Prédica: Apocalipse 2.8-11
Autor: Friedrich Gierus
Data Litúrgica: Penúltimo Domingo do Ano Eclesiástico
Data da Pregação: 13/11/1988
Proclamar Libertação – Volume XIII
l – O contexto
A perícope para o penúltimo domingo do ano eclesiástico se encontra no último livro da Bíblia, o Apocalipse. Não entramos em pormenores para comentar conteúdo e finalidade do Apocalipse. Chamamos apenas a atenção para o 1o parágrafo da exegese do P. Ervino Schmidt, na página 228 do 7. volume de Proclamar Libertação. Por isto vamos direto para o contexto. Nosso trecho é a 2- das sete cartas dirigidas a diversas comunidades. Todas as missivas têm a mesma característica:
1) Indicam o remetente, sempre iniciando com a mesma fórmula: Estas cousas diz. Em seguida revelam características da pessoa do remetente,
2) O remente faz saber que é conhecedor de todos os acontecimentos que envolvem as sete comunidades. Pois cada carta começa com a afirmação: conheço…
3) São mencionados particularmente os acontecimentos que ocorrem nas sete comunidades.
Dependendo da situação, segue:
a) Reconhecimento das atitudes tomadas (2.2+3; 2.13; 2.19);
b) Critica de omissões, erros e pecados graves (2.4; 2.14 e outros);
c) Ameaça e repreensão (2.5; 2.23; 3.9; 3.19);
d) Consolo e conforto (2.10; 2.24; 3.4; 3.10).
4. Para os fiéis há recompensa: Ao vencedor é prometido:
a) que se alimentará da árvore da vida (2.7);
b) que não sofrerá dano da segunda morte (2.11);
c) que receberá do maná escondido (2.17);
d) que terá autoridade sobre as nações (2.26);
e) que será vestido de vestiduras brancas (3.5);
f) que será coluna no santuário de meu Deus (3.12);
g) que sentar-se-á comigo no meu trono, assim como também eu venci e me sentei com meu Pai no seu trono (3.21).
5) Todas as cartas terminam com a frase: Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas.
Estas características das sete cartas mostram que não se trata de missivas individuais, mas sim, elas representam uma unidade estilística do Apocalipse que transmite à cristandade toda, representada pelas sete comunidades, uma mensagem de conforto, crítica, repreensão, consolo e a certeza de que o Primeiro e o Último sempre estará presente, acompanhando e cuidando do seu povo. Por isto, em todas as cartas ele afirma: eu sei. Temos, portanto, nas sete cartas a parte parenética do Apocalipse, que representa uma unidade do livro. Neste contexto devemos ver o nosso trecho bíblico.
II – A estrutura do texto
A perícope tem estilo de carta e apresenta a seguinte estrutura:
1) O destinatário (v. 8a)
2) O remetente (v. 8b)
3) O sofrimento da comunidade (v. 9)
4) Consolo e promessa para os fiéis (v. 10)
5) Conclusão geral e expectativa para os vencedores (v. 11)
III – O texto
1) O destinatário:
Ao anjo da igreja em Esmirna escreve: (v. 8a)
A carta é dirigida ao anjo da igreja em Esmirna. Há diversas hipóteses em tomo do anjo. A ideia de que ele seja o enviado ou representante de Deus, é veterotestamentária. Ao lado desta compreensão o anjo ainda pode ser o líder religioso que fica entre o povo e Deus, p. ex., o profeta (Ageu 1.13) ou o sacerdote (Ml 2.7). Deduzimos que o anjo da comunidade seja o presbitério e/ou o bispo da mesma. Ele representa a comunidade. A palavra, melhor, a mensagem é dirigida, via anjo, à comunidade. Esmirna é uma cidade próspera. A população vive de negócios. Há vida cultural diversificada. A religiosidade é intensa. Ò culto ao imperador de Roma (na época Domiciano) predominou a cena. O judaísmo, bem representado na população, era religio licita, isto é, uma religião tolerada. Esmirna era lugar do martírio do bispo Policarpo que foi queimado por volta de 155.
2. O remetente:
Estas cousas diz o primeiro e o último, que esteve morto e tornou a viver. (v. 8b)
A auto-apresentação do remetente retoma atributos já mencionados em cap. 1.17 e 18. Primeiro e último é um título que indica a soberania absoluta. O título era conhecido entre os judeus. Para eles somente Javé merecia este atributo (Is 44.6 e 48.12). O fato de que Jesus Cristo o recebeu e/ou assumiu este título, era para um judeu uma grave blasfêmia, um dos motivos principais para perseguir os cristãos.
O remetente não somente reclama para si a soberania absoluta (Lu sou o primeiro e o último – Ap 1.17 – Eu e o Pai somos um – João 10.30), ele também só identifica com o Jesus histórico, aquele que esteve morto e tomou a viver. Com isto a seita dos cristãos (na perspectiva judaica) recebe legitimidade. Pois elos não adoram somente um profeta que morreu na cruz, mas sim, na pessoa dolo, também o Primeiro e o Último. Assim a auto-apresentação do remetente qualifica também o conteúdo de sua mensagem à igreja de uma maneira toda especial. Quer dizer, não ê qualquer um que manda o recado à igreja, mas sim é o eterno Senhor pessoalmente que se manifesta.
3) O sofrimento da comunidade local de Esmirna:
Conheço a tua tribulação, a tua pobreza, mas tu és rico, e a blasfêmia dos que a si mesmos se declaram judeus, e não são, sendo antes sinagoga de Satanás. (v. 9)
O Senhor soberano conhece a situação da comunidade. Oida aponta para um conhecimento adquirido pela onipresença (eu sou o primeiro e o último!) e pela própria experiência (aquele que esteve morto e tornou a viver).
A comunidade sofre tribulação (thlipsis), quer dizer, toda forma de sofrimento que a comunidade escatológica há de suportar. Tribulação faz parte dos últimos tempos antes da vinda do Filho do homem (Mt 24.21) e se concretiza em guerra, perseguição, tentação, ódio e privação. Assim a comunidade de Esmirna está sendo perseguida pelo Estado Romano porque não aceita o culto ao imperador e recebe todo tipo de hostilidade por parte dos judeus que mobilizam tudo para eliminar a seita dos cristãos. A igreja de Esmirna, sobretudo, é pobre.
Ela é composta de pessoas humildes e com poucos recursos. São desprezados, oprimidos e escravos. Provavelmente trata-se de uma comunidade nos moldes de Coríntio (1 Co 1.26ss.). Mas o Soberano lhe dá o atributo: tu és rica! Esta riqueza corresponde aos valores que provêm de Deus para todos que nele crêem e confiam nas suas promessas. Veja Tiago 2.5; compare também Lc 12.21! Porém, a pobreza externa não é o parâmetro para os valores que Deus enxerga. A pobreza aqui é a que o apóstolo Paulo menciona em 2 Co 6.10.
Os judeus que são identificados com a sinagoga de Satanás devem ser idênticos com os que também dificultam a vida dos cristãos em Filadélfia. Eles mentem como o pai da mentira (João 8.44). O apóstolo Paulo também menciona judeus mentirosos que se apresentam como autênticos. São falsos apóstolos, diz o apóstolo. Eles seguem o exemplo de Satanás que se transforma em anjo de luz (2 Co 11.13ss.). As intrigas destes judeus contribuem para a tribulação da igreja. Uma bem-aventurança menciona esta situação: Mt 5.11 s.!
4. Consolo e promessa aos fiéis:
Não temas as cousas que tens de sofrer. Eis que o diabo está para lançar em prisão alguns dentre vós, para serdes postos à prova, e tereis tribulação de dez dias. Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da vida. (v. 10)
Não temas! Esta exortação, este imperativo é qualificado pelo que se apresentou: eu sou o primeiro e o último. Não há tribulação que acontece despercebida. Isto, por outro lado, não significa que Deus provoca a tribulação. Mas ele permite que ela aconteça. Ele conhece todas as ocorrências, também as escondidas, se bem que o sofredor se considera muitas vezes abandonado e sem recursos. A aparência engana! Aquele que esteve morto e tornou a viver passou pelos sofrimentos do ódio (crucifica-o! crucifica-o! – Mt 27.23), da tentação (se tu és Filho de Deus, desce da cruz! – Mt 27.40) e do abandono (porque me desamparaste? – Mt 27.46) na cruz. Seu não temas não é cheque sem fundo, mas sim, dá confiança e força. Ele tem credibilidade. Quem confia nele não é imune contra o sofrimento. Ao contrário, a tribulação é inerente ao discipulado. O diabo, adversário de Deus, recebe permissão de provar os crentes assim como Jo do AT foi provado por Satanás para testar a fé. Mas esta permissão não dá plena liberdade a Satanás. De acordo com a convicção de Paulo, o homem não é testado além do suportável (1 Co 10.13). Além disso sabe que todas as coisas (também tribulação!) cooperam para o bem daqueles que amam a Deus (Rm 8.28).
A tribulação é de dez dias. Não se trata primordialmente de uma indicação cronológica no sentido de um espaço de tempo, mas sim, no sentido de um período suportável, i. e., dá para aguentar! A aflição, a tribulação é limitada.
Além do não temas o Senhor da Igreja explica o porquê do sofrimento (Satanás recebeu permissão de provai a fidelidade) e encoraja para suportá-lo, dando a expectativa para uma vida em plenitude. A coroa representa plenitude, riqueza, soberania. Pois somente os reis e príncipes tinham coroas (além dos vitoriosos nas competições esportivas – 1 Co 9.25). Vale a pena analisar o que os vencedores receberão: Ap 2.7; 2.11; 2,17; 2.2G; 3.5; 3.12; 3.21. Tudo isto significa coroa da vida.
5) Conclusão gera! e expectativas:
Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas. O Vencedor, de nenhum modo sofrerá dano da segunda morte. (v. 11)
Esta conclusão se repete em todas as sete cartas (compare também Mt 11.15 e Mc 7.16). Quem tem ouvidos… expressa a insistência e urgência para gravar a mensagem na memória. Pois ela significa vida para aquele que a aceita e vive de acordo. Ouvir não significa apenas registrar, mas sim, é perceber no sentido de expor-se para que a mensagem possa penetrar e transformar a personalidade e, com isto, abrir novos horizontes de vida. Neste sentido também é colocada a expectativa: o vencedor não sofrerá dano da segunda morte! De acordo com a concepção judaica, a primeira morte é o fim biológico neste mundo. A segunda morte seria então a morte eterna. Isto é, aquele que é fiel até a primeira morte não sofrerá a segunda. Falando em termos positivos precisamos apenas repetir o que Jesus formulou em João 6.47: Quem crê, tem a vida eterna.
IV – Ponderações com vistas à prédica
1) A prédica deve observar o contexto da nossa perícope. A segunda carta, dirigida ao anjo de Esmirna como as demais missivas, tem eminentemente caráter parenética. Ó Ressurreto consola e encoraja sua igreja. Ao nosso ver, a prédica tem que refletir esta parênese. É evidente que a situação normal das nossas comunidades no Brasil hoje não reflete perseguição nos moldes como a cristandade a sofreu no século l e II, ou durante o 3o Reich na Alemanha nazista.
Mas existe outra forma de tribulação que é muito mais perigosa: a acomodação. Ela é como o sono para o motorista. O sono apresenta-se agradável, mas quando dominou a vitima pode haver um acidente fatal. Uma comunidade que não enxerga mais a sua missão, i. é., a Missão de Deus, e que vive somente em função de sua tranquilidade, está correndo mais perigo de sucumbir do que uma igreja perseguida por motivo de seu testemunho.
2) O pregador terá que transmitir à comunidade que seu Senhor sabe o que se passa (oida!). Ele conhece a acomodação e o desinteresse, mas ele também conhece a injustiça e a perseguição que ocorre em área de conflito por causa de terras entre posseiros, sem-terra, Índios e fazendeiros e onde a Igreja denuncia corajosamente injustiça e opressão. Dependendo da situação da comunidade, o pregador tem que fazer ver o consolo (conforto), não temas! – mas também a exortação: sê fiel! Ser fiel significa seguir inalteradamente os passos daquele que esteve morto e tornou a viver, e superar a acomodação como qualquer forma de tentação no sentido de Mt 4.1-11, ou seja, na fuga do sofrimento.
3) A pobreza não deve ser explorada ideologicamente como programa. Nem todos os que estão pobres são, eo ipso, os ricos nos termos de Ap 2.9! Há somente um fato: os pobres estão mais pertos do Reino porque são mais abertos para a graça. A riqueza geralmente corrompe e fecha os olhos para a verdadeira riqueza em Deus.
4) A sinagoga de Satanás hoje não são mais os judeus, mas existem outros grupos que querem desacreditar o evangelho. Seicho-no-iê, seita moon e outros movimentos sincretistas atacam com propostas enganadoras e desviam nossos membros do evangelho.
5) Deve ficar bem claro na prédica que o discipulado basicamente é uma vivência de luta. Luta contra a própria acomodação, luta contra toda forma de desvio do evangelho de Jesus Cristo, luta contra as tentações do poder e da riqueza, luta contra toda forma de egoísmo. Por isto: sê fiel! Siga fielmente os passos do Cristo sofredor e assuma sua vocação e o testemunho para participar também do Cristo ressurreto.
A fidelidade ao Cristo ressurreto inclui a possibilidade do martírio: sê fiel até a morte! O testemunho profético e a luta pela causa do Reino não precisa ter consequências extremas no sentido do sofrimento até a perda da vida, mas carregar a cruz inclui esta possibilidade. Isto nos conscientiza de que o discipulado não pode ser mera questão de tradição ou forma social; pelo contrário, é uma caminhada em responsabilidade diante do Senhor eterno sob a promessa da participação da vida plena em toda sua extensão escatológica.
6) A prédica, portanto, há de ser:
a) um convite para o seguimento do Cristo crucificado e ressurreto;
b) um encorajamento de vivenciar a fé no mundo hic et nunc;
c) um conforto na luta pela causa do Reino;
d) uma promessa com vistas à vida plena em termos escatológicos, quer dizer, vida eterna que hoje e aqui tem seus reflexos.
V – Subsídios litúrgicos
1. Confissão dos pecados: Nosso Senhor e Pai por Jesus Cristo! Chegamos a tua presença carregando as nossas dúvidas, perguntas, falhas, enfim, o nosso pecado que nos separa de ti. Estamos cientes de que não procuramos com ênfase a orientação da tua palavra. Por isto caímos em tentação tornando-nos vítimas do egoísmo, da mentira, da riqueza enganadora e do poder que corrompem e se opõem ao teu Reino. Fugimos da cruz e das consequências de uma fé atuante. Perdoa-nos e permite-nos reiniciarmos a caminhada de fé contigo.
2. Coleta: Senhor, a tua Igreja vive inserida num mundo cheio de injustiças, de mentira e de corrupção. Não permitas que o teu povo seja desviado do caminho da tua verdade e da tua salvação. Dá coragem para uma confissão e vivência de fé que aponte para ti e teu Reino. O teu Santo Espírito seja o nosso guia nas horas de tribulação. Por Jesus Cristo, nosso único Senhor. Amém.
3. Assuntos para oração final: Agradecimento e louvor pela liberdade de ouvir e pregar a palavra de Deus e ter comunhão com os irmãos na fé. Pedir em favor dos perseguidos e vitimas de injustiça no Brasil e no mundo todo. Interceder por aqueles que se afastaram da palavra de Deus tornando-se vítimas do próprio egoísmo, da acomodação, das riquezas que corrompem. Colocar problemas concretos da comunidade pedindo consolo, orientação e coragem de fé para que o povo de Deus torne-se testemunha da justiça de Deus e de seu amor em Jesus Cristo, oferecendo comunhão e esperança. Interceder pela direção da igreja a fim de que receba sabedoria e coragem para desincumbir-se de suas tarefas de acordo com o evangelho. Pedir também a favor das lideranças em todos os níveis da igreja. Por fim, pedir força e orientação do Espírito Santo para que nós todos sejamos fiéis na caminhada do povo de Deus neste mundo.
VI – Bibliografia
– BORGGREFE, F. Homiletische Monatshefte 57 (12), 1982.
– COENEN, L. Theologisches Begriffslexikon zum Neuen Testament. Wuppertal, 1979.
– ERDMANN, C. R. Apocalipse de João. São Paulo, 1960.
– VOIGT, G. Meditação sobre Ap 2.8-11. In: ——————. Die himmlische Berufung. Göttingen, 1980.