Prédica: 2 Coríntios 4.16-18
Autor: Werner Fuchs
Data Litúrgica: 4º. Domingo da Páscoa (Jubilate)
Data da Pregação: 24/04/1988
Proclamar Libertação – Volume XIII
l — Menino que virou homem
Viajando sem parar
Sentiu o frio e passou fome
Lutando em terra e mar
Será que mais lhe valia
Ter morrido no sertão,
Não haver andado tanto
p'ra tanta desilusão?
Será que o Senhor nos deu
Sua causa e se esqueceu
Da gente que se perdia
Lutando em caminhos seus?
Se era justa a nossa luta
E a nossa causa de Deus
Será que Deus se perdeu
Ou será que nos perdemos
Por nos perdermos de Deus?
Senhor do meu pensamento
Minha sorte meu cantar
Quanta dor e quanta morte
Quanto chão p'ra gente andar
Tanta gente que ficou
Num derradeiro caminhar
Tanta gente que pensava
Ver o mar e se salvar.
Não viemos por teu pranto
nem viemos p'ra chorar
Viemos ao teu encontro
E estamos no teu altar
Por seguir nosso caminho
Que é também teu caminhar
Na torça do teu carinho
Esperamos nos salvar
Na terra como no céu
No sertão como no mar
Na terra como no céu
No sertão como no mar.
de: Paixão Segundo Cristino
Geraldo Vandré & Dominicanos, 1968
II – A paisagem
Casa bonita sem jardim não impressiona. Por isso engenheiros acrescentam flores e folhagem à fachada do projeto. Moradia é valorizada de acordo com a fama do bairro residencial. Já para Lutero, bons vizinhos faziam parte do pão de cada dia (cf. Catecismo Menor). A prédica aqui em Bela Vista proporciona a constatação de que, para o ponto a observar, é importante o panorama, a paisagem toda
O texto 2 Co 4.16ss. está inserido numa paisagem privilegiada, com marcos conhecidos, mas nem sempre bem entendidos. O por isso (v. 16) refere-se ao saber da ressurreição com o Senhor Jesus (v. 14). Mas este está relacionado com um ter estranho: o tesouro em vasos de barro (v. 7), onde o barro faz parte do tesouro, onde o escândalo da cruz (cf. 1 Co 1.18) e a fragilidade do mensageiro fazem parte da glória da mensagem. Para os coríntios, que queriam ressuscitar sem antes morrer, sair da miséria sem assumir a humilhação, deve soar estranho que o apóstolo fale de sua vida como um levar, levar as marcas do morrer (v. 10). Ele o diz consciente e alegremente, para ressaltar o poder de Deus (v. 7) que pode agir somente na forma da fraqueza (12.9s).
Após lágrimas derramadas por amor aos coríntios (2.4), Paulo experimenta também regozijo (7.6s). Por isso, em meio aos contrastes, sobressaem as fortes afirmações positivas, algumas delas na vizinhança do nosso texto. Estamos livres da necessidade de viver para nós mesmos (5.15), quem está em Cristo é nova criação (3.17), etc. O clima pós-pascal (domingo Jubilate! – antigamente o texto vv. 7-18 era atribuído ao domingo Exaudi) faz soprar sobre a paisagem um vento cortante. O triunfalismo aburguesado precisa se curvar, mas quem se põe a caminho recebe impulso para dar passos ousados, para assumir carga e sacrifício. A lei de Cristo faz dos que sacrificam simultaneamente os que são sacrificados e dos que morrem os que glorificam a Deus (Käsemann, op. c/t, p. 297).
O pregador observa a paisagem eclesial. Há poucos pontos salientes para a dimensão pós-pascal da cruz. Igreja hoje se iguala mais a pessoas sentadas em bancos do que a um movimento de esperança e manifestação da vida do Cristo nos corpos (v. 10b). Em contraste, porém, a conjuntura destas cousas quo se vêem (v. 18) constitui a terra para a semente da renovação, e assim fa/ parto da cruz do pregador: Jubilate!
Ill – O caminho
1. O Incansável: não desanimamos (vv. 1 e 16), não fraquejamos, não esmorecemos, não nos conformamos (cf. Rm 12.2), não nos acomodamos, mas nos incomodamos (e nos tornamos incómodos), sacrificamo-nos, superamos deficiências e reveses, vencemos tensões e conflitos, com disposição inabalável e bom humor indestrutível. Será mesmo? A fria contabilidade da vida não obriga a constatar saldos negativos? A admitir o poderio inabalado do status quo, das forças da decadência? A reconhecer que, ainda que não estejamos indo de mal a pior, não sabemos de fato para onde vamos.? Servidor do Evangelho tem passaporte para um mundo invisível, de vitórias perenes? O não desanimar expressa realismo ou otimismo, ou ambos?
Por muitos anos, o Incansável foi símbolo das atividades extraclasse dos estudantes do extinto Instituto Pré-Teo!ógico da IECLB, em São Leopoldo. Expressava o serviço e a proposta crítica neste mundo atual, de jovens cristãos, em fidelidade ao Senhor. O homem que sustentava a cruz não estava fazendo um esforço heróico, sobrenatural, mas apenas apresentando a vitória sobre morte e decadência, em Cristo. Ao mesmo tempo questionava alunos e professores, jovens e familiares, sobre o seu engajamento. Nos boletins e cartazes de divulgação do IPT, o Incansável estava aí, símbolo e sinal. Curiosamente, porém, com o passar do tempo, perdeu sua força de expressão e desafio. Veio a recuperá-la, quando um estudante afixou no mural um desenho em que o Incansável derrubava a cruz e lhe voltava as costas. Foi uma agitação e um questionamento geral. Era esta a realidade? O incansável cansou, ou nunca tinha assumido de fato o desafio? Que criticas eram necessárias? O episódio provocou polarizações, mas também novo engajamento. Foi uma releitura do Incansável.
(Veja imagem anexa)
Faz-se necessária uma releitura de nossa teologia da cruz, uma atualização da fraqueza de Deus, mais forte que poderio humano (1 Co 1.25); da Igreja como pequena chama ameaçada, mas que continua a queimar (Voigt, op. cit. p. 228) precisamos reassumir a função provocadora-consoladora (parakaleo, parakleto), que percebe e faz perceber que no meio do revés, até embutido nele, está li-bertação (cf. Rm 8.28; 1 Co 10.13; Jo 16.33), e que o destrutivo vem a ser construtivo:
– Sinto-me como Daniel na cova dos leões, dizia um amigo, funcionário da Assembleia Legislativa, quando se defrontava com a corrupção e cooptação de consciência pela politicagem e tentava resistir-lhe, em testemunho cristão (cf. Dn 3.18; 6.16).
– Mas, então, você está bem, independente do que você sinta, tão bom protegido como Daniel na cova dos leões…
2. O corpo renovado: o paralelismo homem exterior – homem interior poderia induzir a um dualismo, a uma visão antitética, não complementar do homem. Sem dúvida a ideia é a do homem sob aspecto perecível, em deterioração, incluindo a decadência e ambiguidade de suas posturas históricas (cf. 5.1). Em contraposição à aparência humilde, o homem interior se direciona a Deus e renova as forças (cf. S1125.1; Is 40.29-31). Paulo caracteriza, pouco depois da asserção de cunho 'místico' em 2 Co 3.18, a existência dos cristãos como um 'levar no corpo a morte de Jesus' e contrapõe à 'leve e momentânea tribulação' o prometido 'eterno peso de gloria' (2 Co 4.10,17). Isso significa que, apesar da linguagem indubitavelmente 'mística' da frase 2 Co 3.18, Paulo… não cogita de uma divinização substancial dos cristãos no presente, mas descreve apenas que eles estão 'no estrangeiro, separados do Senhor1 (2 Co 5.6). Descreve-o, no entanto, de maneira efusiva e, por isso, passível de mal-entendidos, como um estar a caminho provocado pelo Espírito, como um estar já mais próximo do alvo (cf. também 2 Co 4.16; Fl 3.14…) (Kümmel, op. cit. p. 254). Ou, talvez de forma mais simples, com Lutero: olhando para nós, somos pobres, olhando para Cristo, somos ricos.'
Portanto, para evitar deduções dicotômicas ou dualistas, é preciso reforçar, com Adloff, que, assim como o corpo é mais que as vestes (Mt 6.25), Paulo se refere à vida de Jesus, que se manifesta na carne mortal (v. 11b). Jesus não é uma máscara ideológica da vida, mas antes o corpo concreto, terreno, morto e nu, a vida criada e mantida por Deus. O 'homem interior1 de Paulo é corpo, membro no corpo de Jesus, arrastado para dentro da comunhão terrena do amor… (op. cit., p.239s). A renovação dia após dia, é, portanto, parte integrante do viver, e não conquista única. É afirmação de um dia que exorta ao dia seguinte, é espiritualidade unida à ética concreta (cf. também Ef 3.16; 1 Pé 3.4).
3. A balança: num dos pratos, a leve angústia do momento, no outro prato, o eterno peso da glória, de abundância em abundância, sobre qualquer medida, a glória abundante e transbordante (v. 17). A glória de que todos somos carentes (Rm 3.23), que está para ser revelada em nós (Rm 8.18) e que tem uma dimensão presente pela liberdade no Espírito (2 Co 3.17s.). Em contraposição ao peso pesado da glória, o peso pluma da tribulação é tão leve mesmo? Se compararmos as descrições do sofrimento de Paulo em 2 Co 4.8-10; 6.4-10; 11.23-33, verificamos que os mesmos não são bagatela. O contraste realça a alegria e disposição com que Paulo encara os reveses, e se lança à ação, não apenas como um comerciante, sem nenhuma garantia de saúde além da busca do lucro, mas com base num saber, numa promessa que vem se concretizando (cf. Lutero, literatura indicada). Paulo não fecha os olhos diante da realidade do sofrimento, nem do seu, nem do alheio. Encará-los faz parte de sua liberdade.
Veja a imagem em anexo.
4. Sofrimento produtivo: a figura se transforma, o prato leve, de cima, sobe tanto que derrama para dentro do prato debaixo. E o leve sofrimento que produz, rende, realiza, efetua. Ele é leve porque transfere seu peso, depositando para formar para nós um tesouro (cf. Mt 6.20s.). Mas, a produtividade não quer dizer sinergismo, cooperação para construir a auto-salvação. Em Cl 1.24 o sofrimento é entendido como completar o que falta no sofrimento de Cristo, para o bem do seu corpo, a Igreja. Nesta direção, valeria a pena indagar sobre a produtividade do nosso sofrimento. É o sacrifício que produz e potência a vida: os pais que, por causa dos filhos pequenos, sacrificam certas regalias e programas. A solidariedade, tão importante junto ao pequeno (partilhar o sofrimento alheio e solucionar suas causas: doença, injustiça, solidão, etc.) bem como junto a povos oprimidos. O dirigente eclesiástico que vence a preocupação com o nome de sua instituição e denuncia profeticamente uma injustiça gritante. O trabalhador que reconhece com naturalidade que luta salarial e participação ativa na política fazem parte de seu pão de cada dia. Todos eles revelam que o possível sofrimento não atemoriza, que os valores de sua vida têm outra base, que a maior glória de Deus é o homem vivo e com dignidade, e que suportam a tensão entre ação e paixão, pela fé (4.13; 5.7; cf. SM 25).
5. Atrás da paisagem: o que se vê não deve ser visado, mas sim o que não se vê (v. 18), pois isto é eterno. A negação é reforçada (gr. me) e o eterno não é descrito com detalhes, justamente porque os coríntios queriam ver, queriam ter boa impressão do apóstolo, queriam evidências da fé (cf. Voigt, op. cit., p. 227). Para Paulo, a salvação definitiva segundo sua verdadeira natureza não consiste na dádiva da glória divina (Rm 5.2; 8.18,21; 1 Co 15.43; 2 Co 4.17; Cl 1.27; 3.4; 1 Ts 2.12; 2 Ts 2.14) e, assim, de receber a vida eterna (Rm 2.7; 5.17,21; 6.22s; 2 Co 2.16; 5.4; Gl 6.8) bem como da incorruptibilidade e imortalidade (1 Co 15.53s), apesar de que essa descrição da salvação final corresponde plenamente às afirmações de Paulo. Segundo sua verdadeira natureza, porém, a salvação definitiva esperada por Paulo se constitui de comunhão interminável e não mais ameaçada 'com Cristo' e, através dele, com Deus Pai, o qual nos criou para a comunhão consigo… (Kümmel, op. cit., p. 269).
Assim como a beleza da fachada nada diz sobre a felicidade dos que moram na casa, assim a lembrança da fugacidade das coisas visíveis (cf. 1 Co 7.31) provoca um distanciamento: as aparências enganam. Expressa também a impaciência para que o mortal seja absorvido pela vida (5.4) e a alegria de ver a casa pronta já enquanto os alicerces estão sendo lançados (Voigt, op. cit., p. 227). Nesta existência escatológica, o segredo do novo, oculto sob a paisagem adversa, impele para uma impressionante força de ação. Nada de fatalismos, nada de passividade. É motivo de júbilo não precisar pregar, com palavra e ação, a si mesmo, mas a Cristo como Senhor (4.5). Dinamismo sem demonstração de poder, ousadia sem provas e sem documento, esta é a cruz do apostolado.
IV – Palavra viva
Embora não dependa da receptividade, a Palavra é boa-nova somente se for situada. Por isso, é necessário o máximo de concreticidade e atualização, no sentido de tornar eficaz hoje o que aconteceu em Jesus Cristo. O objetivo principal da prédica deve ser o de não apenas fazer ouvir, mas sim fazer dispor-se, levar à ação, à imitação do sofrimento do apóstolo. E isto não por legalismo, mas por graça, por causa da plenitude de vida em Cristo, possível num mundo decadente. Entretanto, a mesma Palavra é que provoca fedor de morte para a morte e aroma de vida para a vida (2 Co 2.15s). É esta a crise, o contrato de risco que, embora dolorosa às vezes, faz com que pregador e ouvinte realimente vivam e pratiquem a fé a partir de Deus, e não de si mesmos.
Há dois perigos nesta pregação: falar mais do contexto do que do texto (apesar da incomum importância daquele), e apresentar um tratado de teologia da cruz que soaria como ladainha e não como louvor da libertação. Sugiro simplesmente manter a sequência exposta acima, sob II e III. Após introdução referente à paisagem (contexto), desenvolver os três pontos centrais do texto: o incansável (v. 16), a balança desequilibrada e produtiva (v. 17), e o olhar (skopeo) atrás das aparências, como exercício da existência escatológica (v. 18).
V – Sugestões para celebrar
1. Hinos: HPD nos 68,172,229, 263.
2. Confissão de pecados: Ó Deus, Criador das coisas visíveis e invisíveis, Pai misericordioso, nós te agradecemos porque tu nos ouves. Com humildade e confiança nós te confessamos nossa culpa. É mais fácil para nós admitirmos a culpa como generalização, e muito difícil para nós admiti-la quando ela é concreta, quando é o nosso pecado. Nós temos medo, e deixamos que o medo dos outros e diante dos problemas nos conduza por caminhos errados. Temos dúvidas, desconfiamos de nossa razão e da nossa consciência. Nós falhamos porque não entregamos inteiramente nas mãos de Cristo a nossa vida, e os problemas do dia-a-dia. E faltamos no amor e na solidariedade com os que sofrem. Ó Senhor, dá-nos uma nova vida, uma nova visão. Por Jesus Cristo morto e ressuscitado, tem piedade de nós, Senhor!
3. Perdão: Efésios 2.8-10.
4. Pedido de concentração: Querido Deus, dá-nos agora o recolhimento, o silêncio interior para podermos ouvir e entender a tua Palavra, para que ela nos renove e nos ponha em movimento. Neste caminho, ó Pai, mostra-nos como mostraste aos discípulos no caminho a Emaús, que era necessário que Cristo sofresse para depois entrar na glória. Concede-nos que possamos assumir a cruz de sermos portadores da tua proposta neste mundo. Amém.
5. Intercessão: Sabemos do segredo da vitória sobre morte e conflitos, através de Jesus. Por isso pedimos para nós: ânimo para levar avante a causa do Reino de Deus; mais solidariedade com os pequenos, oprimidos, e com os povos mais explorados e agredidos da América Latina; trabalho intenso para concretizar modelos de convívio mais justos e igualitários no Brasil; pela organização popular contra os interesses do capitalismo; pelos desempregados; pela IECLB, pelo CONIC, pelo espírito de unidade a serviço do povo, para honra de Deus.
VI – Bibliografia
– ADOLFF, K. Exaudi – 2. Korinther 4.7-18, In: Göttinger Predigtmeditationen, Göttingen 1972.
– KÄSEMANN, E. Exegetische Versuche und Besinnungen, Göttingen, 1965 V. 1.
– KILPP, N. 2 Coríntios 4.7-18. In: Proclamar Libertação, São Leopoldo, 1978 V. 3.
– KÜMMEL, W. G. Síntese Teológica do Novo Testamento. São Leopoldo, 1974.
– VOIGT, G. Jubilate 2. Kor. 4,16-18. In: Die himmlische Berufung. Göttingen, 1981.
Sugestão de leitura complementar: LUTERO, M. Um sermão sobre sofrimento e cruz, In: Pelo Evangelho de Cristo. São Leopoldo/Porto Alegre, 1984.