Prédica: Gálatas 5.1-6
Autor: João Artur Müller da Silva
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/1988
Proclamar Libertação – Volume: XIII
l – Uma palavra inicial
Tradicionalmente o Dia da Reforma tem servido para conduzir a reflexão aos acontecimentos do passado. Esta tentativa tem validade quando reconhecemos que somos um povo, uma comunidade, uma Igreja, com memória curta. Pouco sabemos de nossa história, pouco conhecemos do caminho trilhado por nossos antepassados. No entanto, não se trata apenas de celebrar o Dia da Reforma com os olhos voltados para o passado. Importa também refletir neste dia o significado da confessionalidade evangélico-luterana. Que caracteriza nossa confissão luterana? Esta pergunta, em última análise, é a pergunta pela nossa identidade. O culto do Dia da Reforma poderá contribuir para refletir e recolocar alguns aspectos marcantes de nossa identidade. À luz de Gálatas 5.1-6 vamos descobrir que a liberdade cristã é um tema decisivo para o testemunho e ação de nossas comunidades e irmãos. Liberdade continua sendo um tema polêmico, um tema ardente e repleto de expectativas, um tema incômodo e muitas vezes indesejado e silenciado por aqueles que não suportam viver numa sociedade livre, justa e fraterna. Especialmente na América Latina este tema é o centro das reflexões, dos debates, dos diálogos daqueles que acreditam numa vida sem dominação, sem exploração, sem opressão, sem perseguição. Tanto na sociedade como na Igreja a liberdade está, muitas vezes, distante, longe. Conduzimos nossa vida por regras e regrinhas que mais atrapalham e confundem as pessoas do que arriscam uma vida cristã onde a liberdade é o caminho para o serviço, para a compreensão, para a denúncia, para o engajamento em favor dos sofredores e miseráveis. Neste sentido, encontramos uma sintonia com o poeta que canta:
MINHA LIBERDADE
Te vejo tão distante do mundo
como implorando perdão
crendo que tens culpa
de tua ausência na criação.
Liberdade, minha liberdade
adona-te da terra.
Liberdade, minha liberdade
vem e toma minha cidade.
Se tu estiveste no princípio
mas depois te expulsamos
queríamos sentir-nos donos
e por coisas te trocamos.
Eras tão linda e tão doce
que minha vida te merece
e se é preciso com vantagens
teu retomo pagarei.
Aqui te necessitamos,
já não é possível viver.
Olha bem como estamos
olha para nós e vem outra vez.
Te vejo tão distante do mundo
como implorando perdão.
Te vejo e te vejo triste
como o Quixote te viu.
(R. Gonzáles – esta canção é cantada por Amparo Ochoa, no disco América Latina Canta)
II – O texto
V. 1 – É para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei firmes, portanto, e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão.
V. 2 – Atenção! Eu, Paulo, vos digo: se vos fizerdes circuncidar, Cristo de nada vos servirá.
V. 3 – Declaro de novo a todo homem que se faz circuncidar: ele está obrigado a observar toda a Lei.
V. 4 – Rompestes com Cristo, vós que buscais a justiça da Lei; caístes fora da graça.
V. 5 – Nós, com efeito, aguardamos, no Espírito, a esperança que vem da fé.
V. 6 – Pois, em Cristo Jesus, nem a circuncisão tem valor, nem a incircuncisão, mas a fé agindo pela caridade (amor).
O texto acima é transcrição de A Bíblia de Jerusalém.
1 – Sobre a perícope
O apóstolo Paulo escreveu esta carta às comunidades da Galácia no ano 53. Conforme o relato de Atos 16.6, Paulo percorreu esta região reunindo pessoas em comunidades. No entanto, peto que tudo indica, apareceram na Galácia alguns pregadores judaizantes criando conflitos e problemas entre as comunidades fundadas por Paulo. Diante deste quadro, o apóstolo dedica-lhes esta carta, enfatizando os pontos principais de sua primeira pregação e admoestando-os a permanecerem fiéis ao Evangelho. Conforme Ana Flora Anderson, o texto de Gálatas 5.1-6 pode ser compreendido dentro de um bloco maior, a saber a vida na liberdade do Espírito. Assim, o contexto maior começa no capitulo 4.21 e termina em 6.18. Outros comentaristas oferecem delimitações diferentes. Parece-me, no entanto, que a proposta de Ana Flora Anderson, pode ser aceita, pois enfoca como tema central o discernimento entre dois gêneros de aliança: a vida na lei (a Aliança da Escravidão) ou a vida na fé (a Aliança da Liberdade). Nesta perícope está resumida a pregação de Pauto: os gálatas foram chamados para a liberdade, mas esta liberdade ê real na medida em que o mandamento do amor ê levado a sério.
2 – Sobre os versículos
V. 1 – O sofrimento, morte e ressurreição de Jesus Cristo é o fundamento da liberdade que Paulo anunciou aos gálatas. A cruz é o símbolo desta liberdade. Esta novidade chega aos ouvidos do povo de Galácia e forma a comunidade cristã. E a partir daí a fé cristã encontra sua expressão própria no contexto social. As pessoas começaram a viver a liberdade cristã conforme os ensinamentos de Pauto. Numa sociedade económica escravagista, a comunidade cristã é chamada a viver sem esta distinção e dominação de classes. Numa sociedade que dá o status de acordo com a origem racial, os cristãos são chamados a não fazerem mais distinção de raças. E numa sociedade patriarcal, a comunidade é chamada a não fazer mais a discriminação que vem do sexo. (Ana Flora Anderson.)
O jugo da escravidão é uma referência às imposições de alguns pregadores judaizantes. Eles estavam preocupados em levar aos gálatas a garantia de que o Império Romano não os perseguisse por causa da religião. Pois o culto judeu era tolerado pelos dominadores. O apóstolo Paulo encara esta imposição aos gálatas como um jugo, como dominação cultural. E adverte que o sacrifício de Jesus na cruz tem uma dimensão maior do que os ritos judeus. A liberdade cristã passa pela cruz de Cristo e não peto bisturi do rabino.
V. 2 – Diante do conflito surgido por causa da pregação dos judaizantes, Pauto coloca com clareza as consequências: se os gálatas decidirem em favor dos ritos judeus, Cristo de nada servirá para eles. Aqui não há meias palavras. As comunidades de Galácia terão que decidir:
Aliança da Escravidão ou Aliança da Liberdade. Conforme Ana Flora Anderson, as consequências seriam estas: decidir pela Aliança da Escravidão significava assumir a vida segundo a Lei Judaica, e permanecer tranquilamente submissos ao Império Romano; decidir pela Aliança da Liberdade significava assumir a vida da Nova Criatura, vivendo o Evangelho e liberdade do Espírito e suportando todas as consequências. Este é o estilo de Pauto: é preciso haver clareza em nossa decisão. Ou a Lei, ou o Evangelho.
V. 3 – A circuncisão é apenas um aspecto da Lei Judaica. E o apóstolo Paulo dá a entender aqui que está exigindo coerência dos judaizantes, isto é: eles devem cumprir toda a Lei. Israel resiste em aceitar que Cristo veio para cumprir toda a Lei. No entanto, tudo indica que a circuncisão tenha se enraizado na vida judaica e que agora o povo encontra dificuldade em eliminar este ritual. A circuncisão não tem valor salvífico. Pode ser, sim, uma manifestação cultural de um povo. O apóstolo Paulo, no entanto, quer que os judeus sejam, então, coerentes até o fim.
V. 4 – A radicalidade de Paulo aparece neste versículo de forma contundente: os gálatas romperam com Cristo e estão fora da graça de Deus! É um juízo bastante duro a ser ouvido e aceito pelas comunidades de Galácia. É de se perguntar, no entanto, qual é a atração que os judaizantes exerciam sobre os gálatas. Cada região, cada povo, vai encontrar maneiras diferentes de viver o Evangelho. E este processo não é isento de conflitos, de dúvidas. O povo tem medo de errar, e procura segurança. E as antigas estruturas ameaçam a novidade. As pequenas comunidades lutam, continuam lutando, e se cansam. Nesta situação, a pregação de uma Lei que salva vem como um alívio profundo. (Ana Flora Anderson) Ficar com a Lei é rejeitar Cristo e a graça divina. Esta é a questão que Paulo coloca para os gálatas. Semelhante situação é aquela onde Jesus sentencia: Quem não é por mim, é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha. (Mt 12.30)
Vi 5 – O Esquema da Lei é rejeitado por Paulo. A esperança cristã está fundamentada na justiça de Deus. Não na Lei. À fé em Deus produz a esperança, produz uma consciência livre para acreditar que a justiça de Deus é normativa para o dia-a-dia. A fé em Deus cria um compromisso evangélico, um compromisso com o Reino de Deus, com a vontade de Deus. Esta fé é um aprendizado que acontece através da liberdade e do discernimento das próprias comunidades. Nada de modelos importados, nada de esquemas de fora, nada de ideologias estranhas ao contexto das comunidades.
V. 6 – O arremate é decisivo: olhando com os olhos de Cristo, a circuncisão ou incircuncisão não têm valor nenhum. Valor tem, isto sim, a fé que atua pelo amor. Com todas as consequências. O que determina a vida cristã é a liberdade para o amor, para o serviço. Assim, no meio de um mundo pagão dominado pela escravidão, as comunidades da Galácia começam a experimentar o que é, de fato, o processo da libertação que vem do Evangelho (Ana Flora Anderson)
III – Meditação
Todos pretendem ser livres. A liberdade está no canto e nos versos de poetas e principalmente na esperança dos humildes, dos sofridos, dos empobrecidos, dos sub-desenvolvidos, miseráveis e marginalizados. Não penso aqui na liberdade que o poder e a fama oferece, nem na liberdade que o dinheiro compra, nem na liberdade que o progresso concede, e muito menos na liberdade que os poderosos querem ofertar aos oprimidos.
Penso, isto sim, na verdadeira uberdade que foi conseguida com o sofrimento, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. Com este fundamento, entendo melhor o canto do poeta latino-americano R. Gonzáles: Minha Liberdade.
O caminho da liberdade cristã não tem a preferência dos cristãos porque significa compromisso, engajamento, serviço. Porque, em primeiro lugar, esta liberdade significa liberdade para. E só então podemos falar em liberdade de (Helmut Gollwitzer). O mais comum é o anseio para se ver livre de alguma coisa. No entanto, esta liberdade não abrange a dimensão da novidade que o Evangelho traz. A liberdade cristã não tem a preferência dos cristãos, porque Martim Lutero, o Reformador, seguiu Paulo na radicalização: O cristão é livre senhor sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém. O cristão é servo de todas as coisas e está sujeito a todos.
Como expressar esta liberdade cristã no dia-a-dia? Onde está a liberdade para compreender as dificuldades dos idosos? Onde está a liberdade para possibilitar a participação dos jovens na comunidade? Onde está a liberdade para solidarizar-se com os sem-terra, com os sem-teto, com os menores da rua? Onde está a liberdade para discutir assuntos polêmicos como: sexualidade, serviço civil patriótico, discriminação racial e social, santa ceia para as crianças, canções novas para o culto? Ou será que ainda confundimos liberdade com libertinagem, como se a intenção de Cristo fosse a desordem?
O apóstolo Paulo falou da circuncisão e do impasse surgido nas comunidades da Galácia. A imposição da circuncisão foi considerada como condição para as comunidades se salvarem e permanecerem submissas ao Império Romano. Paulo dá a entender que esta imposição significa cerceamento da liberdade cristã. Hoje cabe-nos perguntar quais são as circuncisões que nos impedem de testemunhar em favor do Reino de Deus? Pois, assim entende Amoldo Maedche em Proclamar Libertação, Volume 1: Eu creio que a libertação trazida por Cristo significa concretamente um estar-a-serviço permanente no Reino de Deus. Quais são estas circuncisões que nos são impostas ou que buscamos impor sobre os outros?
Creio que cada pregador deverá olhar para sua comunidade e tentar identificar localmente os empecilhos para a prática da liberdade cristã. Algumas pistas poderiam, quem sabe, ajudar: – dentre as muitas tradições locais, que tradições estariam impedindo a comunidade de ser mais ativa, mais engajada, mais livre? – Donde vem a apatia, o desinteresse e o individualismo que são as características de nossos membros? – Por que a preferência por prédicas om quo o pastor diz o que o cristão deve ou não deve fazer como se fosse uma lista do regrinhas?
Se a circuncisão e a incircuncisão não têm valor para Cristo, então precisamos nos ater ao que é valoroso para ele: a fé que atua pelo amor. E aí me parece que reside a outra grande preocupação de nossas comunidades: Como agir em amor? Como sair de si em direção ao testemunho engajado, concreto no dia-a-dia? Se a liberdade cristã é um item de nossa identidade, se a fé que atua pelo amor é outro item, então resta-nos apenas uma salda: assumir nossa identidade. E, em consequência, lançar mão de nossa inteligência de fé (Arnoldo Maedche), de nossa criatividade, de nossa capacidade de ouvir e debater em conjunto, para buscar maneiras de viver e enfrentar os desafios de nossa época.
O que vale para os gálatas vale também para nós hoje: queremos ficar com a Aliança da Escravidão ou com a Aliança da Liberdade?
Queremos continuar com uma comunidade acomodada e que não incomoda ninguém ou queremos ser uma comunidade que testemunha o Reino de Deus, colocando sinais concretos em diferentes situações? Preferimos andar por uma estrada de legalismos – isto pode, isto não pode – ou preferimos arriscar o caminho onde a fé atua pelo amor, pelo perdão, pela solidariedade, pela aceitação?
IV – Rumo à prédica
Sugiro os seguintes passos a serem considerados na elaboração da prédica:
– Ambientação: falar brevemente sobre o Dia da Reforma, enfocando a questão da identidade evangélico-luterana.
– Leitura do texto.
– Descrição da situação dos gálatas.
– Aprofundar os assuntos – liberdade para e fé que atua pelo amor.
– Apresentar as circuncisões (empecilhos) locais que impedem a vivência da liberdade cristã.
– Apelo para a comunidade permanecer fiel ao Evangelho.
V – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus. A liberdade que tu nos presenteaste foi mal usada por nós. O teu mandamento do amor ao próximo foi esquecido. Seguimos nossos próprios interesses. Não vimos e não nos ocupamos com aqueles que estavam precisando de nós. Passamos por eles como se não existissem.
Perdão, Senhor, porque fomos tão infiéis ao teu Evangelho, e tão pouco misericordiosos com os outros. Ajuda-nos a cumprir melhor a tua vontade, e ajuda-nos a ter comunhão entre nós. Senhor, tem piedade de nós.
2. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus! Tu anunciaste a Boa Nova às pessoas por meio de Jesus Cristo, teu Filho. Ajuda-nos a aprofundar nosso conhecimento sobre a tua vontade e sobre os teus mandamentos. Dá-nos clareza sobre como viver a liberdade que teu Filho conquistou para nós. Abençoa esta hora e une-nos todos pela fé que atua no amor ao próximo, no serviço e no testemunho da tua paz. Amém.
3. Confissão de fé
Eu creio em Deus, o Pai,
e ouço sua Palavra.
Ele é o Senhor, a ele pertence o cosmos,
Ele dirige a história.
Dele vem regozijo em toda a criação,
e respeito perante a vida e coragem para o agir.
Eu creio em Jesus Cristo
e pertenço a ele.
Ele viveu nossa vida.
Com ele iniciou um universo,
que será sem guerra e sem fome,
sem doença e sem morte.
Junto a ele acaba toda culpa.
Ele foi crucificado,
porém Deus o ressuscitou da morte
e com isso fundamentou nossa liberdade.
Eu creio no Espírito Santo
e por ele estou sendo guiado.
Ele dá conhecimento da verdade
e aguça a consciência.
Ele cria uma Igreja para todas as pessoas
até a consumação do universo em justiça.
Amém.
4. Oração final: Oremos a Deus, que nos dá a sua paz: Intercedemos pelos líderes políticos de povos e nações: que tomem consciência de sua responsabilidade para com a paz mundial, a justiça social e o bem-estar das pessoas, principalmente das crianças, dos miseráveis e empobrecidos;
Intercedemos por todas as pessoas, famílias e povos que sofrem com guerras e guerrilhas: que não percam a esperança na tua paz; que encontrem ajuda para suas necessidades; que não esmoreçam e nem desanimem em colocar sinais de amor e reconciliação;
Intercedemos pelas igrejas cristãs: que não desistam de testemunhar om palavras e ações a tua vontade; que busquem concretizar diferentes formas de viver comunhão e fraternidade; e que não desejem nada mais do que simplesmente servir a humanidade como teu Filho ensinou;
Intercedemos por todos nós: que tenhamos paciência uns com os outros; que nos ajudemos na compreensão da tua vontade; que saibamos nos suportar mesmo quando existam conflitos e desentendimentos entre nós; que busquemos animo para viver conforme a liberdade que nos presenteaste.
Deus, nosso Pai, te pedimos: abençoa-nos e guarda-nos. Ajuda para que nossa comunidade não se desvie do caminho que tu nos indicas no Evangelho. Amém.
VI – Bibliografia
– ANDERSON, A. F. O evangelho da liberdade. In: Estudos Bíblicos 2: O caminho da libertação. Petrópolis, 1985.
– GOLLWITZER, H. Reformationsfest – Galater 5,1-5. ln:EICHHOLZ, G. Herr tue meine Lippen auf. Wuppertal Barmen, 1959. v. 2
– STECK, K. G. Reformationsfest – Galater 5.1-11. In: Gottinger Predigtmeditationen. Göttingen, 59(8): 1970.
– A Bíblia de Jerusalém. Edições Paulinas. São Paulo, 1985.