Tema: Ídolos da opressão
Explicação do tema:
Onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração. (Mt 6.21.)
O problema da idolatria hoje reside, não tanto na confissão aberta de um Deus, reside, isto sim, no fato de o nome de Deus ser usado para legitimar relações de produção onde o produto do trabalho ê alienado dos trabalhadores.
Acontece uma inversão de valores. Os trabalhadores se tomam objetos, e as mercadorias por eles produzidas, sujeitos. As mercadorias que circulam e seduzem os consumidores encobrem o processo injusto de produção, onde o trabalhador recebe apenas uma parte necessária para mantê-lo como mão-de-obra e o dono dos meios de produção extrai o excedente. Considerando que esta apropriação de excedente é o objetivo de todo o processo, o Deus do sistema é o capital, perante o qual todos são levados a dobrar seus joelhos. O deus-capital tem poder de decisão sobre a vida e a morte da natureza, da família e da comunidade.
Texto para a prédica: Isaías 44.9-20
Autor: Oneide Bobsin
l – Introdução
Deus é aquele de quem esperamos todos os bens, e em quem procuramos amparo em todas as angústias. Assim, ter um Deus' significaria: confiar-se a ele e crer nele de todo o coração. Já o disse repetidas vezes: a confiança e a fé sinceras podem fazer tanto ao ídolo que a Deus. Assim, Lutero iniciou a explicação do primeiro mandamento no Catecismo Maior. Esta explicação de Lutero pode ser á chave do assunto que aqui será tratado. . .
O espanhol, o europeu, escandaliza-se porque os astecas imolavam certo número de índios ao deus sol. Feitiçaria, magia, superstição, sacrilégio! -gritavam os recém-chegados. E, no entanto, os índios que morriam na concessão, no sorteio, os que entravam pela boca das minas como se fora a boca de Molok, os que nunca safam da 'Casa da Moeda' de Potosi, para não revelar os segredos, esses milhões de índios imolados ao 'deus ouro' (posteriormente francos, libras, dólares ou rublos) do moderno homem europeu (a idolatria do dinheiro), morrerão sem escândalo para ninguém. (Dussel, p. 67.)
Os textos em epígrafe revelam que a discussão a respeito da idolatria transcende os conflitos entre as ideias religiosas no âmbito da ortodoxia e da heresia. A análise em torno desta temática deve alcançar sobretudo os fundamentos da nossa existência material e da vida social. Não somos tomados de forma incondicional apenas pelo âmbito do simbólico-religioso, mas basicamente por tudo o que tem relação com o trabalho como forma de alcançar a sobrevivência. Dentro desta perspectiva existe uma proximidade entre o que falou Lutero e o que dizem alguns teólogos da libertação a respeito dos fundamentos sociais e econômicos da idolatria. Na explicação do primeiro mandamento, no Catecismo Maior, Lutero afirma que de Deus devemos esperar todos os bens. Logo, a idolatria pode estar presente no processo produtivo através do qual mulheres e homens são organizados para conseguirem tais bens. Westermann capta com muita clareza este processo ao afirmar que os (dolos não surgem no vácuo, mas no mundo dos homens que têm um senhor (p. 152).
II – Idolatria em Dêutero-lsaías
1. Tema e seu contexto
Dêutero-lsafas (cap. 40-55) pressupõe o Exílio Babilónico. Jerusalém e o templo estão destruídos (Is 44.26-28). Por outro lado, o domínio babilônico encontra-se na debilidade de sua fase final. Ele está sendo derrotado pelo avanço político-militar de Ciro (Is 43.14). O império babilônico será extinto (Is 48.14). Ciro inicia seu domínio (Is 45.1 ss.) entre os anos 550 a 539 antes de Cristo. Segundo von Rad, a pregação do segundo Isaías está profundamente marcada por este grande acontecimento político, que reside na vitória dos persas sobre o império babilônico (p. 229). Portanto, a vitória persa, comandada por Ciro, se configura como matéria através da qual o segundo Isaías produz a sua reflexão teológica. Sua pregação e atuação na Babilônia tinha como alvo animar os judeus exilados.
Os capítulos 40 a 45 possuem o dom da síntese de várias tradições a partir de determinado ponto de vista: o acontecimento político internacional que possibilitará o fim do exílio. O importante é observar que o olhar a partir das tradições não sufoca a especificidade do novo acontecimento político. Por outro lado, o novo fato histórico criado por Deus por meio de Ciro reatualiza as tradições. Para Dêutero-lsaías o povo de Israel está diante de um novo êxodo. Com isto está dito que a tradição do êxodo se faz presente como força paradigmática. Em Isaías 43.16 o tema do êxodo se faz presente – Javé é aquele que abre caminho pelo mar. Em Isaías 52.12 está dito que Javé se põe à frente como alguém que conduz o povo para a terra prometida. Outros textos constituem-se reminiscências do êxodo do Egito: Is 51.9-52.3; 52.11ss.; 49.9; 42.16ss.; 48.20ss. Além desta existem ainda as tradições de Sião e Davi (v. Rad, p. 220ss.). Ainda, à pregação profética Dêutero-lsaías é incorporada a tradição relativa à Criação (Is 44.24 e 54.5), também como paradigma. Portanto, a libertação é ao mesmo tempo um ato criador e salvífico que engloba uma visão escatológica. Em outras palavras, a salvação não acontece num tempo mítico, fora da história, mas nos acontecimentos sociais e políticos, onde o poder político é desidolatrado. A ação de Deus na história, por meio de Ciro, revela que a força dos ídolos não está neles mesmos, mas nos homens.
2. Descontinuidade temática?
Isaías 44.9-20, como um hino que satiriza os ídolos e o seu processo de criação, difere do todo de Dêutero-lsaías por não ter uma referência explícita a Javé e à sua maneira de lidar com o povo de Israel. Os exegetas analisados apontam para esta direção. Na opinião de Westermann, a polémica contra a manufatura de ídolos em Is 40.19ss.; 41.6ss.; 42.17; 44.9-20; 45.16ss. e 20b, e 46.5-8 formam um grupo homogêneo de adições posteriores (p. 29).
A ruptura entre Is 44.6-8 e 21 vem corroborar esta hipótese mencionada acima. Segundo Merendino, o texto de Isaías 44.9-20 sai do contexto por não ter uma locução direta; por não clarear os destinatários e pelo fato de Javé não ser o sujeito atuante através da palavra. Ao contrário, são os que fabricam ídolos os ato-res do hino em questão. Os deuses, os ídolos, são objetos (p. 382-383).
Rignell se contrapõe a esta análise a respeito da genuinidade do texto. Ele afirma que não existe razão forte para considerar Is 44.9-20 como matéria interpolada. Seu ajustamento no contexto e o fato de não ser marcadamente prosa não podem ser apresentados como argumentos que justifiquem a descontinuidade de conteúdo entre Is 44.9-20 e o todo de Dêutero-lsaías (p. 42). Em contraposição a Rignell, compartilhamos com o fato de que Is 44.9-20 é uma interpolação. E como tal, existe um ponto de contato entre a perícope em análise e o Dêutero-lsaías no que concerne à realidade de que Javé é o único (Is 44.8). Como matéria interpolada a perícope recebe o sentido do contexto, especificamente do conteúdo que compreende os capítulos 40-45, onde o tema da idolatria é abundante.
Como já foi mencionado acima, a perícope introduz uma ruptura na linha de pensamento de Dêutero-lsaías. Em Is 44.6ss. Javé é testemunhado como o único Deus. Fora dele não existe outro. Esta afirmação em si já impossibilita falar em outros deuses ou ídolos. Sob certa forma e, de maneira indireta, a temática que antecede a perícope se faz presente em Is 44.9-20. Em Is 44.21 ela é retomada quando se afirma que Jacó (Israel) é servo e que foi formado por Javé.
A manufatura dos ídolos é questionada radicalmente a partir da afirmação no v. 9: Os que fabricam ídolos nada são. Esta é a chave que ajuda a entender todo o processo de criação dos ídolos. E o processo de fabricação é assim descrito por Westermann (p. 149):
V. 12 – o trabalho do ferreiro
V. 13 – o trabalho do carpinteiro
V. 14 – a procura do material
V. 15 – o uso que é feito do material: combustível
V. 17 – culto ao objeto fabricado
V. 18 – nota marginal sobre a absurdidade de tal ato
V. 19 – não sabe o que faz
V. 20 – conclusão do oráculo: aqueles que fabricam ídolos são colocados na situação de ignominioso.
O hino, portanto, é desenvolvido a partir de uma matriz: Is 44.9-12. Se acrescentarmos a esta matriz os vv. 13,18b e 20ab obteremos uma unidade cujo conteúdo guarda forte afinidade com Is 44.6-8.
Comentando
O texto que compõe os vv. 9-13,18b e 20ab possui algumas características que merecem destaque. Em primeiro lugar, afirma-se que os fabricantes de ídolos nada são. Dois exemplos revelam o engodo do processo de produção dos ídolos. Ambos transformam material no qual já fora investido trabalho humano; ferro e madeira. Neste processo o trabalhador se desgasta fisicamente. O processo em si não restitui as forças ao trabalhador. O segundo ponto reside no caráter mágico do processo. De um momento para outro parece que o trabalhador foi acometido de uma amnésia. Ocorre um processo de invisibilização no trabalho. O trabalhador, o artesão, esquece que o ídolo fora forjado por ele. Terceira constatação: o (doto nasce do trabalho humano que visa a reprodução do artesão. Em outras palavras, o ídolo nasce do excedente. Aquilo que não é necessário para a satisfação das necessidades do artesão se transforma em ídolo.
No texto que compreende os vv. 14-18b e 20a o processo é idêntico. A matéria prima a ser transformada são árvores. Interessante notar que a manufatura do ídolo acontece numa ordem inversa. Inicialmente o artesão busca o material. Retomando o v. 13 podemos notar o processo de trabalho. E, por último, planta-se a árvore. Também neste caso ocorre um processo de enfeitiçamento do artesão. A própria inversão da ordem ajuda na invisibilização do processo. Por esta razão, o coração engana aquele que se apascenta de cinzas. Nas palavras de Jesus, eles enxergam mas não vêem.
Is 44.9-20 apresenta uma crítica materialista. O autor não fica combatendo ideias religiosas, mas busca a base material do ídolo no processo de trabalho, trabalho este que produz um excedente, do qual nasce o ídolo, perante o qual o artesão deve dobrar seus joelhos. Portanto, não é a imagem que é o (dolo, mas o algo que o artesão produziu e que não foi utilizado para a satisfação de suas. necessidades humanas de subsistência. Outrossim, ressaltamos que não estamos usando o termo materialista em contraposição à fé, más como oposto do idealismo. Nesta perspectiva, a fé não idolátrica é imanente. Isto lembra aquela sábia afirmação do filósofo e historiador das religiões, Mircea Eliade, que pode ser resumida da seguinte maneira: a ideia de ressurreição no cristianismo é uma profunda revalorização da matéria.
Ill – Fundamentos da idolatria hoje
Numa primeira leitura o texto de Is 40.9-20 parece não trazer grandes problemas para sua atualização. Ele nos sugere uma transposição mecânica e automática do século V a. C. para o nosso século XX. Entretanto, quem assim proceder terá uma visão confusa do texto do passado e obscura da nossa realidade moderna. Entre o imperialismo persa e os imperialismos de hoje existem 25 séculos de história e de desenvolvimento do processo produtivo. A divisão social do trabalho se tornou bastante complexa. Portanto, a ilusão de uma transposição imediata nos pode levar a um fundamentalismo que obscurecerá a relevância específica do texto antigo.
1. O fetiche da mercadoria
Como nasce a idolatria na sociedade moderna? Qual a base sócio-econômica da idolatria? Pretendemos buscar respostas a partir da teoria do fetichismo, que visa tomar transparente as nebulosas do processo através do qual a sociedade se produz e se reproduz.
O processo produtivo que acontece na fábrica ou numa empresa rural tem como objetivo declarado a transformação da matéria prima em mercadorias cujo sentido é a satisfação das necessidades humanas, por meio da força de trabalho de assalariados. Também deve ser dito que as mercadorias são coisas vivas. Elas circulam. São livres. Elas têm uma trajetória. No consumo esta trajetória se consuma. Esta trajetória, no entanto, esconde um processo de exploração daqueles que investiram suas forças físicas e espirituais, os trabalhadores. Nesta ocorre a ação de um espírito invisível. Este espírito comanda quase todas as instituições da sociedade.
Quem olha para uma fábrica (empresa) nota que existem basicamente duas classes de pessoas: os patrões e os empregados. Configuram-se no processo como antagônicas; têm interesses contrários. Podemos chamar isto de divisão social do trabalho. Assim também é conhecido em termos científicos. Portanto, de um lado estão os donos dos meios de produção, ao passo que do outro situam-se os trabalhadores que vendem a sua força de trabalho.
Para clarear melhor o processo produtivo, façamos uso de um exemplo um tanto irreal, mas que pode revelar os mecanismos inerentes à produção de mercadorias. Vamos supor que numa fábrica de sapatos trabalham 10 pessoas durante oito horas por dia. No final do mês eles produziram 1000 pares de sapatos, que saíram da fábrica a um preço de Cz$ 120,00 o par. Portanto, o dono da fábrica tem um montante de Cz$ 120.000,00. Agora, o patrão teve gastos com matéria prima, energia, reposição de peças nas máquinas, desgastes das mesmas, impostos, etc. Enfim, ele gastou Cz$ 80.000,00. Chamam isto de capital constante. Isto é, ele não muda se os trabalhadores não transformam a matéria prima. Sem a força do trabalhador, ele é um capital morto na fábrica. Mas o dono da fábrica gastou Cz$ 20.000,00 com os salários dos empregados. Cada um recebe Cz$ 2.000,00 por mês. Logo, sobraram para o patrão Cz$ 20.000,00; coisa parecida com o lucro, mas não é. Por quê? Porque o lucro vem da circulação da mercadoria ao elevarmos o seu preço quando ela vai de uma pessoa para outra. Na fábrica aconteceu uma geração de dinheiro, uma criação de valor novo. Isto é diferente de lucro. Isto só é possível porque houve trabalho humano na transformação da matéria prima. E o que é essencial; o lucro nasceu daquelas horas em que o trabalhador labutou de graça.
Façamos o mesmo caminho tendo em vista o trabalho. O valor produzido foi de Cz$ 40.000,00: metade para o patrão, metade para os trabalhadores. Sabemos que os trabalhadores venderam suas forças de trabalho durante oito horas. Nestas oito horas produziram um valor de Cz$ 40.000,00. Se os trabalhadores tivessem trabalhado apenas 4 horas por dia, teriam produzido Cz$ 20.000,00. O patrão não teria o seu lucro. Concluindo, o lucro do patrão veio daquelas 4 horas que os trabalhadores labutaram e não receberam. Trabalharam 4 horas de graça para o patrão. Então, só o trabalho humano cria valor (capital). Isto tem no mínimo a idade de Lutero. Ele percebeu que dinheiro não cria dinheiro quando pediu aos pastores pregarem contra os usurários.
O fetiche está no fato de que este mecanismo se apresenta ao trabalhador de forma distorcida. Ele pensa que trabalhou oito horas para pagar um salário a si mesmo. Ele enxerga, mas não vê. Acima de tudo, parte de sua vida foi apropriada pelo dono dos meios de produção. Além do mais, quem compra as mercadorias não se dá conta deste processo de exploração do trabalhador.
2. O fetiche do dinheiro
Na circulação das mercadorias surge uma mercadoria equivalente. Uma mercadoria na qual todas se espelham. O dinheiro é uma mercadoria mediadora. Através dele podemos alcançar todas as outras. Como num passe de mágica, ele se transforma em depositário de valor. Parece ser um ser dotado de subjetividade. É o senhor no reino das mercadorias. Para adquiri-lo são necessárias algumas virtudes: ser laborioso, poupador e avarento. Quem o possui se torna poderoso. Quase todas as portas se abrem. Podem comprar e vender quase tudo que quiser. É a marca da besta apocalíptica sobre a mão (Ap 13.16). Isto vai além de uma simples analogia. Portanto, o fetiche do dinheiro representa um grau de espiritualização mais sublime que o fetiche da mercadoria. Quem vê o dinheiro não percebe o processo produtivo que o engendrou.
O entesourador é um protestante asceta que segue um catálogo de virtudes. Dentro desta perspectiva de análise chamamos a atenção para o fato de que na moeda norte-americana existe a seguinte expressão: In God we Trust (Nós confiamos em Deus). Será que este Deus é Pai de Jesus Cristo? Jesus colocou dois caminhos: Deus ou o mamon? Dentro desta ótica, o Governo da Nova República não fugiu à regra. O mimetismo se manifestou cedo. No cruzado tem a inscrição: Deus seja louvado. Uma frase ecumênica de um governante sucessor de militares que se apresentaram como defensores da Civilização Cristã Ocidental há bem pouco tempo. Deus seja louvado, um símbolo ecumênico que conseguiu agradar a certos protestantes, católicos, pentecostais e umbandistas, tudo ao mesmo tempo. O dinheiro, portanto, configura-se como o Espírito Santo no reino das mercadorias.
3. O fetiche do capital
O dinheiro é o ponto de partida do capital. Ressaltamos que dinheiro não é capital. Mas ele possibilita ao entesourador ou àqueles que o acumularam, há séculos, na forma de ouro roubado da América Latina pelos europeus, um impulso que se concretiza na propriedade dos meios de produção. Com uma acumulação primitiva e, consequentemente, com os meios de produção e a contratação de ho-mens livres, começa a nascer o capital. Através dos meios de produção o capitalista consegue se apropriar do excedente produzido pelos trabalhadores. Este excedente se objetiva em propriedade privada, algo estranho ao trabalhador que a produziu com seu suor e sangue. Em outras palavras, a propriedade privada dos meios de produção surge daquelas horas em que o trabalhador labutou de graça ao patrão. Novamente se faz presente aquele mecanismo que torna tudo invisível. Na linguagem de nosso perícope, aquilo que não foi necessário para a satisfação das necessidades humanas tornou-se um ídolo opressor.
Este processo cria duas classes antagónicas. As duas podem ser imagens do capital, senhor do mundo, diante do qual todos devem dobrar os seus joelhos. Este senhor exige humildade de quem, no fundo, o produziu perdendo parte da vida, e fé daqueles que expropriaram os trabalhadores. Os capitalistas precisam acreditar que os trabalhadores continuarão personificações do capital. Em outras palavras, no processo produtivo as mercadorias se tornaram gente e os trabalhadores, objetos. O ser humano é coisificado (reificação).
O fetiche do capital reside nesta invisibilização da inversão. Se o empresário não se deixar conduzir por este espírito certamente sucumbirá. Se o traba¬lhador não continuar a ser humilde, provavelmente será visto como soberbo e estará na rua. É destituído dos meios de ganhar a vida. Como podemos ver, o capital tem o poder de decisão sobre a vida e a morte de milhões de pessoas e da natureza. Ele é o senhor todo poderoso do mundo. Por outro lado, sua vida nasceu da morte gradativa do trabalhador. Este diabo se transformará num deus na medida em que for socializado entre aqueles que o produziram, sobretudo.
IV – Deus versus mamon
Tanto a crítica anti-idolátrica do Dêutero-lsaías quanto à análise da teoria do fetichismo da sociedade moderna revela uma radical des-idolatrização da vida social e humana. Isto mesmo, não é necessário buscar o ídolo no desvio dos heréticos, mas nos fundamentos materiais e espirituais da nossa própria vida. Estaremos fazendo uma análise errada se tomarmos o capitalismo apenas como o modelo econômico. Ele se impõe como um modo de vida. Para sustentar este modo de vida precisamos consumir diabinhos (mercadorias). E os que não podem entrar no circuito do consumo porque não conseguiram vender a sua força de trabalho, ficam à margem da história. Sócio-economicamente, são marginalizados, sem direito à vida; psicologicamente, frustrados; teologicamente, possíveis idolatras.
Com o desvendamento do processo material que gerou o ídolo, Dêutero-lsaías mostrou que o poder dos deuses não está neles mesmos, mas nos homens que os criaram. Este desvelar se configura ao mesmo tempo numa análise crítica e numa proposta de negação dos ídolos. Os judeus que estão no exílio precisam saber que a força dos ídolos reside no poder político, ou seja, na força humana. Neste sentido ocorre uma desmitotogização do poder político, pois ele havia criado um mito para subjugar o povo. Quando o poder é destruído politicamente, os ídolos perdem a sua força, pois ela residia neles.
Assim, a vida humana e social são humanizadas. São as mulheres e os homens não-idólatras que são as imagens de Deus. Consequentemente a critica anti-idolátrica aponta para o fato de que o poder político possa ser um canal de, manifestação da vontade divina mesmo sem a legitimação das instituições eclesiásticas. A bênção religiosa do poder o torna um ídolo opressor. Ciro é escolhido por Deus como seu servo, mesmo não sendo filho de Israel.
Dentro desta perspectiva também podemos questionar a tão falada crise espiritual de nosso tempo. Será que o homem moderno, o homem secularizado com quem teólogos tentaram dialogar de forma a-religiosa, não incorporou, via cultura, o fetichismo? Será que tal crise espiritual não reside no fato de mamon ter destronado o Pai de Jesus Cristo? (Frostin, p. 7.) Podemos levantar a hipótese de que a aceitação da modernidade (em parte) como algo libertador em relação aos resquícios do mundo medieval tenha justaposto à fé cristã o fetichismo do capital? A aceitação do homem com a sua cultura ocidental pode ter levado teólogos a fazerem um discurso teológico sobre o deus falso, o mamon?
No terceiro mundo o sistema capitalista continua aprofundando o processo de marginalização econômica e social da maioria da população. Diante de tanta opressão, entretanto, setores organizados dos pobres se articulam e levantam a sua voz contra tal processo de exploração da dignidade humana. Surgem, desta maneira, os movimentos populares e de libertação. Podemos afirmar que estes movimentos populares e de libertação são cruzadas anti-idolátricas. Consequentemente, cabe à teologia e à pastoral ouvirem os clamores organizados e os gemidos desarticulados ainda. É evidente também que tais movimentos populares de libertação não pretendem instaurar o Reino de Deus na terra; isto só Deus pode fazer. Por outro lado, não se pode negar que tais movimentos des-idolatrizam a vida social e humana.
O que tem a ver com tudo isto a justificação pela fé? Ela pode se constituir numa doutrina de libertação da ganância religiosa e moral (Frostin, p. 7), mas, sobretudo, numa critica veemente à redenção peto trabalho (alienado) tão presente em nosso meio evangélico-luterano. Seguindo Frostin, podemos estender a teoria do feitichismo às esferas do prazer, do lazer e da sexualidade.
V – Dicas para a prédica
– A plasticidade do texto de Isaías facilita a pregação. Também ajuda o pregador a não se perder no mundo das ideias religiosas. Os exemplos concretos do texto podem ser um bom ponto de partida. Não podemos esquecer que a religião do povo e o seu ouvido são mais concretos e materialistas que nosso discurso pouco prático e idealista.
– O pregador poderá utilizar-se da explicação do primeiro mandamento do Catecismo Maior, de M. Lutero, como fonte de figuras concretas. Sua leitura pode favorecer a concreticidade da pregação.
– O texto incentiva uma incursão pelos campos da economia. Pregadores não devem fugir das questões socioeconômicas, antes enfrentá-la com coragem. Lutero também enveredou por estes caminhos. Fez isto ao incita- os pastores a pregarem um sermão contra a usura.
– Is 44.9-20 é um bom texto para estudos bíblicos. Seu conteúdo e sua relevância favorecem uma discussão mais aprofundada, o que uma prédica nem sempre pode alcançar. A motivação para um estudo bíblico pode partir do manuseio das mercadorias que estão em volta dos participantes. Refazer a sua trajetória e o processo de trabalho é um bom ponto de partida.
VI – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Ó Deus Criador do mundo, de nós e de toda boa dádiva, confessamos que te temos procurado, mas raras vezes te encontramos. Buscamos a ti em imagens falsas, produtos da nossa imaginação e medo. Esquecemos que a tua imagem está refletida no rosto daquele que sofre e que está à margem. Perdoa-nos quando procuramos segurança no sucesso e no poder, e esquecemos que o teu poder se aperfeiçoa na fraqueza. Vem Espírito Santo é derruba as paredes da morte e da injustiça; vem abrir os nossos olhos que enxergam mas não vêem, porque não olhamos para o Deus crucificado. Tem piedade de nós, Senhor.
2. Coleta: Estamos reunidos em teu nome, ó Deus Pai de Jesus Cristo. Na tua presença, tudo o que nos separa cai por terra. Só tu podes nos congregar para ouvirmos a tua voz. No meio de tantas vozes que nos desviam de ti, vem, ó Senhor, e abre os nossos olhos, a nossa boca e as nossas mãos. Estejas em nosso meio animando-nos para uma vida comunitária e transparente como um vidro. Amém.
3. Sugestões de leituras: ÊX 3.1-14; Is 65.17-25; Mc 2.23-28; 1 Co 13.1-13; Ap 13.13-18.
4. Oração final: Agradecer peto Deus vivo que mostrou o seu rosto humano em Jesus de Nazaré. Assim não precisamos procurá-lo em imagens e ídolos. Interceder por aqueles que estão sendo enganados porque não conseguem ver no rosto do Cristo crucificado a mais clara expressão do rosto de nosso Deus. Interceder pelos oprimidos que estão se organizando para recuperarem a imagem de Deus que fora desfigurada pela exploração do senhor deste mundo. Interceder por aqueles que, por medo ou insegurança, idolatraram poderes políticos e econômicos que degradam a natureza criada por Deus. Louvar a Deus que nos libertou do império idolatrado da maldade. Amém.
VII – Bibliografia
– DUSSEL, E. D. História da fé cristã e transformação social na América Latina. In: Fé cristã e transformação social na América Latina. Petrópolis, 1977.
– FROSTIN, P. Deus versus capitalismo: Teria Lutero apreciado Marx? Revista USCE Quartely. Genebra, 4 (2/3), nov./dez. 1983.
– GODELIER, M. A racionalidade dos sistemas econômicos. In: CARVALHO, E. A. de, org. Grandes cientistas sociais. São Paulo, 1981.
– HINKELAMMERT, F. Las armas ideológicas de Ia muerte. San José, 1981.
– HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo, 1975.
– MERENDINO, R. P. Der Erste und der Letzte – Eine Untersuchung von Jes. 40-48. Leiden, 1981.
– RAD. G. v. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, 1984, v. 2.
– The prohibition of images in O. T. In: KITTEL, G., ed. Theological dictionary of New Testament Michigan, 1978. v. 2.
– RICHARD, P. Nossa luta é contra os ídolos. In: A luta dos deuses. São Paulo, 1982.
– RIEGNELL, L G. A study of Isaiah 40-55. Lund, 1956.
– WESTERMANN, C. Isaiah 40-66. Philadelphia, 1977.