a guerra com as armas que restaram (…) Antigamente eu enxergava muito bem, mas pouco ou quase nada via. Hoje, posso dizer que, embora nada enxergando, começo a ver um pouco melhor.,
– Trata-se de não deixar que ninguém faça por você o que você mesmo pode e deve fazer.
– A cruz que surgiu no caminho de Cristo (…) ele a transformou num instrumento de Salvação, até mesmo por aqueles que o crucificaram com ódio. À semelhança de Cristo, poderemos transformar as nossas cruzes em fonte maravilhosa de graça redentora para nós e para os outros.
V – Reflexões a caminho da prédica
Uma abordagem da temática da deficiência requer, antes de mais nada, que o pregador se dê conta das limitações da comunidade e da igreja, bem como das suas próprias limitações para falar adequadamente sobre o assunto. Nossa experiência pessoal e eclesial, pelo menos a nível de IECLB, é muito limitada no que concerne ao acompanhamento de pessoas deficientes e de seus familiares. O ano de 1981, declarado pelo ONU como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, está longe. Poucas foram as iniciativas concretas que daí resultaram. Aparentemente permaneceu-se no nível do discurso verbal. Ao retomar a temática, Proclamar Libertação pretende contribuir não apenas para que se aborde a questão do púlpito, mas para que surjam iniciativas concretas que propiciem a integração da pessoa deficiente no seio da comunidade.
A celebração de um culto sobre a temática da deficiência poderia ser uma dessas formas concretas, através das quais pessoas deficientes e seus familiares viessem a sentir um gesto de acolhimento e de integração. Um passo prévio a ser dado nessa direção poderia ser a constituição de um grupo de preparo conjunto do culto, do qual, na medida do possível, participariam também pessoas deficientes.
Uma ou outra pessoa deficiente poderá eventualmente até se dispor a assumir alguma tarefa dentro do próprio culto.
A questão-chave é a eclesiologia. Se em Cristo iodos os membros constituem um só corpo (1 Co 12), então não se poderá distinguir tanto entre membros normais e não-normais. Todos têm dificuldades que precisam ser encaradas e todos têm potencialidades que precisam ser aproveitadas para a edificação do corpo de Cristo. Dentro desse espírito, qualquer iniciativa comunitária deixará de ser uma ação com as pessoas deficientes e seus familiares. A Igreja de Jesus Cristo precisa tomar cuidado para não se dividir entre curadores e pacientes. Segundo Lutero, a Igreja é albergue e um hospital para doentes e carentes de tratamento (Vogelsang, p. 243).
Isso implica em que se deixe de ver no deficiente o outro, com o qual a comunidade se envolve por compaixão apenas. O deficiente é, isto sim, um irmão ou uma irmã que ajuda a comunidade a se defrontar com suas próprias deficiências.
Ao abordar o tema, seja numa pregação em culto, seja em outra oportunidade, dever-se-ia:
a) ajudar a comunidade a distinguir entre causas individuais (ou acidentais) e causas estruturais que levam à deficiência;
b) Ter a sensibilidade de abordar de forma adequada o problema do sentimento de culpa que frequentemente está presente entre os familiares de uma pessoa deficiente bem como a pergunta pela teodicéia;
c) evitar dois grandes perigos: 19) falar sobre a deficiência apenas em termos de macro-estrutura social, detendo-se em longas análises estruturais; 2°) lazer complicadas considerações de natureza teológico-dogmática. Ambas as questões, tanto a análise estrutural como a teológica, precisam estar presentes.
Mas elas não deveriam colocar em segundo plano os problemas e as ansiedades concretas dos ouvintes. A dimensão pastoral e poimênica precisa transparecer.
d) lembrar que Jesus, mesmo tendo curado a muitos enfermos, não curou sempre e nem a todos. Isso significa que a pregação não deveria criar artificialmente este tipo de expectativa. Ela precisa testemunhar essa possibilidade, lembrando que Deus age onde e quando lhe aprouver e que se pode contar com o seu poder. Também os recursos médicos bem como as orações e as ações da comunidade terapêutica podem ser instrumentos, através dos quais ele age.
e) pregar a cruz como o único lugar onde todos os mistérios insondáveis da vida humana se tornam compreensíveis e suportáveis (Companheiros, p. 16). O poder de Deus se revela na fraqueza.
f) indicar pistas que ajudem a comunidade a ensaiar passos concretos no, seu próprio meio que abram espaço para pessoas deficientes. Frequentemente a comunidade se sente motivada a fazer algo e não é ajudada a viabilizar esse propósito. O que fazer depende da situação e da criatividade da própria comunidade. Não obstante, indico algumas pistas: desafiar membros evangélicos a criar oportunidades de emprego para pessoas deficientes; promover encontros com professores e professoras no sentido de ajudá-los na sua dificuldade de integrar crianças deficientes na sala de aula; promover palestras e seminários (em âmbito ecumênico?) sobre o assunto, em colaboração com entidades ligadas ao trabalho com pessoas deficientes; examinar em que medida os templos e os lugares de reunião da comunidade oferecem condições físicas de acesso às pessoas deficientes; organizar grupos de estudo e reflexão sobre a questão da deficiência, animando seus integrantes a fazerem visitas a pessoas deficientes e a organizações que trabalham com deficientes.
VI – Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Jesus Cristo diz: Eu vim para que vocês tenham vida e a tenham em abundância.
2. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus, ao longo de nossa vida somos confrontados sempre de novo com pessoas que pensam e sentem de modo diferente de nós, – seja por que elas foram educadas de maneira diferente, seja por que elas fizeram experiências que as marcaram profundamente. Nós, de nossa parte, sabemos que somos todos irmãos e irmãs e que devemos aceitar a todos indistintamente. No entanto, quantas vezes, como indivíduos e como comunidade cristã, mostramos incompreensão e até mesmo rejeição para com os que são diferentes, quer pela sua forma de pensar, de se vestir e até mesmo pela sua aparência física. Perdoa-nos, Senhor, por isso e dá que consigamos integrar em nosso convívio e mesmo aprender com os que são diferentes de nós mesmos. Tem piedade de nós, Senhor!
3. Anúncio da graça: Aos que buscam o Senhor com sinceridade, ele consola dizendo: deixo-vos a paz, minha paz vos dou (Jo 14.27). Aos perversos, no entanto, o Senhor não concede paz (Is 57.21).
4. Oração de coleta: Senhor, na nossa celebração de hoje queremos lembrar especialmente as pessoas que sofrem de deficiências físicas e mentais. Para muitos a deficiência representa um fardo extremamente pesado para carregar. Elas se perguntam por que tu, ó Deus, permites que elas sofram. A nossa sabedoria é insuficiente para responder a isso. O que sabemos é que, não raro, queremos atribuir a ti a origem de males que nós mesmos provocamos. Ajuda-nos para que nesse culto consigamos articular nossas dúvidas e que encontremos formas de nos consolarmos uns aos outros. Por Cristo Jesus. Amém.
5. Leituras bíblicas: Levítico 19.9-18 e 2 Coríntios 12.7-10.
6. Temas para a oração de intercessão: Agradecimentos pela saúde própria. Lembrança da possibilidade de que cada um pode se tornar deficiente físico ou mental. Dependência mútua entre pessoas deficientes e pessoas normais. A escolha, por parte de Deus, das coisas fracas para envergonhar as fortes. Mencionar os mutilados de guerra e de catástrofes; os que são deficientes em consequência de acidentes de trânsito ou de trabalho; os deficientes de nascença; os deficientes devido à pobreza e à desnutrição. Lembrar os familiares de pessoas deficientes. Mencionar nossa própria incapacidade e deficiência de rios relacionarmos adequadamente com pessoas deficientes. Lembrar a cruz de Cristo como o símbolo do sofrimento solitário de Cristo e como sinal de esperança em meio às nossas privações. Incluir a tarefa que nós temos em ser solidários com pessoas deficientes.
VII – Bibliografia
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– REVISTA DO CEM (Centro de Elaboração de Material da IECLB). A Pessoa Deficiente, ano 4, cad. 2, São Leopoldo, 1981.
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