Prédica: Colossenses 2.12-15
Autor: Nilton Giese
Data Litúrgica: 2º. Domingo da Páscoa (Quasimodogeniti)
Data da Pregação: 10/04/1988
Proclamar Libertação – Volume XIII
l – O texto
12. tendo sido sepultados juntamente com ele no batismo, no qual igualmente fostes ressuscitados, mediante a fé no poder de Deus que o ressuscitou dentre os mortos.
13. E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os nossos delitos;
14. tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz
15. e, despojando os principados e potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz.
II – Nossos limites
Existe uma variada discussão exegética sobre a autenticidade paulina da Carta de Colossenses. As dificuldades se encontram, principalmente, na terminologia (palavras exclusivas da carta, que não aparecem em nenhuma outra parte do NT) e no estilo (expressões que pertencem à mesma raiz), ambos incomuns e consideravelmente diferentes em relação às cartas clássicas de Paulo (Rm, 1 Co, Gl). A tais dificuldades soma-se a discussão sobre a época em que a carta foi escrita. Há os que a localizam por volta do ano 59 (O. Cullmann) e os que a justificam por volta do ano 80 (E. Lohse).
Limitamo-nos à simples anotação de tais questões, sugerindo a literatura exegética no fim deste estudo, a quem possa se interessar.
III – Nosso método
Ao elogiar a Rose sobre uma comida muito gostosa que ela havia copiado do urna receita, ela me antecipou:
– De fato, é muito gostosa, mas também dá um trabalho!
Usando essa ilustração, vamos considerar o texto a comida preparada. Antes, porém, de nos servirmos, vamos dar uma olhada na receita e na situação da cozinha, onde esse prato foi preparado. Desta forma, nosso ponto de partida é do geral para o específico.
IV – Considerações históricas importantes – a receita
Colossos era uma pequena cidade da Ásia Menor, às margens do rio Licos, próxima a duas cidades maiores e mais conhecidas: Laodicéia e Hierápolis (4.13). A Comunidade de Colossos não foi fundada por Paulo, mas por um certo Epafras (4.12). Em sua maior parte, os membros da Comunidade são gentílico-cristãos.
Politicamente, Colossos também se encontra sob o domínio do Império-Romano. Tal Império tinha a sua sustentação num forte exército e na ideologia estatal, justificando sua legitimidade na sacralização do deus imperador. Para os súditos isso implicava em obediência civil (exército) e adoração e veneração do imperador que, dizia-se, era um representante de poderes divinos sobre a terra.
Ao lado dessa doutrina estatal, corria um movimento gnóstico-especulativo que desenvolvia um credo, que tinha por centro a intepretação da dependência da pessoa do cosmos. O cosmos era imaginado como um espaço ameaçador, povoado de poderosos seres, que determinavam o destino do mundo e das pessoas. O ser humano sentia-se sempre exposto, ameaçado, perdido diante de tais poderes. Esses poderes eram imaginados como seres angelicais (2.18). Diante de tais poderes só restava às pessoas fazer uma coisa: não cair em desfavor desses poderes. Era preciso temê-los, respeitá-los e adorá-los.
Para agradar tais poderes, determinadas ordenanças tinham de ser cumpridas em relação aos elementos do mundo. Certos tipos de comida eram proibidos (2.16-21). Determinados dias precisavam ser observados (2.16). O legalismo é um tanto semelhante ao defendido pelos judeus em Gálatas. Distingue-se, contudo, de maneira significativa, porque as prescrições não são fundamentadas com a necessidade da lei mosaica para a salvação, mas sim relacionadas com os po¬deres do cosmos (stoicheia tou kosmou) (E. Lohse).
Tal doutrina gnóstico-especulativa se afinava com a doutrina estatal, que afirmava o imperador como um representante desses poderes. Temer ao imperador era temer os poderes cósmicos. Sujeitar-se ao Estado Romano era sinal de devoção aos poderes que legitimavam esse Estado.
V – O texto e a situação ideológica em Colossos – a cozinha
Nesse mundo dominado por poderes cósmicos, a referência ao Cristo não é um mito a mais nesse sistema de vãs sutilizas. O texto, ao fazer referência ao Cristo, quer dissipar a espessa neblina que não deixa os cristãos colossenses verem com clareza a sua situação de subjugação a poderes impotentes. O texto faz referência ao Cristo para destruir o determinismo cosmológico, afirmando que a plenitude de Deus está em Cristo e não no cosmos, que aliás, é algo criado (1.16). Quaisquer que sejam os poderes ou elementos que se manifestem no mundo, na Cruz e na Ressurreição eles receberam definitivamente o seu Senhor. Cristo é o cabeça. O medo cósmico e tudo o que pudesse angustiar as pessoas, perderam seu fundamento. O acesso a essa libertação dos stoichéia tou kosmou é possível, também aos colossenses, através do Batismo (v. 12). Batismo é, portanto, sinal de vida, de nova vida, de libertação de quaisquer subjugação e dominação cosmológicas ou estatais. No Batismo acontece a anulação de todas as ordenanças e escritos de dívidas, perdão de todos os delitos, despojamento de principados e potestades, triunfo deles na Cruz, na qual todos eles foram encravados. O Crucificado, através da Ressurreição, crucificou todos os poderes escravizadores cosmológicos e estatais, oferecendo acesso à vida e a libertação através do Batismo.
Apesar de não podermos dizer que tal cristologia tinha por objetivo a destituição da estrutura política vigente, certamente precisamos considerar que tal cristologia teve um impacto muito forte sobre a legitimidade dessa estrutura política. Deslegitimar os poderes cósmicos significa também deslegitimar estruturas que se sustentam sobre esses poderes. Ao declarar ilegítimos os stoichéia tou kosmou (os poderes do cosmo), o cristianismo marginaliza o imperador e o Estado do poder, sem que tenha pensado em destituí-lo. A autoridade vigente é transformada numa estrutura oca aos olhos dos súditos. E um Estado não se sustenta sem uma ideologia que o legitime. Para que um sistema funcione sem graves problemas, não é necessário apenas que o Estado dirigido pelos opressores mande. É também necessário que todos, ou a grande maioria das pessoas aceitem as coisas como são. Para isso se difundem maneiras de pensar, formas de cultura que estejam de acordo com os interesses dos opressores. O cristianismo, mesmo sem querer, talvez, solapa tudo isso, com a cristologia libertadora do Cristo que venceu principados e potestades, expondo-os ao ridículo, triunfando deles na Cruz. Com isso, torna os cristãos colossenses ideologicamente livres do Estado. Isso resulta em conflito, em perseguição, pois nenhuma autoridade pode ser exercida se não for sustentada por sua legitimidade.
VI – As receitas e as cozinhas de hoje
Na nossa atualidade não existe mais o Império Romano, nem imperadores, mas certamente existe um sistema que nos domina e que dita as normas de nossa forma de vida. Um sistema não tem consciência, não pode entender, nem arrepender-se. É uma máquina desalmada. O princípio máximo do sistema capitalista é o lucro a qualquer preço. Este fim justifica qualquer meio. Também é o sistema capitalista que estabelece certas ordenanças, uma escala de valetes que precisam ser observados: vale quem produz e quem tem; quem não tem e não produz, não vale. Com isso se marginalizam amplos grupos sociais que por condições físicas e sociais não podem produzir. Desta e de outras formas, o sistema capitalista exerce despoticamente seu poder, abusando de Deus e do homem. Tais abusos se manifestam entre nós quando:
– Para atingir seu objetivo, o sistema mantém o operário como um semi-escravo, com um salário que não lhe dá condições de vida;
– o sistema expulsa de suas terras o índio, secular dono, e o vai dissipando lenta e seguramente;
– o sistema expulsa famílias de pequenos proprietários e posseiros de terras onde há décadas habitavam;
– o sistema persegue e mata os que em nome de Deus saem em socorro e solidariedade às suas vitimas;
– o sistema tolera Deus e seu culto, mas apenas na medida em que funcionarem como apaziguadores e harmonizadores, como óleo na engrenagem.
– O sistema não hesita em estragar a criação de Deus, envenenando sua superfície, empestando sua atmosfera, enchendo o mundo de armas que podem colocá-lo a pique pelo menos por 60 vezes.
Em nossa realidade mais imediata surgem protestos dos centros e de todos os cantos do país, através de pressões, ocupações, acampamentos e greves que exigem respeito e possibilidade de vida e sobrevivência, revoltando-se contra o deus Capital. O Estado Democrático no Brasil reage com indiferença e usa sua ideologia propagando o pensamento de que as dificuldades são explicáveis por atravessarmos um momento de transição política. Com isso procura-se desviar para o nível político a problemática nacional,que é fundamentalmente um problema económico, decorrente do sistema capitalista de dependência externa e da necessidade de espoliação interna.
Ao mesmo tempo, a ideologia capitalista procura ainda salvar a sua legitimidade, colocando na cabeça das pessoas uma série de ideias que justificam a ordem atual. Por exemplo: nos fazem pensar que não se devem fazer greves, pressões, acampamentos, porque elas atentam contra a ordem, a vida e a paz sociais. Nos dizem que somos pobres porque temos má sorte, ou porque não estudamos. Pretendem fazer com que acreditemos que vida religiosa é submissão, hipocrisia: sofrer no aquém e pensar no além. Tudo isso nos é diariamente enfiado em nossas cabeças, muitas vezes sem o percebermos, através dos mecanismos que os opressores controlam: o aparelho educativo, os meios de comunicação do massa, a propaganda comercial, etc. Desta forma, muitas ideias da classe dominante nos são colocadas na cabeça e, muitas vezes, até as defendemos como se fossem nossas. Quando isso acontece, os opressores se alegram porque constatam que aplicaram bem o seu dinheiro, pois aprendemos bem a lição que quiseram nos ensinar.
VII – A caminho da prédica – é hora de nos servirmos
Depois de termos dado uma olhada nas receitas e cozinhas de ontem e de hoje, chegou o momento de apreciarmos a comida pronta. De que forma vamos nos servir?
1. Em primeiro lugar, precisamos ter bem claro que quem nos serve é Deus. Ele vem a nós através do seu Espírito. Para que o Espírito de Deus fale ê necessário que conheçamos em primeiro lugar o contexto dos primeiros destinatários, os colossenses. Por isso, sugiro, em primeiro lugar, levar ao conhecimento da Comunidade ou do grupo de reflexão comunitário algumas informações sobre o contexto político-econômico de Colossos.
2. Em segundo lugar é preciso falar sobre a teologia do texto em cima da realidade concreta apresentada. Lembremo-nos: a teologia é sempre o momento segundo. Ela só se encarna em cima de uma realidade concreta.
3. Em terceiro lugar é preciso falar sobre o nosso contexto atual, geral e especifico. Tal contexto atual requer que perguntemos pela influência da ideologia capitalista em nossas relações pessoais, de trabalho, de lazer, de sonhos e de esperanças. Devemos acentuar que também nós somos chamados a sermos testemunhas, através do Batismo que nos torna quasimodogeniti, i. e., como recém-nascidos, do Cristo da Cruz. Devemos testemunhar com palavras e ações concretas, atitudes reais, com um estilo de vida que não se disponha a fazer do lucro, mas do homem e de Deus o alvo e a medida de nossa energia e esforço. E esse testemunho tem que ser dado em Comunidade. Esse testemunho sempre levará à Cruz, por causa do sistema que procurará silenciá-lo. No entanto, precisamos também nos lembrar que não existe verdadeiro Evangelho sem Cruz. Enquanto suportamos a Cruz temos a promessa de Deus que não deixará acabar um mundo pelo qual deu seu Filho.
VIII – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de culpa: Senhor nosso Deus, estamos aqui reunidos sob o teu nome, para te pedir perdão. Temos confiado em promessas, porque necessitamos de algo em que confiar. Temos nos enganado com o alvo de nossa confiança. Tu nos anuncias que devemos confiar em ti e no teu poder sobre a nossa organização e união. No entanto, não temos confiado nisso. Temos confiado no quem pode mais chora menos, no cada um por si e Deus por todos, no salve-se que puder. Perdoa-nos, Senhor. Não é esse tipo de pensamento que tu esperas de nós. Por isso, ajuda-nos a nos libertarmos disso. Ajuda-nos a confiar em ti e nas pessoas que sofrem como nós, para que juntos possamos superar nossas dificuldades. Por Jesus Cristo, escuta a nossa voz, ouve nosso clamor e tem piedade de nós, Senhor.
2. Oração de coleta: Tu és o Deus dos pobres e quebrantados. Tu és um Deus sensível, que se tornou humano. Tu és um Deus de rosto curtido. Por isso é que viemos a ti, assim como já o fazem muitos outros. Ensina-nos a ouvir, a conhecer e a aceitar a tua Palavra e teus desafios. Amém.
3. Oração final: Pedir pela nossa falta de fé; para que Deus nos ajude a não sucumbirmos à tentação de confiar nas bonitas propagandas que dizem que tudo está bem; pela derrota de todos os sistemas políticos e económicos que se sustentam sobre a exploração dos trabalhadores, promovendo a vergonhosa desigualdade social. Interceder pelos sofrimentos das famílias com problemas de dinheiro, saúde, trabalho, terra. Pedir pela bênção de Deus sobre as famílias, os filhos, e também sobre os animais e plantas que servem para o alimento e trabalho. Que o Evangelho seja anunciado de forma clara e inteligível, com coragem.
IX – Bibliografia
– BOFF, L. Jesus Cristo Libertador. Ensaio de Cristologia Crítica para o nosso tempo. 79 ed., Petrópolis, 1979.
– Como Funciona a Sociedade? Cadernos Populares. Caxias do Sul, 1985.
– CULLMANN, O. A Formação do Novo Testamento. São Leopoldo, 1970.
– HINKELAMMERT, F. As armas ideológicas da morte. São Paulo, 1983.
– LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo, 1974.
– SEGUNDO, J. L. Fé e ideologia. As dimensões do Homem – II. São Paulo, 1983.