Prédica: Atos 8.26-40
Autor: Valdemar Witter
Data Litúrgica: 7º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 10/07/1988
Proclamar Libertação – Volume XIII
I – Introdução
Uma vez estabelecido o trabalho missionário em Samaria (v. 25), Filipe foi enviado peto Espírito Santo a entrar em contato com o alto funcionário, tesoureiro e administrador das finanças da rainha Candace da Etiópia. Ele tinha ido a Jerusalém para adorar a Deus e agora estava retomando, lendo a profecia do servo sofredor de Dêutero-lsaías, o que deu ensejo a Filipe de anunciar Jesus baseado nesta mesma passagem.
A Etiópia era o reino situado ao sul do alto Egito, hoje Sudão, e compreendia um conjunto 'de tribos morenas. Era governado por mulheres, as quais levavam o titulo de candace. Era um titulo como o titulo faraó.
O livro de Atos contém a história do estabelecimento e desenvolvimento da Igreja Cristã e da proclamação do evangelho ao mundo então conhecido, de acordo com o mandamento de Cristo. Quanto ao autor parece não haver maiores controvérsias. O livro de Atos foi escrito por Lucas, companheiro de Paulo (16.10) que também acompanhou Paulo a Roma (27.1). Foi escrito particularmente a Teófilo (1.1), mas de um modo geral a toda a Igreja.
II – Texto e contexto
A condição declarada por Filipe para realizar o batismo e a resposta do eunuco (v. 37) não fazem parte do texto original – aparecem primeiro na recensão ocidental. No entanto, é muito instrutivo porque contém, em fórmula breve, a profissão de fé que já desde o princípio se exige daqueles que solicitavam ser admitidos ao batismo.
Com referência ao v. 39: O Espírito do Senhor arrebatou a Filipe, o texto ocidental diz: O Espírito do Senhor caiu sobre o eunuco e o anjo do Senhor arrebatou a Filipe. Este texto contém a ideia mais clara de que agora também este funcionário do governo evangelizará sob orientação do Espírito do Senhor. O batismo transformou a sua vida. Aconteceu a conversão.
Os vv. 32-33 (Is 53.7-8) estão citados literalmente da Septuaginta, que aqui se diferencia do texto hebreu e, mais que uma tradução, oferece uma interpretação teológica independente do texto original. Ciente das observações acima, sugiro fazer uso do texto de João Ferreira de Almeida.
A história iniciada em At 8.26 apresenta outro exemplo da atividade dos sete. Os três cap. 6 a 8 formam uma unidade literária. O autor concentra o que temporalmente está distanciado. Daí não podermos dizer exatamente quando se realizou o encontro de Filipe com o intendente etíope, nem determinar a relação temporal da nossa história com o conteúdo dos capítulos seguintes.
Ill – Considerações exegéticas
Vv. 26-28 Um anjo do Senhor falou a Filipe (v. 26). A linguagem aqui é curiosa. O anjo do Senhor está falando, isto faz lembrar fatos da vida de Elias e Eliseu (1 Rs 19.9-19). Gaza – Deserta (v. 26), a Gaza antiga permaneceu deserta desde a sua destruição no ano 93 a. C. A nova Gaza foi edificada em 57 a. C. e ficava ao sul da cidade velha (Davidson, p. 1115). Candace, rainha dos etíopes (v. 27). O rei era endeusado como o filho do deus Sol e considerado muito santo para exercer funções seculares; estas ficavam a cargo de sua mãe, que as exercia por ele. A rainha-mãe assumia o título dinástico de Candace. O intendente etíope viera adorar em Jerusalém por ser ali o centro religioso e por ser um homem temente a Deus. A conversão deste ministro etíope é de especial importância para a Igreja Primitiva. A mensagem acerca de Cristo será levada por ele ao Sul distante, aos não-judeus (Sudão).
Vv. 29-31 É o Espírito novamente quem dirige os passos do evangelista. Ordens celestiais são características dos escritos lucanos (9.5,12; 10.3,10; 12.7ss.). O texto que o etíope está lendo é Is 53.7-8 e Filipe pergunta: Compreendes o que vens lendo? Esta pergunta encerra uma grande preocupação da Igreja Primitiva. O quérigma apostólico diligenciava extrair da escritura veterotestamentária um sentido novo e mais profundo. Ele procurava, sob o véu da palavra, a revelação do mistério da salvação em Jesus Cristo.
Vv. 32-35 A passagem da Escritura que estava lendo era Is 53.7-8, na versão da Septuaginta, o que explica as diferenças entre a passagem aqui e o hebraico. A quem se refere o profeta. Fala de si mesmo ou de algum outro? (v. 34). Quando o intendente da rainha pergunta a quem se refere o profeta Isaías, toca numa questão já muito debatida, não só pelo judaísmo como ainda pela exegese cristã de todos os tempos, inclusive de nossos dias. Quem é este Servo de Javé a quem se refere o Dêutero-lsaías? Desde o início a Igreja Cristã o acolheu como texto messiânico e relacionado com Cristo, apesar de não haver unanimidade entre os exegetas. No entanto, é neste sentido messiânico também que Filipe interpreta Isaías – começando por esta passagem da Escritura, anunciou-lhe a Jesus (v. 35).
Por outro lado, é um tanto estranho que nesta passagem não se fala do caráter expiatório que teve a morte do Messias; não obstante os versículos que o antecedem e os que seguem imediatamente se expressem com clareza neste sentido (LXX): Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si (…) (v. 4) (…) foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades (v. 5) (…) mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos (v. 6) (…) Por causa da transgressão do meu povo foi ele ferido (v. 8). Para Filipe trata-se de demonstrar que pela Escritura estava profetizada a ne¬cessidade do sofrimento e morte do Messias sem preocupar-se com seu carâter expiatório.
Vv. 36.39 A pergunta do eunuco: Que impede que eu seja batizado? (v. 36) certamente reflete agora uma nova realidade. A tei vigente em relação ao batismo era exclusivista. Entre outros, também os eunucos não podiam participar da comunidade nem receber o batismo. Agora os de fora, os excluídos são aceitos. O requisito para o batismo é a fé. Bem cedo os copistas acrescentaram ao texto original um complemento (v. 37). Nele se pede ao catecúmeno uma confissão formal de fé em Cristo. Aqui provavelmente se expressa a profissão primitiva da mais antiga liturgia batismal e a confissão fundamental de quem deseja o batismo: Creio que Jesus é o Filho de Deus.
Cheio de júbilo o intendente seguiu o seu caminho (v. 39). Constantemente deparamo-nos com esta alegria em Atos dos Apóstolos. Tal alegria brota da compreensão da salvação em Jesus Cristo. Alegria redobrada do eunuco, pois o Evangelho permite que também homens despojados de sua virilidade, pessoas excluídas e à margem recebam o batismo e tenham os mesmos direitos de vida.
V. 40 Azoto é a Asdode do AT, localizada a 30 km ao norte de Gaza. Cesaréia era cidade portuária do Mediterrâneo, cerca de 80 km ao norte de Asdode, construída por Herodes, o grande, por volta do ano 13 a. C. É provável que ali Filipe fixou residência (cf. 21.8). Com este período que nos lembra a notícia de At 8.25 encerra-se a história dos sete no esquema literário de Lucas. Nos dois principais personagens – Estevão e Filipe – nos é revelada, mediante exemplos, uma etapa importante do desenvolvimento interno e externo da Igreja.
Ainda no que tange à perícope presente, o etíope com quem Filipe se encontra é chamado de eunuco; esta observação sugere que se trata de um homem privado de sua vivilidade. Sendo assim, ele não podia ser um prosélito judeu, mas apenas um temente a Deus, pois Dt 23.1-2 proíbe a estes fazer parte da comunidade. Começa a se cumprir a alentadora promessa de Is 56.3-4, segundo a qual os estrangeiros e os despojados de sua virilidade teriam a possibilidade de entrar no reino do céu. O etíope seria então o primeiro pagão que, sem passar peto judaísmo, teria sido aceito no cristianismo.
IV – Mensagem
Estando em Samaria, Filipe recebe ordem divina de dirigir-se para o sul, pelo caminho que leva de Jerusalém a Gaza. Neste caminho meio deserto devia realizar-se uma conversão, o que constitui para a Igreja Cristã Primitiva um acontecimento na missão de expandir-se, conforme o anunciado em Atos 1.8. Sua grande importância vem confirmada pela notícia de que Deus intervém diretamente. A solidão (silêncio) que reina no caminho deserto facilita a conversação tranquila entre os dois homens.
O etíope com quem Filipe se encontra é eunuco, superintendente do tesouro (ministro de finanças e administrador dos bens) da rainha. Ele acaba de fazer uma peregrinação a Jerusalém para adorar a Deus. Se ele era eunuco não podia ser prosélito judeu, e sim, simplesmente um temente a Deus, em virtude de Dt 23.1-2 proibir aos tais tomar parte da comunidade e do templo. (A tese de que eunuco seria simplesmente um título e, assim ele ainda podia ser um prosélito judeu, carece de evidências mais claras.)
No momento em que Filipe se aproxima do etíope ele está lendo justamente o cap. 53 do Dêutero-lsaías, o poema do servo sofredor de Javé. Para nós talvez já seja familiar o sentido messiânico do texto. Também os primeiros cristãos o referiam a Jesus. A interpretação messiânica é corrente, ainda que não unânime, entre os judeus contemporâneos de Jesus.
Ao convite do eunuco, Filipe sobe no carro e explica a passagem de Isaías. Encontra nela a profecia da humilhação do Messias que deve morrer, e a vitória que com sua própria morte conquista sobre a morte. Partindo desta passagem, Filipe anuncia o cumprimento da profecia em Jesus de Nazaré (v. 35). O eunuco aceita com fé a mensagem que Filipe lhe anuncia, e imediatamente se declara disposto a receber o batismo, fazendo sua confissão de fé. Com a administração do batismo se dá pop terminada a missão confiada por Deus a Felipe: Quando saíram da água o Espírito do Senhor arrebatou a Filipe (v. 39). Não é necessário aqui pensar que Deus o arrebatou de forma instantânea, e sim, que Filipe não opôs resistência à vontade de Deus e aceitou seu novo campo de trabalho (v. 40).
Cheio de júbilo e alegria o etíope segue seu caminho. Esta alegria vem da compreensão da salvação em Jesus Cristo. Que riqueza de fé havia então! Não nos sentimos hoje empobrecidos e inferiorizados em comparação com estes primeiros cristãos? O que aconteceu aqui foi uma conversão total. Eis o motivo da alegria radiante. Aconteceu a conversão pessoal e também a conversão de uma situação toda. O eunuco foi aceito apesar da lei o proibir de participar da comunidade e do templo. Qual é a situação dos grupos minoritários hoje (prostitutas, homossexuais, alcoólatra, etc.)?
Filipe recebeu o convite para ir evangelizar no caminho que desce de Jerusalém a Gaza. Obedeceu sem vacilar, fazendo a viagem de aproximadamente 90 km. Hoje muitas vezes vemos que a Igreja não desempenha sua missão a contento e perguntamos por quê! Onde isto acontece certamente é porque há muitos Filipes que não querem ir e desobedecem ao chamado.
O texto relata a mudança de vida de um alto funcionário do governo, o que é um fato marcante. Neste sentido o texto dá base para questionar o sistema capitalista vigente em que os altos funcionários se julgam no direito de decidir so¬bre a vida de milhões de brasileiros e não reconhecem a necessidade de transformação de suas vidas e do sistema que criaram ou defendem. Como Jesus diz a respeito dos ricos, ê igualmente verdade, talvez, acerca de altos funcionários do governo: É difícil um estadista entrar no reino de Deus (cf. Mt 19.23), porque eles não aceitam a mensagem de nova vida. Há muitos indo como cordeiro mudo ao matadouro sem poder abrir a boca.
V – Pistas para a prédica
A história relatada neste texto sobre a necessidade missionária da Igreja e a conversão do etíope eunuco, bem como outras historias da igreja missionária nos primórdios do cristianismo, são igualmente histórias sobre a Igreja de hoje e amanhã. A Igreja sempre é continuadora da vontade de Deus e, por isso, disposta a pôr-se a caminho. Tem a incumbência de partilhar e orientar. Ao mesmo tempo ela tem a liberdade de romper tabus (eunuco), raça (negro), nação (Etiópia), religião (não-judeu), lugar (fora do centro religioso).
O texto nos conduz à dimensão missionária da Igreja. Esta missão tem como motivador o Espírito do Senhor e a promessa do AT que o Messias prometido será o centro da Igreja.
Com o NT, com o nascimento de Jesus Cristo, esta promessa se torna realidade. Estende-se a possibilidade de salvação a todos os que crêem e querem ser batizados.
O único requisito para o batismo é a fé. O eunuco faz sua confissão de fé: Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus. Quebra-se assim o tabu da lei moralista que excluía certos grupos de pessoas de receber esta graça de Deus (aqui é importante que cada um procure descobrir com sua comunidade quem são estes grupos minoritários que também hoje são excluídos da comunidade – prostitutas, homossexuais, etc.)
Com o batismo acontece também a conversão do eunuco, alto funcionário do governo. Conversão que não é apenas uma questão pessoal, mas provoca mudança de situações. Conversão em favor da vida ali onde se procura destruir ou diminuir a vida (mais uma vez sugiro que cada um coloque exemplos de sua localidade onde a vida está sendo diminuída e onde há necessidade de conversão). Onde cada um exerce sua tarefa podemos seguir o caminho cheio de júbilo e alegria. O texto não quer trazer moralismo, mas alegria.
VI – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, diante de ti, como tua comunidade, estamos reunidos e queremos confessar os nossos pecados. Pecado que cometemos quando nos omitimos. Senhor, reconheço que muitas vezes tenho me negado a atender o teu chamado. Não me importo com as outras pessoas e com a tua Igreja, mas apenas comigo mesmo. Perdoa-me quando condeno o outro pelos seus erros e não me disponho a ajudá-lo. Por isso, tem piedade de nós, Senhor.
2. Oração de coleta: Senhor, obrigado por mais esta oportunidade de nos reunirmos para louvar-te, agradecer-te e pedir pela tua bênção e proteção. Estamos com os corações endurecidos, mas tua Palavra tem poder para nos transformar e dar um novo rumo a nossas vidas. Assim, agora quando vamos ouvi-la, opera com teu Santo Espírito em nós para que ela encontre em nós um terreno fértil. Amém.
3. Oração final: Orar por aqueles que: não crêem em Jesus Cristo; são perseguidos por causa do seu nome; vivem na alegria de se saberem possuídos pela vida eterna; atuam na comunidade com humildade e disposição; atuam nos grupos interessados em trazer vida na localidade; pelas crianças abandonadas; os sem-terra; os trabalhadores que não têm sindicatos para os defender; pela comu-nidade para que se torne atuante em sua missão; pela Igreja em todo o mundo; pelos batizados e convertidos para que vivam a conversão no dia-a-dia.
VII – Bibliografia
– SCHÜLLE, G. D/e Apostelgeschichte des Lukas. Berlin, s. d.
– STAEHLIN, G. Die Apostelgeschichte. In: FRIEDRICH, G., ed. Neues Testament Deutsch. Göttingen, 1962.
– WINKENHAUSER, A. Los hechos de tos apostoles. Barcelona, 1981.