Prédica: Apocalipse 7.9-17
Autor: João Guilherme Biehl
Data Litúrgica: Dia de Natal
Data da Pregação: 25/12/1987
Proclamar Libertação – Volume XIII
1 – Colorindo o texto
Pier Paolo Pasolini, nascido em Bolonha, na Itália, a 5 de março de 1922, soube como poucos neste século fazer de suas palavras, suas imagens cinematográficas, suas ações escandalosas, enfim, de toda sua vida, uma denúncia da moderna sociedade capitalista, bem como um anúncio de que algo novo deveria, poderia, ser possível, ainda que somente no plano relacional. A liberdade era sua razão última. Então, que sentido tem viver, se não formos fiéis, de modo desesperado e talvez mesmo obtuso, à primeira e grosseira ideia de liberdade que, quando somos jovens, nos impele a agir? (Pasolini, Caos, p. 168). Cedo deixou os provincianismos de lado. Ele sabia, a exemplo dos podres poderes do capitalismo transnacional, que os mapas já não tinham mais fronteiras. Por isso também viu, sóis nascendo em cada esquina. Soube profetizar uma utopia universal, que pleiteava por nada menos que uma humanidade livre. É claro que a história não será mais doravante a história das nações, ou seja, de poderes nacionais: mas será a história de toda a humanidade, unificada e homologada pela civilização industrial e tecnológica… O Poder, que era nacional, tende a se transformar em transnacional: continuando a ser poder. Ou seja, no caso concreto, fazendo sua a conquista da Lua. A conquista da Lua, portanto, já é estatisticamente (e não apenas do ângulo do pretenso póstero) um feito da humanidade: mas, para que se torne verdadeiramente tal, é preciso que essa humanidade seja livre. Falo – sei bem – como utópico. Mas ou somos utópicos ou desapareceremos. (Pasolini, Caos, p. 174). Conforme Jean Duflot (As Ultimas Palavras do Herege, p. 14), ele sabia ler os sinais dos tempos: Pasolini não exclui a chegada do tempo da Besta. A ameaça de um apocalipse do Capital visita frequentemente sua percepção da história. Tornou-se perigoso a todos os poderes constituídos, fossem políticos, económicos, sociais, religiosos. O profeta se tornou herege, louco. Processos criminais, censuras, linchamentos e por aí afora. A repressão correu solta. Dizia ele: Pois saibam que, eu, vivi o fascismo em meu corpo. (As Últimas Palavras do Herege, p. 227). A 2 de novembro de 1975 foi assassinado. Pensaram que teriam força suficiente para calar sua vida, seu protesto, sua utopia. Mas esqueceram que você pode matar um homem, mas não sua canção quando ela for cantada em todo o mundo! (poema de Holy Near, EUA).
Foi impossível não me lembrar do Pasolini, enquanto lia, enquanto me deixava invadir pelo texto proposto para a reflexão. Por detrás da utopia, da visão de Ap 7.9-17, está uma comunidade cristã que paraleliza em muitos aspectos a vida do criador de, entre outros, Pocilga, O Evangelho de São Mateus, Decameron, Os Contos de Canterbury. Pois vejam só… A comunidade joanina (distinta de outras comunidades cristãs com estruturas piramidais/hierárquicas, sob liderança e influência petrina) reunia a marginália daquela sociedade: mulheres, escravos, crianças, enfim, pessoas que no cotidiano deviam obediência incondicional ao Pater Famílias, isto é, ao pai, patrão, imperador, aos poderes masculinos dominantes. E ali na comunidade experimentavam uma nova forma de relacionamento, agora igualitário. É claro que, pouco a pouco, foram se tomando críticos às estruturas domésticas, produtivas, políticas dominantes. É que Em Cristo não pode haver judeu, nem grego, nem escravo, nem liberto, nem homem, nem mulher… (Gl 3.27,28). A exemplo de Pasolini, passaram a, através de palavras e práticas, criticar os poderes vigentes. Anunciavam também sua destruição. A besta haveria de ser exterminada. E liberdade seria o pão nosso de cada dia. Quer dizer, as mulheres, os escravos, as minorias que encontravam espaço e assumiam liderança na comunidade joanina começavam a representar uma ameaça ao estado (e também a comunidades eclesiásticas de um cunho mais hierárquico), porque pleiteavam na sociedade a liberdade que já experimentavam ali no contexto eclesial. (Qualquer semelhança com o que acontece em comunidades de base menos clericalizadas não é mera coincidência!). Quer dizer, o Evangelho era ainda poder transformador na sociedade! E estas comunidades, como fez o cineasta italiano, passaram a anunciar um novo tempo, onde a escória da humanidade, livre de todo sangue, opressão e marginalização, vestidos de vestiduras brancas, celebraria com palmas nas mãos a liberdade, a justiça, o amor, a paz. Neste novo tempo o trono, o poder, não mais estaria nas mãos de Nero, Domiciano, ou qualquer outro matador. Mas o povo estaria no poder, ao redor do trono, no qual estaria assentado o Cordeiro que estenderá sobre eles o seu tabernáculo. Jamais terão fome, nunca mais terão sede, não cairá sobre eles o sol, nem ardor algum, pois o Cordeiro que se encontra no meio do trono os apascentará e os guiará para as fontes da água da vida. E Deus lhes enxugará dos olhos toda lágrima. Só que proferir, celebrar, praticar momentos desta utopia não era tarefa fácil, não. Roma reprimiu, torturou, queimou, crucificou estas comunidades como pôde. Matou Pasolini em 1975. Bem antes, de 64 a 68, Nero cruelmente perseguiu os cristãos, para encobrir sua loucura de ter mandado incendiar bairros da periferia de Roma. Em 97-98 (provavelmente a época em que o Apocalipse se situa) Domiciano desencadeou outra perseguição generalizada contra as comunidades cristãs. Mas não houve morte que matasse a visão de liberdade, de nova vida, que motivava estes mártires. E esta cantiga ainda é ouvida e cantada hoje… Somos gente nova vivendo a união, somos povo, semente de uma nova nação… Minha alma engrandece o Deus libertador. .. derruba os poderosos dos seus tronos erguidos… Cabe a nós hoje continuar entoando, concretizando sinais desta utopia cristã, tão lindamente assimilada e poetizada pelo Milton Nascimento:
Quero a utopia, quero tudo e mais,
quero a felicidade dos olhos de um pai,
quero a alegria, muita gente feliz,
quero que a justiça reine em meu país,
quero a liberdade, quero o vinho e o pão,
quero ser a amizade, quero amor, prazer.
quero nossa cidade sempre ensolarada,
os meninos na praça e o povo no poder eu quero ver…
Assim dizendo a minha utopia
eu vou levando a vida,
eu vou viver bem melhor,
doido pra ver o meu sonho
um dia se realizar…
II – Textualizando cores
A partir do conflito central entre o culto a Cristo e o culto ao Imperador (Ap 13.14,15), a comunidade joanina (com isso quero dizer que o texto do Apocalipse não é fruto de um homem só, chamado João, mas sim de uma comunidade, provavelmente liderada por este apóstolo. O texto é produto coletivo!), através do escrito do Apocalipse, traz à tona os demais conflitos externos e internos que a atingem. A situação é de destruição política, económica e social (Ap 18.9-24). Os cristãos eram perseguidos por terem práticas sociais alternativas. As comunidades cristãs também estavam em conflito com as sinagogas. Internamente experimentavam disputa de poder, cansaço, desânimo, rotina, falta de memória histórica (vide cartas conclamando as igrejas à fidelidade: Ap 2-3). João e sua comunidade escrevem como irmão e companheiro na tribulação (Ap 1.9). Não escrevem cartas genéricas. Conhecem a realidade, até citam nomes de pessoas, refletem sobre fatos e problemas concretos. Isto lhes dá autoridade para elogiar e reprovar, dar conselhos e conclamar à conversão. Despertam a memória das comunidades, procurando unir os fatos circundantes com a história do Antigo Testamento. Ligar o AT com o NT, neste caso, não é assunto teórico, mas eminentemente prático: é ligar FÉ com VIDA. Em última análise, João e sua comunidade, a partir dos conflitos presentes, relêem o passado e descobrem que Deus não perdeu o controle, mas está agindo para libertar o povo no futuro próximo.
Nosso texto situa-se no contexto maior de Ap 4-11. Ali João e sua comunidade oferecem aos cristãos uma visão geral da história, dos últimos acontecimentos; os animam para que não venham a perder a esperança; relativizam o impacto da opressão imposta pelo Império e apontam para a missão que os pobres, o povo de Deus, têm. Em Ap 6.1-7.17 temos a abertura do livro de sete selos. Em 6.1-8 fala-se do passado; em 6.9-11, com a abertura do quinto selo, fala-se do presente, daquilo que o povo está vivendo; e em 6.12-7.17, através da abertura do sexto selo, é traçado um perfil do futuro, quando se prenuncia a derrota dos opressores (6.12-17), e também se estabelece a missão do povo perseguido (7.1-17), fortalecendo, assim, sua esperança. De 8.1-10.7, com a abertura do sétimo selo, são apresentadas as sete pragas finais da história. Antes da vinda da sétima, praga, da chegada final do Reino (11.14-19), há um pequeno intervalo, onde é apresentada a visão de um livrinho (10.8-11), e a visão das duas testemunhas, Moisés e Elias (11.1-13).
Nosso texto, Ap 7.9-17, ajuda a esclarecer o que precede no capítulo 7. Os 144 mil representam o antigo (12 tribos) e o novo Israel (12 apóstolos). 12 X 12 X 1000 (o número da perfeição) = 144.000! O povo de Deus que veio da opressão no Egito, passou pela tribulação dós diversos impérios, não é mais igual a determinado grupo ético. Pelo contrário, é uma grande multidão, de todas as nações, tribos, povos e línguas. A proposta de João e de sua comunidade é de que o Reino de Deus é por excelência ecumênico e universal. O que nos torna parte desta multidão não é determinado dogma, laço sanguíneo, etc. e tal. É, outrossim, o mesmo comprometimento com a construção de um novo tempo, o que, por seu lado, provoca perseguição, cruz, morte. Esta multidão não acontece fora deste tempo, desta história. E viável já agora no canto, na celebração, na liturgia que energiza, dá força, anima a caminhada…… com palmas nas mãos; e clamavam em grande voz, dizendo: Ao nosso Deus que se assenta no trono, e ao Cordeiro, pertence a salvação. Mas esta celebração não é, de forma alguma, descontextualizada. Por isso ousei anexar ao texto que me foi dado, Ap 7.9-12, os versículos 13-17. Nesta segunda parte nos é apresentada a utopia cantada e celebrada por esta multidão sofrida e perseguida. Não tem nada a ver com vidas extra-terrestres. A utopia do Reino de Paz e Justiça, rebento em Jesus Cristo, na sua prática e pregação do amor, acontece já aqui e agora quando cessa a tribulação (7.14); quando não há mais fome, sede, nem ardor algum (7.16); quando todos e todas não mais somente sobre-viverão, mas beberão das fontes da água da vida. (7.17). E Deus lhes enxugará dos olhos toda lágrima… Quer dizer, a utopia que nós cristãos, junto com a comunidade joanina, celebramos não é eclesiocêntrica, não se limita às nossas paredes institucionais. Também não queremos fugir deste chão tão cheio de cães raivosos. Pelo contrário, queremos expulsá-los e, juntos, construir mais pedaços de céu aqui na terra… Como diz o mestre Neruda: … e porque quase sou de terra pura tenho colheres para o infinito… Auxílio, auxílio! Ajudem! Ajudem-nos a ser mais terra cada dia! … E é isso que em última análise nosso texto, a vida de Pasolini, as canções de Milton Nascimento, o Evangelho de Jesus Cristo, pedem de nós… que cientes dos sintomas e causas da morte circundante ousemos dar as mãos e juntos, em mutirão, arriscar ser mais terra cada dia, viabili-zando sinais do Reino no repartir o pão, na participação junto aos movimentes populares, no abrir os braços em abraços, no caminhar, na labuta pela criação de comunidades eclesiais alternativas, de uma matiz igualitária, o por aí afora… Nosso canto por uma libertação holista deve pressupor também urna análise holista dos conflitos com os quais somos confrontados. São as maiorias, oprimidas pe-las bestas classista, racista, sexista, militarista quo haverão do, unidos nas suas lutas conjuntas o específicas, se achegar ao trono o construir um novo poder, que viabilize um relacionamento do igual pra igual, sem mediações globais, multinacionais, etc. e tal. Nossa utopia não deve ser setorizada, limitada o limitante. Não queremos nada mais do que um planeta novo, neste final de milénio que exala veneno por todos os poros…
E este texto tem tudo para ser cantado em meio às celebrações natalinas. .. Nas margens do mundo, entre os animais, a gente pobre, mulheres, pastores, carpinteiros, dá à luz à semente do novo, o menino Jesus… E todos juntos proclamam: Glória a Deus nas maiores alturas e paz na terra entre os homens (sic!). Jesus veio a encarnar o projeto de construção de novos céus e nova terra, na qual a comunidade joanina e também nós hoje estamos envolvidos.. As canções entoadas por Jesus, João, Pasolini não morreram. De jeito nenhum. E isto deve nos fortalecer a que também nós, apesar de todas as pressões e repressões circundantes, possamos continuar lutando e estando vivos… Lembro agora da última parte de um poema da camarada Margarida Áliguer:
Falávamos ambos num sussurro
do tempo passado e do futuro.
Vadeamos uma longa treva,
passamos pelas balas em crivo:
Você dizia: 'Somos de pedra'.
É mais do que pedra.
Estamos vivos.
E utopia é isso. Em meio às balas, aos conflitos, arriscar ser mais do que pedra, ser terra pura, estar vivos e cantar! E no Natal podemos celebrar, sempre de novo, que o nosso Deus e não César, está no trono. Que ele haverá de nos guiar para as fontes de água viva. Que juntos poderemos enxugar as lágrimas uns dos outros. Deus é verbo. É ação. Acontece através de nós, neste tempo e nesta história.
Com relação à prédica, em termos mais concretos, eu consigo vislumbrar o seguinte… A partir da descoberta de conflitos vividos pela comunidade local durante o ano que finda, traçar um paralelo com conflitos vivenciados pela comunidade joanina. E esta comunidade, em meio à dor e ao sofrimento, ainda arrisca a celebração da utopia de um novo tempo. Também nossas comunidades hoje podem se apropriar desta utopia. Nas liturgias, no partir do pão, em meio às lutas populares ela nos energiza, nos mantém vivos, capazes de continuarmos lutando. Jesus Cristo, sua prática e pregação do amor, nos capacitam a concretizar sinais já aqui e agora deste novo céu e nova terra. Talvez seria interessante envolver a comunidade ou mesmo o pastor a enunciar uma utopia local, contextualizada. Como exemplo, lembro ainda a utopia rabiscada por Moagi, um menino de oito anos, residente em meio aos tentáculos da besta do Apartheid, na África do Sul:
Quando eu for mais velho, eu gostaria de casar, ter uma esposa, duas crianças, um menino e uma menina, e viver numa casa grande, e ter dois cachorrinhos e liberdade…
Ill – Da liturgia
1. Confissão de pecados: Deus de amor, em comunidade chegamos à tua presença, reconhecendo que não temos, no dia-a-dia, amado ao nosso próximo, à natureza, a nós mesmos e nem. a ti, como nos ensinou nosso mestre, Jesus Cristo. E muitas vezes, diante dos poderes que produzem a morte, ficamos passivos, com medo, desanimados. Não-mais ousamos sonhar e concretizar já agora sinais do teu Reino de paz e justiça. Ó Deus, força nossa, liberta-nos do medo para a coragem, da desesperança para a esperança, da passividade para o engajamento junto aos mais fracos na construção de novos céus e de nova terra. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Deus da vida, continua sempre abrindo nossas mentes, corações e mãos à tua palavra libertadora. Dá com que ela nos impulsione ao mutirão, à solidariedade, ao repartir juntos, á celebração da vida. E que possamos, de fato, continuar, assim, nos comprometendo com a concretização de uma sociedade onde todos possam se relacionar de igual pra igual, sendo, então, a tua imagem aqui na terra. Amém!
3. Oração final: Orar em favor: do povo brasileiro que sofre perseguição e terrorismo por parte das elites governamentais locais em aliança com o capital transnacional; das mulheres, negros/as, crianças, idosos/as que ainda são tão marginalizados e explorados; da comunidade local (vide conflitos específicos que ela enfrenta), das famílias, dos indivíduos participantes para que possam trabalhar e sonhar juntos no sentido de edificar relacionamentos igualitários, seja no trabalho, na igreja, na escola, na cidade, etc.; enfim, a favor da paz na terra, de um mundo sem lágrimas, sem fome, sem dor (de preferência fazer menção a expressões utilizadas na prédica!). Talvez seja possível também se valer de alguns poemas já mencionados. Introduzo mais um, da poetisa Cora Coralina, lá da velha Goiás:
Tempo virá. Uma vacina preventiva de erros e violência se fará. As prisões se transformarão em escolas e oficinas. E os homens, imunizados contra o crime, cidadãos de um novo mundo, contarão às crianças do futuro, estórias absurdas de prisões, celas, altos muros, de um tempo superado.
IV – Bibliografia
– ANDERSON, A. F. e GORGULHO, Frei G. S. Não tenham medo – Apocalipse, São Paulo, 1977.
– CHARPENTIER, E. Uma Leitura do Apocalipse. São Paulo, 1983.
– DUFLOT, J. Diálogo – As Últimas Palavras do Herege. São Paulo, 1982.
– RUBEAUX, Francisco. A Luta Permanente. In: Estudos Bíblicos. Petrópolis, 6:65-77,1986.
– VANNI, Ugo. Apocalipsis. Navarra, 1982.
OBS. 1: Me vale ainda das anotações de um curso sobre Apocalipse ministrado por Carlos Mesters, pelo CEBI, em Viamão/RS, outubro de 1986.
OBS. 2: Para quem quiser aprofundar a questão do discipulado de Iguais no cristianismo primitivo, bem como o conflito entre comunidades joaninas e petrinas, vide o livro de Elizabeth FIORENZA, Bread and not Stone. Boston, Beacon Press, 1984. Eu próprio já escrevi um pouco sobre o assunto no primeiro número do Boletim Informativo – CEBI/SUL, de 1986, e no primeiro número de 1987.