Tema: Tóxicos – exploração e dependência
Explicação do tema:
Tóxicos escravizam psíquica e fisicamente. Todos os tóxicos, entre eles também o fumo e a bebida alcoólica, fazem seus dependentes.
Tanto os tóxicos permitidos como os proibidos movimentam muito dinheiro, proporcionando lucros fantásticos a traficantes, fabricantes e cofres públicos.
Existem compromissos tácitos ou explícitos entre produtores, traficantes e fabricantes, e consumidores. Nesta interdependência alguns lucram, mas milhares perdem a vida.
Texto: Provérbios 24.10-14
Autor: Arzemiro Hoffmann
l – Drogas e Drogados
1. Situando o tema
É difícil delimitar o mundo das drogas, bem como determinar os seus inícios, uma vez que as possibilidades de as pessoas se realizarem nas sociedades ocidentais contemporâneas são cada vez mais reduzidas1. Para fazer frente a esta realidade hostil, a drogadicção constitui um dos mecanismos induzidos socialmente para aliviar as ansiedades geradas pelas frustrações afetivas2. É na vida urbana contemporânea que este problema é sentido com mais força; por isto as cidades se constituem nas sementeiras do comportamento tóxico.
Uso, no presente trabalho, o conceito de drogadicção, ou seja, a escravidão à droga, que não está restrita ao consumo de alguns tóxicos proibidos, mas, sobretudo, quero me referir a comportamentos e consumos que, mesmo sendo socialmente aceitos ou legalizados, não deixam de representar desvios de conduta: o álcool e o fumo em primeiro lugar, mas também o trabalho sem limite, o consumo de sedativos ou estimulantes, a ingestão desenfreada de alimentos, as perversões sexuais, o jogo ou os jogos que, em conjunto, constituem recursos socialmente aceitos e à disposição daqueles que tentam, por uma ou outra via, libertar-se, ao menos transitoriamente, da opressão que pesa sobre suas vidas, do vazio que subjaz como um perigo latente e constante no fundo de todas as suas ações cotidianas.3
2. Aspectos da realidade do mundo das drogas
Devido à amplidão do mundo dos comportamentos adictivos, necessito, na presente abordagem, limitar-me a alguns aspectos, para situar o assunto enfocado. Tenho por ponto de partida, minha experiência pessoal, a partir da criação do Centro de Recuperação de jovens drogados da Comunidade Evangélica de Porto Alegre. Foi no desafio concreto do jovem drogado que nasceu o categórico imperativo de desenvolver uma pastoral orientadora, adequada ao desafio proposto. Nossa experiência neste campo é interdisciplinar. Uma realidade tão abrangente como a realidade das drogas só pode ser adequadamente enfrentada quando estão presentes os aspectos mais centrais do problema. Nossa abordagem tem sido em cinco áreas: clínica (médica e psicológica), educacional, social, familiar e pastoral.
Como nosso trabalho está voltado para os jovens de baixa renda e seus familiares, e como o tratamento para alcoolistas e alcoólatras em Porto Alegre oferece bons programas, nós nos restringimos ao cuidado terapêutico de jovens dependentes de drogas e crianças com desvios de conduta e seus familiares. Não trato, por conseguinte, o problema do alcoolismo nesta abordagem a não ser de maneira indireta, conquanto se trata de um adicto que possui apenas algumas diferenças que o terapeuta precisa levar em conta.
3. Como encarar a realidade do drogado?
Fundamentalmente um drogado é um doente. É alguém incapaz de suportar ou organizar as suas angústias. É alguém que simplesmente não possui uma estrutura de vida suficientemente forte para achar um caminho de sobrevivência em meio às contradições cotidianas. O apego à alguma droga se constitui na busca de um caminho; antes de se constituir um delito, deveria ser considerado como um grito de socorro, é tentativa de escape para a dor e o sofrimento.
As causas da drogadicção devem ser procuradas, não primariamente no indivíduo e sua família, mas sim na estrutura da sociedade em que vive, e na maneira como esta sociedade impede a realização do indivíduo e de suas aspirações a necessidades básicas: O adicto não faz outra coisa que trasladar para o campo de sua vida individual o tipo de relações alienadas que imperam na sociedade a que pertence.4
Vamos considerar esta questão mais de perto.
É difícil compreender a que nível chegou a desintegração familiar na vida urbana brasileira. O sofrimento decorrente deste fato desintegra as instituições sociais mais indispensáveis à formação sadia das pessoas, mais precisamente, agrava a situação das crianças e dos jovens. A falta do lar e das condições do lar (afeto, saúde, alimentação, segurança…) prejudica a formação da personalidade da criança, gerando angústias, medos, incertezas, além de toda sorte de deformações físicas decorrentes da falta de alimentação. Temos, pois, nas causas que desintegram a família o núcleo gerador e fomentador de personalidades predispostas à dependência de drogas.
Esta desgraça não é privilégio da classe social mais carente de recursos. A desintegração familiar perpassa todas as classes e estratos sociais. A carência afetiva – qualidade que dá estabilidade emocional – existe em toda parte onde o sofrimento da desintegração familiar se faz presente. Nas grandes cidades é enorme o número de creches que se constituem num depósito de crianças, muitas das quais têm apenas o alvará da Secretaria da Saúde, enquanto o número das creches supervisionadas pela Secretaria da Educação e que oferecem condições de educabilidade é muito restrito. A classe média moderna se aventurou a muitas conquistas, mas faltam as condições sociais para suportar este status. A realidade da competição e da falta de emprego e condições favoráveis para exercer a sua profissão tem levado a população urbana a um verdadeiro estrangulamento. O stress e a hipertensão se tornaram parceiros constantes da classe média urbana. Suas frustrações são canalizadas pela bebida alcoólica. Veja o depoimento de Enrique Gonzales Duro: Após a revolução industrial, o álcool etílico se transformou, quase, num artigo de primeira necessidade para o nascente proletariado urbano, massificado, sem raízes, explorado e alienado em seu trabalho e submetido a terríveis condições de vida.5 E adiante: A garrafa […] é a companheira inseparável do operário, num começo por hábito, depois por necessidade e, finalmente, por paixão.6
Crianças, jovens e adultos vivem a incapacidade da alternativa histórica para suas condições de sofrimento. A desgraça do apego à droga ou ao álcool é a negação.tia socialização do problema. O indivíduo não partilha seu problema, mas fecha-se em si mesmo e o caminho da droga ou do álcool é o caminho do suicídio individual. O fracassado se deixa convencer mais facilmente pelo traficante do que pelo ativista social que deseja politizar o sofrimento e reivindicar alternativas históricas. O dependente foge para seu tóxico por se encontrar no fundo do poço. Para arrancá-lo daí, é necessário levar a sério a sua condição apática e ajudá-lo a descobrir novos horizontes para a vida, que superem seu conformismo social.
Os fatores que induzem o indivíduo a consumir drogas são de fato inumeráveis. Poderíamos acrescentar ainda o tráfico ilícito de drogas e suas máfias apoiadas por altas patentes governamentais, bem como as multinacionais do fumo e das bebidas alcoólicas que ocupam largos espaços, principalmente na televisão, bem como a ênfase, igualmente das multinacionais, em publicidade de medicamentos estimulantes, por todos os veículos de comunicação massiva, a automedicação (o remédio é solução para tudo, basta consumi-lo).
Toda esta máquina publicitária tem razão de ser porque toda uma massa humana se encontra em condições de sub-vida. Manter esta massa humana em condições de sub-vida é a decisão planejada do sistema político-econômico, que prima por não facilitar alternância no poder. A falta de perspectiva de vida remete a pessoa ao consumo de drogas e à adoção de comportamentos contrários à natureza humana. A ausência de valores dignos tem desintegrado indivíduos, instituições. Portanto, a melhor saída para o mundo das drogas é a construção de uma sociedade que supera estas contradições que remetem os indivíduos à fuga.
O horizonte utópico do Reino de Deus é o compromisso pastoral que, passo a passo, vai sendo buscado e construído em cada espaço que nos confronta com a dor e o sofrimento personalizado num dos sub-produtos mais adequados à estruturação do nosso sistema social: o drogadicto.
II – Enfoque teológico pastoral a partir de Provérbios 24.10-14
1. O texto bíblico
v.10 – Se te mostras fraco no dia do aperto,
a tua força é pequena.
v.11 – Liberta os que são levados à morte,
salva os que são arrastados ao suplício!
v.12 – Pois, se disseres: Eis que nada soubemos,
aquele que pesa os corações não entenderá?
Não saberá aquele que te formou?
Ele devolverá ao homem conforme a sua obra.
v.13 – Come o mel, meu filho, porque é bom,
o favo de mel é doce ao paladar,
v.14 – Assim é a sabedoria para ti, saiba-o!
Se a encontras, haverá um futuro
e tua esperança não vai ser aniquilada. (Versão da Bíblia de Jerusalém).
2. Comentários sobre o texto:
A presente perícope integra a coleção dos provérbios dos sábios, que se encontra intercalada nas principais coletâneas dos provérbios de Salomão (cap. 10-22 e 25-29). Difícil é descobrir a data e a autoria dos mesmos. O seu conteúdo poderia encaixar no tema que me foi proposto abordar, pois fala de uma atitude em favor dos que estão sendo arrastados ao suplício.
Estas palavras dos sábios são provavelmente procedentes de sábios do Egito. São portanto palavras de estrangeiros, que são acolhidas em Israel. Seu conteúdo teológico não está muito claro, mas o senso humanitário tem sentido ético. Isto vem a confirmar a internacionalidade desta sabedoria, cujo escopo não mostra um desafio para a transformação de uma realidade sócio-política ou religiosa de um contexto maior. Sua ênfase reside mais no âmbito do individual que no do estrutural. O que, alias, caracteriza a sabedoria em Israel: Os sábios de Israel não se preocupam com a história ou com o futuro do seu povo; eles pesquisam o destino dos indivíduos, como seus colegas orientais.7
Até que ponto um texto como este, sem uma proposta clara e contextuai, poderá nos auxiliar numa pastoral junto ao drogadicto?
Se tomarmos o espírito da verdadeira sabedoria que tem o seu princípio no temor a Javé (Pv 1.7) e se ampliarmos este entendimento para os elementos constantes da introdução do livro de Provérbios (Pv 1.1-7), parece que todas estas coletâneas desejam servir para a construção de uma humanidade que saiba pautar a sua vida, ordenada e disciplinadamente, em cima da experiência histórica que sublinha a justiça, o direito e a retidão (1.3b). Temos, pois, diante de nós, o produto da reflexão de sábios que fazem uma exposição de uma teologia prática, cujo alvo é o temor e a confiança em Javé.
Ill – Indicações para uma ação pastoral
Liberta os que são levados à morte, salva os que são arrastados ao suplício.- v. 11.
Na realidade do mundo das drogas, como em outras situações de conflito, sentimos que a nossa força é muito pequena para desencadear processos de grandes transformações estruturais. Para dentro de tal contexto o imperativo acima: Liberta… poderia soar um pouco moralisticamente, ou então apontar para um escapismo: vou tentar a minha parte; o que foge de minhas capacidades é com os outros…
Quando olhamos a nuvem de testemunhas do Senhor – profetas, apóstolos, servos anónimos e mártires – do passado e do presente, somos animados a perceber que não estamos sós e sem história. Temos um alvo para onde a historia caminha: o Reino de Deus. Temos uma tarefa a cumprir: ser instrumentos para que este Reino se torne história na vida e na realidade de nossa história. Exemplificando isto na realidade do drogado, significa:
1) Levar a sério o drama e a dor de cada drogadicto. Ele é uma pessoa encurralada cuja força é bem pequena e necessita de alguém que possa ajudá-la a tomar consciência do que está acontecendo. Sem esta aceitação incondicional dificilmente se estabelecerá o vínculo de confiança indispensável para uma boa terapia.
2) Tenho percebido que a maior parte dos problemas de drogadictos reside na área afetiva. Pastoralmente isto significa que eles carecem de humanidade. Não carecem apenas de amor, como se diz de forma muito irrefletida. Carecem, isto sim, de afeto e de vínculos significativos que lhes permitam reorganizar a sua vida. Atenção ativa e desprendimento sincero para caminhar com eles pelos seus emaranhados permitirá que o pastor se situe a si mesmo e a eles.
3) Tenho percebido que os familiares e amigos são parte do problema e, portanto, parte da solução do problema. Não funciona reuni-los todos num grupo, passar-lhes um sermão. Cada pessoa envolvida precisa ser entendida, e após este entendimento necessitará ser orientada; quando se trata de problemas mais graves, precisamos encaminhá-las para tratamento específico com profissionais adequados: psiquiatras, psicólogos, pastores ou educadores. Em se tratando de uma intoxicação aguda ou crônica, necessário se faz um internamento para desintoxicação.
4) É comum a experiência de recaída para quem é dependente de drogas ou álcool. Isso não devç desesperar. Faz parte da recuperação. É difícil uma recuperação integral, completa. Um ex-alcoólico precisa abster-se por toda a vida para não recair.
5) O papel da polícia não representa ajuda significativa. É comum ouvir este depoimento: Vi uns drogados na esquina e chamei a polícia. A polícia geralmente não tem preparação adequada para lidar com drogados. Seu papel é reprimir o tráfico de drogas e não prender os drogados. Se alguém não souber fazer outra coisa que chamar a polícia, é melhor não fazer nada. Pois, um jovem preso pela polícia é fichado, quando não é inquerido, ameaçado ou intimado. Isto complicará a sua vida mais tarde.
6) Penso que em cada localidade há condições humanas para fazer frente ao problema. Mesmo em pequenas localidades cristãos (pelas igrejas), médicos e educadores podem e devem estar atentos a estes problemas. Não há necessidade de grandes especialistas, mas sim, de pequenos gestos de envolvimento com os mais fracos e rejeitados, ou mesmo, com os malandros de cada localidade.
7) Não remeter este problema aos grandes centros, onde há clínicas especializadas. Estas podem ser o caminho excepcional. A maior parte de drogados e alcoolizados pode ser ajudada e recuperada com um sério trabalho de equipe. Tanto o educador, como o médico, ou o advogado, como o pastor, têm um compromisso com a comunidade maior da localidade onde atuam. Se cada localidade lutar pela inteireza e integração de seus moradores, muitos não necessitarão fugir para a grande cidade, onde se constituirão em anônimos na massa humana.
8) Para mim muitas questões estão abertas a respeito de um adequado enfrentamento do problema, por se tratar de uma realidade que é escondida. A causa não é simpática. Parece que estamos apenas atacando os efeitos, sem atacar o âmago da questão. Estou consciente de muitas limitações que qualquer proposta de transformação traz consigo. De uma coisa, no entanto, não posso fugir: crianças, jovens e adultos estão caídos à margem da vida e necessitam encontrar uma sabedoria dentro da qual possam se reconstruir como pessoas e cidadãos. Só a partir da graça de Cristo que fez de mim – pobre mísero pecador -um cidadão do Reino, é que enfrento o desafio do mundo das drogas, como tarefa significativa para tornar este Reino em história entre os drogados.
Notas:
1) Kalina e Kovadloff, Ciladas da cidade, p. 26.
2) Idem, p. 27.
3) Idem, p. 28.
4) Kalina e Kovadloff, Drogadicção, p. 18.
5) Kalina e Kovadloff, Ciladas da cidade, p. 40.
6) Idem, p. 41.
7) A Bíblia de Jerusalém, p. 593.
V – Bibliografia
– A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo, 1981.
– ALCOÓLICOS anônimos Os doze passos, São Paulo.
– KALINA, E. & KOVADLOFF, S. As ciladas da cidade. São Paulo, 1978.
– KALINA, E. & KOVADLOFF, S. Drogadicção. Rio de Janeiro, 1976.
– ROCHA, P. Os agentes da morte. 6. ed. Porto Alegre, 1983.