Tema: Planejamento familiar: genocídio planejado?
Explicação do tema:
Na história da humanidade a ameaça de uma superpopulação, da redução do espaço físico e da concentração de espaço em poucas mãos, leva a humanidade a buscar soluções drásticas. Os mandantes utilizaram para tanto desde o equilíbrio natural até guerras que controlavam e reduziam o número de habitantes.
Já nos dias de hoje, além do Estado, a família é induzida a controlar o número de integrantes ou membros da sociedade. Para esse fim foram e são desenvolvidos uma série de recursos e métodos. Um desses métodos, o planejamento familiar, é dirigido a todos. Contudo, na prática, ele acontece e é praticado apenas nas camadas mais humildes e com tendência a maior proliferação.
Estes recursos não resolvem os problemas familiares em seus mais diferentes aspectos, bem antes, denotam a ideologia daqueles que pertencem ou defendem a classe dominante. Estes recursos e seus agentes prefe¬rem a morte do próximo ao invés de repartir o espaço físico e os bens existentes nele.
Texto: Salmo 112
Autor: Vítor Westhelle
l – Abertura
Eu-Souvive
SUA PROPRIEDADE ESTÁ MORRENDO
Eu-Souvive
MINHA VIDA ESTÁ NASCENDO
…
Quando a questão é meu grito
e eu estou gritando
homem-branco
você ouve o ruído
o sangue, a histeria real do nascimento
minha vida está nascendo
sua propriedade está morrendo.
Eis parte de um poema de June Jordan, poetisa, negra da cor da dignidade. Começo com ele essas reflexões sobre planejamento familiar. Começo, pois, dizendo que planejamento familiar é uma questão que envolve a luta da propriedade contra a vida.
II – O Tema: Vida versus propriedade
Dito tudo que precisava ser dito, vamos às explicações.
Já anda em moda há algum tempo considerar a questão populacional como a mais candente de todas. O espectro da superpopulação ronda o mundo, advertem vozes apocalípticas. Na verdade não é uma preocupação nova. O primeiro capítulo do livro de Êxodo nos conta que o rei do Egito temia o crescimento populacional do povo escravo. Em outros períodos denunciou-se o mesmo perigo, como na decadência da POLIS grega, no fim do republicanismo da Roma antiga, na clausura da Idade Média e no início do século XVIII, quando Voltaire dedicou um livro ao assunto. Este temor sempre volta quando as condições sociais existentes estão em fase de desintegração (Bebel, p. 355).
É preciso reconhecer, no entanto, que existe uma d;ferença objetiva entre o problema populacional do passado e o do mundo contemporâneo. Nos últimos dois séculos a humanidade passa por uma transição demográfica que em rápidos traços pode ser assim caracterizada: Primeiro, dá-se a abertura do iato demográfico causado pela queda secular do índice de mortalidade e a manutenção do índice de natalidade, causando o que se denomina explosão demográfica. Esta fase dá lugar a uma segunda que é denominada de revolução demográfica que é causada pela desaceleração da natalidade. Chega-se assim a um novo equilíbrio demográfico com baixos índices de mortalidade e natalidade. A teoria da transição demográfica tem sido vastamente corroborada, embora existam diferenças regionais. Os países do hemisfério norte estão, em geral, mais avançados na transição que os do hemisfério sul.
Para que se tenha uma ideia real do que representa esta explosão demográfica basta mencionar que a população mundial desde o início de nossa era levou 1650 anos para duplicar (de 250 a 500 milhões). Duplicou novamente em 1830 (1 bilhão), em 1930 (2 bilhões) e em 1975 (4 bilhões). Como a maior parte do mundo ainda está passando da explosão para a revolução demográfica, estima-se que a população mundial deverá equilibrar-se quando atingir a casa dos 15 bilhões de habitantes.
A questão fundamental nestes dados é que o fator condicionante da explosão demográfica não se encontra na natalidade mas na queda dos índices de mortalidade. Somente uma queda efetiva da mortalidade propiciará as condições para uma verdadeira redução da natalidade. As populações marginais, responsáveis pelo alto crescimento populacional, têm sido relativamente beneficiadas por avanços médicos se a comparação é feita com tempos anteriores. Mas o risco de vida dessas populações é alto se comparado com classes sociais mais elevadas. A instabilidade econômica é alta, e isto inviabiliza um planejamento razoável da vivência social. Uma prole numerosa é, não raro, o resultado de um cálculo de ganhos e custos para que uma família sobreviva como núcleo econômico e garanta uma espécie de pecúlio e aposentadoria. Isto se observa quando famílias buscam garantir através dos filhos os meios necessários para auto-sustentação e aposentadoria para os pais na velhice. Entre 10 e 12 anos uma criança já contribui mais do que toma. E em geral já abandonou a escola para ser mais produtiva. Menos de 4 filhos que estão bem é um risco previdenciário Neste contexto, um programa de controle da natalidade não passa de um fator a mais a desestabilizar as populações de baixa renda.
Por que o medo com a superpopulação? Superpopulação é uma ficção. Existe, sim, o problema de excedentes populacionais relativos ao modelo econômico e, em particular, ao sistema de propriedade e distribuição dos recursos produtivos de uma sociedade. O medo da superpopulação é o sintoma da patologia social por que passa um sistema de propriedade, acima de tudo o da propriedade fundiária. É a posse da terra que determina não só a marginalidade rural mas também a urbana que é causada pela migração rural. Na Roma antiga, quando já se erguiam as bandeiras da super-população, foi o latifúndio que, expulsando o pobre da terra, determinou a sua marginalização. No fim da Idade Média foi a apropriação das terras comunais e a espoliação dos camponeses pela nobreza e pelo clero que os marginalizou e os levou à revolta e logo também os trouxe às margens das cidades (tanto para livrar-se da carga tributária imposta ao campo como por completa miséria).
É em circunstância semelhante, mas agora pela revolução industrial e a pauperização do campesinato e do operariado urbano, que nasce a famosa teoria de Malthus no início do século XIX. Malthus defendia que enquanto a produção mundial de alimentos crescia em proporção aritmética (1, 2, 3, 4, etc.) a população crescia em proporção geométrica (1, 2, 4, 8, etc.). Por detrás está o temor das elites que por um lado necessitam de um exército proletário de reserva, mas por outro lado não sabem controlá-lo em momentos de crise na absorção de mão-de-obra. Serviam como fatores para regularizar os excedentes populacionais: a fome, as pestes, guerras e revoltas. Os avanços médicos praticamente eliminaram as grandes pestes e epidemias que no passado eram os fatores mais importantes no controle demográfico. Foi assirn que surgiu a necessidade de um controle mais racional dos excedentes populacionais.
Com a internacionalização do capitalismo ou a transnacionalização do imperialismo neste século surge o que se denomina política demográfica, definida como uma ação política centralizada que visa ter um impacto direto ou indireto no desempenho demográfico de uma população através de medidas sociais, econômicas e medicinais. No início da década de 50 houve uma crise cíclica do capitalismo, e como bode expiatório denunciou-se a superpopulação. Malthus estava redivivo no neomalthusianismo que acrescentou ao erro do patrono – localizar o foco da miséria na fecundidade – o de transformar o remédio que aquele havia receitado (moral restraint, i.e., abstenção sexual seletiva, visando a queda da natalidade como um imperativo moral) numa ação ostensiva e articulada para baixara natalidade através de drogas contraceptivas, esterilização, dispositivos intra-uterinos e abortivos. Estes meios foram usados sem avaliações médicas e sociais exaustivas. Os neomalthusianos logo tiveram seus arautos apocalípticos expressos em documentos famosos como a Mensagem do Presidente Johnson ao Congresso dos EEUU em 1967, o Relatório Pearson à ONU em 1969, o Informe do Clube de Roma em 1970, a Conferência de Estocolmo sobre Poluição em 1972 e o patético Relatório de Robert MacNamara ao Banco Mundial em 1974. Todos tinham em comum o erro de analisar a expansão populacional sem estudar a influência do neocolonialismo na determinação dos fatores demográficos.
Cabe ainda notar que a articulação da política demográfica faz-se no eixo EEUU-Europa quando reconhecidamente é no mundo colonizado que o suposto problema está localizado. Isto dificilmente pode ser interpretado como um gesto de nobilidade filantrópica.
Ao lado da articulação de políticas demográficas, surge neste século a preocupação do movimento feminista pelo controle da natalidade. É este movimento que dá uma coloração diferente à questão demográfica. Margaret Sanger, pioneira do movimento, escrevia em 1920: Nenhuma mulher pode se dizer livre se não é dona de seu próprio corpo […] nenhuma mulher pode se dizer livre enquanto não puder escolher conscientemente se quer ou não ser mãe. O programa de controle da natalidade passou a ser uma bandeira do feminismo e junto com programas de política demográfica passaram a dar apoio ao projeto de planejamento familiar. Mas seus propósitos eram distintos. O feminismo visa dará mulher controle sobre a procriação, enquanto que os programas de política demográfica buscam controlar apenas a prole.
Para que a mulher tenha os meios necessários para controlar os nascimentos e para que ela recupere a sua voz, afirme seu corpo e sua vida, é preciso que o fundamento econômico de uma sociedade liberte as famílias marginalizadas da necessidade sociológica de uma alta natalidade. Sem esta transformação econômica qualquer planejamento familiar será ineficaz e uma política demográfica, criminosa. Criminosa não pelo controle da natalidade em si (como reza o argumento da Igreja Católica Romana desde a encíclica Casti Connubii de 1930, baseada na lei natural segundo a qual o sexo é função de inseminação), mas por instrumentalizar o povo pobre em função dos interesses das elites, por privá-los de uma opção que possuem para sobreviver e por perpetuarem a miséria, evitando os perigos implícitos em suas consequências.
Em suma, o temor em torno da superpopulação é provocado por aqueles que determinam o sistema de propriedade. A alta natalidade encontrada nos estratos subalternos da sociedade é a resposta do povo pobre à falta de opções econômicas e sociais. Planejamento familiar é possível quando o sistema de propriedade estiver determinado pelas necessidades das populações carentes e legítimo quando a mulher tiver a palavra determinante.
Ill – O Texto: Temor versus medo
A escolha do Salmo 112 como texto para o tema que tratamos não deve ser encarada como uma condenação sumária do, planejamento familiar feita em base ao v. 2. Isto seria anacrônico e incorreto. É preciso deixar claro, logo de início, que a importância e particularidade deste salmo não está em uma suposta afirmação da sacramentalidade da procriação. Todo AT. é marcado por uma preocupação de assegurar a integridade nacional com base na unidade e poderio das tribos que compunham a nação. Desde a promessa a Abrão, a garantia da terra estava vinculada à promessa de descendência (Gn 12.1-2). O poderio bélico que garantia a unidade e a autonomia nacional era determinado pelo número de homens recrutáveis. Até mesmo sob a escravidão o crescimento demográfico visto como fator decisivo no processo de libertação (Ex 1.12; cf. Jr 29.6). Uma política demográfica foi imposta pelo rei egípcio, buscando evitar o perigo que representava um povo escravo por demais numeroso (Ex 1.15-16).
A estas observações deve-se juntar também a necessidade de sobrevivência em um meio ecológico onde as forças da natureza militavam com pragas, doenças e catástrofes contra uma raça humana ainda numérica e tecnicamente débil. Essa consciência da fragilidade humana impõem-se claramente na narração sacerdotal da Criação onde fecundidade, sujeição e domínio do meio ambiente eram imperativos (Gn 1.28).
Procriação tornou-se um valor moral e religioso que regia narrativas como as de Sarai e Hagar (Gn 16) de Lia e Raquel (Gn 29-30), do adultério justo de Tamar (Gn 38), da bênção de Rute (Rt 4), da tragédia e redenção de Jó (Jó 1.2; 2.18-19; 42.13) e o mesmo motivo estende-se ao N.T. na história de Isabel (Lc 1).
A dialética de esterilidade e fertilidade dá-se em um contexto basicamente patriarcal. O objeto da bênção, via de regra, é o homem. A mulher dá um filho ao homem. A mulher é o meio ou instrumento desta bênção. O que importa é a manutenção da casa paterna. O adultério de Tamar (Gn 38) é uma narrativa exemplar. Como prostituta seria morta, mas ao provar que seu adultério tinha sido cometido com o sogro, foi declarada, por Judá, mais justa que ele. E este não foi um julgamento à base do adultério, que também Judá cometeu. Tamar foi justificada porque conseguiu dar continuidade à linhagem do primogénito de Judá (de quem era viúva), quando Judá mesmo não havia cumprido a promessa de dá-la ao seu filho mais novo.
A importância que tem o conceito de descendência no Salmo 112 está em função do tema do salmo. No contexto mais amplo do A.T., descendência é expressão de bem-aventurança daqueles que temem a Javé.
O Salmo 112 forma uma unidade com o salmo anterior. Ambos são salmos alfabéticos e formam uma simetria. O Salmo 111 é um louvor dos poderes de Javé. O 112 é um louvor do ser humano cuja sabedoria, bondade, amor e justiça começam com o temor a Javé (111.10; 112.1). O eixo central dos dois salmos é o temor a Javé com o qual termina o 111 e começa o 112. A partir daí temos a dupla ênfase: louvor a Javé (111) e a bem-aventurança daquele que é íntegro (112).
Na tradução de um texto poético, é mais importante o que o texto evoca que a sua precisão literária. A edição revista e atualizada de Almeida funciona poeticamente. Cabe fazer apenas algumas observações. No v. 2 e 4a em vez de justos seria melhor a palavra íntegros. O v. 4b fluiria melhor se fosse mantido o parallelismus membrorum seguindo-se a leitura da versio syriaca: bondoso (benigno) e misericordioso é o justo. O v. 6b está incompleto. Leia-se: Em memória eterna permanece o justo.
Quanto à estrutura temática, notamos o seguinte. Os v. 2-3 são uma evocação das bem-aventuranças anunciadas no v. 1 com o paralelismo: temer a Javé/comprazer-se nos seus mandamentos. Estas são as consequências gerais:
v. 2 – descendência poderosa
– bênção à geração dos íntegros
v. 3 – prosperidade e riqueza
– permanência da justiça
Os vv. 4-6 salmodiam o poder redentor dessas consequências para a vida cotidiana. As próprias consequências do temor a Javé tornam-se fatores ativos da bem-aventurança, engendram felicidade. O v. 4 começa com a descrição deste poder redentor da integridade (cf. Is 58.10). Em 4b temos sua qualificação: bondade, amor, e justiça. 5a dá continuidade a esta qualificação. Os vv. 5b-6 dão os indícios do poder redentor do agir justo.
Com o v. 7 há continuidade temática, mas um novo conceito é introduzido: atemorizar-se. Aqui o antagonismo com o v. 1 que proclama o temor a Javé é estruturalmente muito relevante. Ambos os conceitos provêm do mesmo verbo. Temor assume um caráter positivo quando é a atitude consciente do poder divino. O temor imposto é o resultado objetivo de um poder espúrio que acua e abala a confiança fundamentada no temor a Javé. Em outras palavras, temer e ser atemorizado são conceitos antagónicos. Quem está atemorizado, quem é vítima do medo não pode temer (a Javé). Por isso o v. 7 antepõe a fé ao temor imposto.
O v. 8a simplesmente repete o mesmo motivo e conclui em 8b afirmando o poder redentor da justiça que procede da certeza de que o poder procede de Javé, aquele que redime o povo (111.9). Como isto se realiza na prática é explicado no v. 10. O perverso é o agente do medo cujo objetivo é destruir a fé. Mas o perverso torna-se vítima do mal que queria impor. Quando não consegue atemorizar, o perverso torna-se vítima do próprio medo (cf. Pv 10.24).
Finalmente, o v.9 dá continuidade a 5a descrevendo as atitudes daquele que é íntegro. Distribuição é o conceito que paraleliza permanência da justiça. Da mesma maneira, no v. 5 emprestar paraleliza defesa do direito. Este paralelismo foi corretamente interpretado por Paulo em 2 Co 9.6-15.
O princípio de ordenação formal do texto hebraico é alfabético. Este princípio não pode ser mantido em português e impõe certas restrições à fluidez temática do salmo. Uma organização alternativa dos vv. pode ser sugerida: 1, 2, 3, 7, 6, 8,10,4, 5, 9. Com esta organização teríamos a seguinte estrutura:
vv. 1, 2, 3 – Promessas aos que temem a Javé
7, 6, 8 – Eficácia das promessas
10 – A sorte do perverso
4, 5, 9 – O poder redentor da justiça
Concluindo, o tema fundamental do Salmo 112 é o enaltecimento daquele que teme a Javé e como consequência vive em integridade pela justiça e pelo amor sem ser atemorizado. Neste salmo há claramente dois vetores correspondentes. O primeiro dá continuidade ao salmo anterior e estabelece a relação de temor entre o ser humano e Javé. O segundo perpassa a relação entre o ser humano íntegro e os poderes inimigos do perverso que visam impor o medo. Temor a Javé e o medo no mundo excluem-se mutuamente. A dinâmica do temor desdobra-se de tal forma que aquele que teme a Javé vive no mundo sem ser atemorizado por aqueles que tramam o mal. Estes últimos são vítimas do medo que eles próprios engendram. A vida do íntegro é como um espelho que devolve a imagem amedrontadora àquele que a projeta.
IV – Correlação: O Tema e o texto
Havíamos sugerido que o problema que envolve o planejamento familiar é uma questão de vida contra propriedade. O lugar privilegiado em que se vive esta tensão é o corpo da mulher onde vida e propriedade se defrontam. Não se fala aqui do corpo individual da mulher, mas do corpo social, i.e., da mulher integrada em uma malha social que determina seu valor e sua função. A falta de autonomia da mulher – e, sobretudo, da mulher pobre e sua família – em poder decidir conscientemente a questão pertinente à procriação, é o fator determinante da dependência. Esta dependência milita contra a integridade feminina tanto em meio a uma estrutura social sexista como em meio a um sistema econômico e social que oprime o pobre. A mulher sofre este duplo atentado contra a sua integridade. Ela é duplamente instrumentalizada: uma vez como meio de procriação, outra como meio de produção. Esta dupla dependência limita drasticamente as opções pro-criativas e produtivas da mulher. Sua identidade é, então, o de ser mãe e dona-de-casa.
Um programa de planejamento familiar, de controle de natalidade ou uma política demográfica que não tiver como foco a transformação desta realidade de dependência não deixará de ser outra forma de perpetuar a mesma dependência. Enquanto o corpo feminino for considerado um instrumento dominado por fatores externos às opções da mulher como ser social, continuará o atentado contra a integridade de um ser humano perpetrado pelo medo.
É o medo da violação do corpo em todas as suas manifestações (estupro, incesto, espancamento), o pavor do abandono, a sujeição imposta ou aceita que destroem a integridade e o temor a Deus, embora este possa aparecer mascarado e travestido pela idolatria do medo imposto.
No contexto do tema, o Salmo 112 deve ser lido como um grito de louvor daquela que teme a Deus e vinga no mundo os seus direitos contra os que tramam o medo. E a voz de louvor da mulher que canta e declama o início da sabedoria no meio da luta pelos seus direitos e contra os poderes que a atemorizam. É um hino da vida contra a morte, que é a vida quando feita posse; é um hino pelo temor (a Javé) contra o medo, que é o temor quando imposto; é um hino pela justiça contra a dependência, que é a justiça quando regida pelo medo. Enfim, é um hino que celebra simultaneamente o poder de Javé e a integridade daquela que em sabedoria defende os seus direitos e não se abala. É apenas Javé, que é o que é, que permite que eu seja o que sou. Ou, usando o poema de June Jordan, diríamos:
Eu-Sou vive
Sua propriedade está morrendo
Eu-Sou vive
Minha vida está nascendo.
V – Apresentação do tema
Pensando na prédica ou na apresentação do tema para reflexão, deve-se começar pela sua problematização.
Questões de planejamento familiar, controle de natalidade e política demográfica não podem ser tratados em si mesmas. É necessário que se levante o assunto dentro de dois marcos fundamentais. Primeiro, procriação e regulação da prole é assunto que diz respeito, antes de tudo e todos, à mulher. Segundo, é preciso que a mulher, seu esposo e sua família tenham certa autonomia social e econômica que lhes permitam opções e uma tomada de consciência quanto ao número de filhos que pretendem ter ou se pretendem tê-los. Somente a libertação da mulher do jugo do sexismo e a libertação dos pobres das exigências sócio-econômicas que lhes são impostas, permitirá também que os filhos não sejam um meio de subsistência, amparo e pecúlio, nem sejam uma maldição. Os filhos devem ser um fim em si para que o planejamento da família seja um meio de dar aos filhos promessas de um futuro.
Indicam-se os seguintes passos para a prédica:
1. Apresentar o problema demográfico, os temores da superpopulação.
2. Desmascarar o mito da superpopulação. Na verdade são as elites que temem que a desigualdade na distribuição de terra e bens produzidos possa ser um foco de contestação da ordem em meio a uma população crescente que não pode ser absorvida no sistema econômico. Velha lição. Ilustrar com Ex 1.8-22.
3. Mostrar que o problema do grande número de filhos em famílias pobres não é causado por ignorância, mas é uma maneira de garantir sobrevivência, amparo e pecúlio à família.
4. Insistir que, em vez de ouvir o temor das elites e atemorizar-se com ele, é preciso, antes de tudo, ouvir a voz da mulher, aquela que traz os filhos ao mundo.
5. Para que se ouça a voz da mulher é preciso reconhecê-la como pessoa íntegra, mas constantemente subjugada pelo sexismo e por tramas sociais, econômicas e políticas que a oprimem enquanto pobre. É preciso que haja justiça na distribuição dos bens sociais, sobretudo da terra (reforma agrária é o caminho da roça!), e que haja remuneração justa pelo trabalho, particularmente o da mulher.
6. O temor imposto que quer calar a mulher e amedrontar o pobre é uma idolatria que rouba espaço da fé.
7. Fazer a leitura do Salmo 112.
8. Chamar atenção à relação antagônica entre temor (a Deus) e medo. O temor a Deus é incondicional e exige a vitória sobre o medo. O temor a Deus liberta o ser humano do medo para a justiça e o amor (cf. Uo 4.13-21; S1112.7, 6,8).
9. O perverso que quer impor o medo encontra sua auto-destruição. Sua maldição volta sobre ele quando não é absorvida por aquela que teme a Deus.
10. A vítima potencial do medo é o pobre que chega a vender sua independência para sobreviver.
11. O mais vulnerável dos pobres é a mulher que através do sexismo é instrumentalizada para responder pela procriação às necessidades que sofrem os pobres.
12. Qualquer preocupação com planejamento familiar deve partir da conversão da idolatria do medo à celebração do temor a Deus que nos restitui a integridade.
13. A apresentação do tema e a meditação sobre p salmo deve culminar dentro do espírito doxológico do Salmo 112. É o temor a Deus que permite a vitória sobre o medo. A celebração cúltica deve ser o já dessa vitória.
VI – Coda
A celebração do poder de Deus está vinculada ao sentido de integridade da pessoa. Este pode existir em meio à maior opressão. Este é o testemunho de uma mulher, escrava, usada, que nele trouxe seu clamor, sua força, sua confiança e a convicção de sua integridade como mulher.
Arei, plantei, reuni em celeiros. Nenhum homem trabalhava mais do que eu. E, vejam, eu sou uma mulher! Podia trabalhar e comer igual a um homem -se tivesse o que comer – e igualmente aguentava o açoite. E, vejam, eu sou uma mulher! Trouxe ao mundo treze filhos e vi quase todos serem vendidos no mercado da escravidão. E quando clamei, e quando gritei com os meus gemidos de mãe, ninguém me ouviu a não ser Jesus. E, vejam, eu sou uma mulher! (cf. Hinos do Povo de Deus, 216).
VII – Subsídios litúrgicos
1. Confissão dos pecados: Ó Deus confessamos agora: temos sido escravos do medo e pelo medo temos desprezado a justiça e a verdade. Por medo temos defendido com egoísmo os nossos interesses e nos falta o amor. O medo nos dobra, nos cala, nos cega, nos ensurdece e nos faz esquecer que só a ti devemos temer. Redime teu povo, Senhor. Redime nossa integridade, devolve a voz às nossas bocas, visão à nossa vista e o ouvir aos nossos ouvidos. Tem piedade de nós!
2. Oração de coleta: Deus, reúne-nos agora. Viemos para celebrar a vida; tu és a vida. Viemos para nos libertar do medo; só a ti devemos temor. Viemos para aprender os caminhos da justiça e do amor, tua palavra nos guia. Viemos para celebrar teus atos, tu nos redimes. Viemos de muitos lugares, tu estás sempre conosco. Viemos com histórias de dores; tu és nossa alegria. Viemos para cantar teu amor. Vem Espírito Divino estar presente em teu povo. Amém.
3. Sugestões de leitura: Ex 1.7-17(22), 1 Jo 4.14-21 e Mt 2.13-18.
4. Oração final:
– Interceder pelas mulheres em seu sofrimento e opressão. Que Deus as livre do mal.
– Interceder pelas crianças que, na miséria e no desamparo, são o amparo das famílias pobres. Que Deus as livre do mal.
– Interceder por todos que na carência não podem dedicar-se às suas famílias. Que Deus os livre do mal.
– Interceder pelos amedrontados que não conseguem temer a Deus. Que Deus os livre do mal.
– Interceder pelos que engendram o medo. Que Deus os livre do mal.
– Louvar a Deus que nos dá a vida e nos livra do mal.
VIII – Bibliografia
– BEBEL, August. Woman under socialism. New York, 1904.
– BELTRÃO, P.C. Demografia: ciência da população. Porto Alegre, 1972.
– BELTRÃO, P.C. Sociologia da família contemporânea. 2. ed. Petrópolis, 1973.
– DAVIS, A.Y. Women, face & class. New York, 1981.
– GERSTENBERGER, E.S. Dominar ou amar: o relacionamento de homem e mulher no Antigo Testamento. Estudos Teológicos, São Leopoldo 23(1): 42-56, 1983.
– JORDAN, June. Things that l do in the dark. New York, 1977.
– HARRISON, B.W. Our right to choose. Boston, 1983.
-PAUPERT, J.-M. Dossier de Roma: regulação de nascimentos e teologia. São Paulo, 1968.
– WOLFF, H.W. Anthropologie des Alten Testaments. München, 1973.