Prédica: Isaías 5.1-7
Autor: Vitor Westhelle
Data Litúrgica: 2º. Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 28/02/1988
Proclamar Libertação – Volume XIII
l – Anunciando desgraça
Há palavras de desgraça que ficam suspensas sobre as nossas cabeças como a lâmina de um machado parado no ar. E que delas não escapamos. São palavras, apenas. Mas trazem consigo a iminência de uma condenação irrevogável. São o reverso de um anúncio, de uma utopia. Seu poder ê o poder de uma profecia. Não são causas de si mesmas. Estão enraizadas em uma história de dores, de tragédias, de triunfos e de farsas. Aí nascem e elevam-se à superfície da linguagem. Sua crueza chocante é capaz de fazer ninivitas sentarem-se em cinza vestindo panos de saco. Seu poder está no desnudar as forças ocultas das tramas históricas. Por isso podem produzir o despertar da consciência, embora não contem explicitamente com isso. O anúncio da desgraça, a imprecação, é uma antecipação apocalíptica. Encurta drasticamente uma série de causas e efeitos. Não faz concessões, não convida ao perdão, embota o coração (Is 6.10): é o congelamento de um processo logo depois da palavra da acusação. Traz o resultado da equação antes que a gente se perca nos meandros dos cálculos.
Um anúncio de desgraça é um evento de linguagem que prescinde de sofisticação teórica; equipara, por um momento, a vítima ao opressor. Quem tem poder engendra o mal. A vítima amaldiçoa. Aí a palavra é a sua arma. Em um texto de Shakespeare, A Tempestade que encena a colonização do Caribe, Caliban, o escravo que na peça representa o latino-americano, diz a Próspero, o conquistador: Ensinaste-me a tua língua, e nisto a minha vantagem é que agora sei amaldiçoar. É por ser compreensível e chocante que um anúncio de desgraça também é operativo. Sua eficácia não é causal. Não diz: se isso/então aquilo. Ela é, poder-se-ia dizer, pós-ética. Já não pergunta mais pelo que fazer. Apenas proclama a iminência da desgraça pelo que se fez, se faz e se fará. Mas justamente aí está o seu poder ético.
O texto de Isaías nos põe com sutileza no meio de uma situação desnaturada, em um contexto histórico em que a imprecação surge como recurso profético para endereçar sua palavra.
II – O texto e sua época
Isaías é um profeta que vivia, provavelmente, em Jerusalém. Sua atividade começa por volta de 740 a. C. A parábola que tratamos remonta à primeira fase de seu ministério, prévia à expansão do Império Assírio e à Guerra Sfrio-Efraimita que em 734/3 envolveria o Reino do Norte. Esses dados são importantes porque revelam que os problemas e as injustiças denunciados não foram causados pela ameaça direta de um inimigo externo.
Textos desta primeira fase do ministério dê Isaías nos esboçam uma sociedade profundamente dividida pela opressão interna. O povo é saqueado (3.12). Os poderosos se atulham de riquezas (3.14). A abundância é concentrada na mão de poucos que não lhe dão destinação social (2.7). As leis discriminam o pobre, despojam a viúva e o órfão (10.1-2; este texto foi provavelmente deslocado de 5.8-24). A corrupção grassa (1.23). O latifúndio cresce (5.8). Há luxúria (3.16ss). A ideologia escamoteia a verdade (5.20) e ouvem-se gritos de desespero (5.7).
É em meio a uma situação destas que Isaías ergue sua voz prenunciando desgraça, discernindo com lucidez o opressor do oprimido e a verdade da mentira. Mas parece irónico que um texto que desemboca em imprecações, que prenuncia desgraça, seja escolhido para o domingo Reminiscere que nos traz a oração do salmista: Lembra-te, Senhor, das tuas misericórdias… não dos meus pecados. (SI 25.6) Então, onde está o evangelho neste texto de Isaías? Seria necessário recorrermos ao NT para ganhar uma palavra de graça?
É interessante notar que nos sinóticos há uma parábola que começa quase como a parábola de Isaías, permitindo supor dependência literária (Mc 12. 1-12 e par.). Por certo, ela não é explorada da mesma forma, mas como a parábola dos lavradores maus. No entanto, o juízo é o mesmo, é a condenação do grupo religioso dominante na Palestina oito séculos depois de Isaías. Tampouco aí a boa-nova é o anúncio de uma graça indistinta. A boa-nova é que outros serão privilegiados. Implícita na parábola de Isaías e também nos ais que seguem está a convicção de que bênção e maldição estão em relação dialética, não em sucessão temporal. Uma boa-nova implica uma condenação, um juízo traz consigo um evangelho. Discernir entre ambos é a tarefa do teólogo, como insistia Lutero. E aprendemos de Isaías que esta tarefa não pode ser cumprida sem um conhecimento da realidade em que vivemos na sua crueza, sem o conhecimento do que divide o oprimido do opressor e que mede a distância entre o banquete e as migalhas.
Ill – A cunha
O texto é uma cunha que entra na tora, explorando e magnificando suas fendas. O texto acirra, corta, divide, separa. O texto é a crisis. De um lado está a ponta que penetra, de outro a base mais larga que recebe o impacto.
A parábola da vinha começa dissimuladamente como uma canção de amor, um artifício retórico do qual o profeta se vale para abrir ouvidos já treinados a condenar denúncias ao olvido. A sutileza de 5.1a é que Isaías propõe um canto de amor, uma alegoria do amor de um homem e uma mulher, aplicada ao agricultor e sua plantação. Esta dissimulação provoca nos que a ouvem a sensação de contemplarem uma representação. Quer dizer, magistralmente Isaías cria para seus ouvintes a impressão de que eles são expectadores contemplativos ou teóricos de uma encenação. O profeta lhes dá o conforto de pensarem que não serão comprometidos. Diz que cantará pelo amigo (amado) o canto do amigo. Com isso, fecha um circulo e, aparentemente, não engaja seus ouvintes.
Vv. 1b-2 apresentam a parábola. O elemento central é clássico: a diferença entre expectativa e resultado de uma ação. A narrativa acirra o desencontro entre expectativa e resultado. A terra é preparada e protegida, os investimentos são altos, a torre é para o vigia, as uvas são de fina casta. Há planejamento, empenho e carinho. Não se trata de uma ação espontânea. A narrativa chega ao clímax com a anteposição esperava uvas boas/vieram uvas bravas.
A cunha se afina. Se até aqui Isaías descrevia uma cena, agora há uma ruptura. A personagem central toma a palavra e convida a audiência a fazer um julgamento (v. 3). O caso está claro. Nada mais havia para ser feito pela vinha. Seguem-se duas perguntas retóricas (v. 4). O julgamento implícito ainda não dói. É feito sobre o óbvio, mas este apenas como representação. Em assentir ao julgamento implícito nas perguntas retóricas, Isaías já tem os seus ouvintes encurralados.
Os vv. 5-6 contam com toques dramáticos o destino da vinha, sua desgraça, a única sorte a qual ela tinha direito! A solução é inexorável. Não há como resistir à concatenação de ideias.
Finalmente, o v. 7 é a ponta de entrada que traz para o seio da própria nação um julgamento que já havia sido feito e corroborado. Este versículo não funciona como uma explicação da parábola, apenas. É a guinada fatal. Aquilo que antes parecia uma representação exterior, algo não comprometedor, revela-se como a imagem da própria realidade em que vivem e atuam os ouvintes do profeta. Já não podem mais ser indiferentes. Sua situação é como a de um médico legista que, de repente, descobre que acabou de dissecar o próprio corpo, julgando ser do outro a imagem refletida no espelho.
Só no v. 7 aparece o específico da situação à qual se refere a tentação universal entre expectativa e resultado. Javé esperava e tudo foz para quo houvesse direito, mas a lei foi quebrada. Javé esperava e tudo proveu para quo houvesse justiça, mas o que se ouviu foi o grito do aflito. A aniquilação da vinha é a mesma desgraça que cairá sobre os que distorcem o direito e esmagam a justiça. Ai deles.
IV – Um texto achegado
Há textos bíblicos que nos são muito próximos, quase imediatos. Outros são mais distantes e requerem mais mediações. A proximidade hermenêutica de um texto está em função da semelhança da situação em que emerge (e a qual responde) com a nossa própria situação. Quer dizer, a continuidade de um texto está no seu contexto. Isto porque um texto sempre é um produto determinado por relações sociais. Pela similaridade da estrutura dessas relações determina-se a proximidade de um texto.
No caso da parábola de Isaías a proximidade é grande. Embora o sistema económico e político seja diverso, a estrutura das relações sociais em que emerge o texto revela muitos contornos que poderiam ser descritivos de nossa realidade. Vejamos alguns: O inimigo externo não deixa de amedrontar de longe, mas o problema candente é interno. O nível do valor real do salário daquele que produz as riquezas na oitava economia do mundo ocidental o torna em um saqueado. Os ricos se atulham de bens, terra e capital sem destinação social. O processo constituinte, as influências dos lobbies e do capital fazem da equidade uma farsa. A corrupção celebra seu carnaval permanente. O pobre continua sendo desalojado do campo. E a Reforma Agrária, o que é …? E não é a verdade também escamoteada por uma cobertura liberal? A desinformação é global. Não temos os nossos órfãos e viúvas como típicos representantes dos oprimidos entre os oprimidos? Não se chamam eles sem-terra, bóias-frias, domésticas, índios, negros, etc.? Negar isso seria endurecer o coração. Que se saiba que a predição de desgraça paira no ar, que o direito é quebrado, que em vez da justiça há gritos de aflição.
V – Uma sugestão para prédica
Antes de tudo, o estilo narrativo do texto deve ser preservado na prédica. A própria parábola da vinha pode ser recontada, ou a da roça de milho que acaba sendo gradeada. Há muitas ilustrações que podem ser usadas. O importante é que seja preservada na narrativa a relação antagónica entre expectativa (que surge da didicação) e resultado.
Mas para que a parábola funcione dentro do propósito de Isaías, é preciso antes refazer o contexto. Não o do profeta. O nosso. É preciso relembrar a injustiça, a opressão, a riqueza e poder de alguns e a pobreza e fraqueza de tantos, a prosperidade e a miséria, a corrupção e a desinformação. Seria ideal criar um clima pesado de denúncias.
Então usa-se o artifício de Isaías, cria-se uma ruptura agradável. Algo assim: … apesar de tudo isso, existem coisas belas. Vou contar uma história muito bonita do carinho que um homem tinha pela sua terra e sua plantação… (adapte-se de acordo com a parábola usada). A seguir a estrutura formal da narrativa pode ser adotada: a) a parábola, b) as perguntas retóricas, c) o anúncio da desgraça, e finalmente, d) a guinada explicativa. Está última retoma o início da prédica.
A questão é o propósito de Deus para suas criaturas. Mas, em vez do direito, há transgressão, em vez da justiça, aflição.
Ao final deve ressoar o anúncio da desgraça. Ê inapelável. E ficará com os pequeninos de Javé a certeza de que onde há justiça não penetra uma maldição.
VI – Subsídios litúrgicos
1. Textos de Leitura: SI 25; Rm 11.16-24; Mc 12.1-12
2. Confissão de pecados: Lembra-te de nós Senhor. Tu quiseste o bem, mas temos produzido o mal. Deste-nos o que precisamos para que haja justiça, mas à nossa volta só há aflição. Vivemos em um mundo que merece desgraça. Mas não te esqueças de tua solidariedade com o teu povo de pequeninos que quer lavrar as terras da justiça e beber nas vertentes da paz. Queremos ser teu povo. Tem piedade de nós, Senhor!
3. Oração de coleta: Viemos para celebrar; aceita o nosso louvor em meio a tantos gemidos. Viemos para ouvir; abre os nossos ouvidos. Viemos em paz; ensina-nos a justiça. Viemos de muitos lados; torna-nos uma comunidade. Amém
4. Assunto para oração final: Orar pelos que detêm o poder económico, político, militar, eclesiástico e ideológico para que ouçam com seriedade as palavras de desgraça dirigidas àqueles a quem são dados os meios para fazer justiça e vingar o direito, mas não o fazem. Orar pelas vitimas de agora, que neste Brasil não têm direito à terra, à saúde, ao trabalho, à educação, ao amparo e à moradia. Lembrar a paixão de Cristo, o Deus solidário. Orar para que Deus nos envie a anunciar a graça e nos dê coragem para falar também da ira.
VII – Bibliografia
– HOCH, L. Meditação sobre Is 5.1-7. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, 1981, v. 7
– HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo, 1975.
– KAISER, O. Einleitung in das Alte Testament, Gütersloh, 1969.
– NOTH, M. Geschichte Israels, 6a ed. Göttingen, 1966.
– SCHWANTES, M. A Cidade da Justiça. Estudos Teológicos. São Leopoldo, 22(1): 5-48,1982.