Tema: Propriedade e expropriação
Explicação do tema:
A propriedade está em discussão. Uns justificam as ocupações, outros condenam as invasões dos sem-terra. Estes juízos diversos revelam contradição na postura fundamental diante da propriedade.
Neste mundo criado por Deus somos peregrinos e estrangeiros; a criação ê de propriedade de Deus, colocada para uso abundante de toda criatura.
Na realidade brasileira e do sistema em que vivemos, nos deparamos com a maioria da população sendo expropriada do que possui, e sendo excluída do acesso à propriedade. Por outro lado a propriedade privada encon¬tra-se acumulada nas mãos de poucos, sem cumprir a sua função social de promover vida a todos.
No seio das comunidades da IECLB é corrente que riqueza ê bênção de Deus. Esta ideia individualista, que serve para justificar a acumulação de bens em detrimento de outros, tem base bíblica? Pode ser reforçada na nossa realidade hoje?
Texto para a prédica: Neemias 5.1-5 (6-12)
Autora: Lori Altmann
l – Contexto
O contexto já foi muito bem desenvolvido por Günter A. Wolf em Proclamar Libertação IX (p. 83-85). Gostaria apenas de acrescentar alguns dados que poderão ajudar no desenvolvimento do tema.
Sob o ponto de vista econômico o povo hebreu é algumas vezes classificado dentro do modo de produção asiático. Para Marx este modo do produção surgiu da necessidade de organizar grandes trabalhos econômicos que ultrapassam os meios das comunidades particulares ou dos indivíduos isolados e que constituem, para essas comunidades, as condições de sua atividade produtiva.
No período da monarquia (ano 1000 até 586 a. C.), com a queda de Jerusalém e a destruição do primeiro templo por Nabucodonosor, estava ocorrendo um processo de transição do sistema tribal, típico da época dos Juízes, para um escravismo que nunca terá maiores dimensões. A estrutura política é a monárquica, apoiada numa religião onde o ritualismo é importante e o templo de Jerusalém (no caso de Judéia) é o centro.
Os hebreus permanecem num estágio tribal de desenvolvimento no período entre o êxodo egípcio até as tentativas de monarquia. Neste período não existe propriedade particular de bens de produção – a terra pertencia coletiva-mente às tribos – e a consequente estrutura social e política. Socialmente não existe divisão por classes, castas ou estamentos. Politicamente, apenas chefias eventuais e de curta duração apareciam, tipo Juízes, como Débora, Sanção e Gideão.
As diferenças sociais, nesse estágio de desenvolvimento, quando existem, são de pouca importância. Não há uma clara consciência desta possível justiça social já que não existe um critério de comparação (injustiça, exploração).
Aproximadamente a partir do ano 1000 a. C. ocorre uma união das tribos sob a direção primeiro de Saul, depois de Davi. Inicia-se o período monárquico, o que corresponde a uma centralização político-administrativa dentro de um incipiente escravismo e conseqüentemente uma certa carga de injustiça social (1 Sm 8.4-5.8,10-20).
Os grandes profetas ansiavam por uma retomada do momento histórico anterior àquele que viviam, antes da centralização administrativa e política. A ideo¬logia tribal, manifestando-se em plena monarquia, se apresenta como uma forma arcaica de pensamento ideológico que levou a um modelo ético providencialista de ver a história e portanto revolucionária, porque preocupou-se com a justiça social antes que isso se tornasse um tema político importante.
Estes dados servirão de auxílio para melhor entender o texto de Ne 5.1-5 (6-12) e na sua atualização para a nossa realidade hoje. O ponto de referência chave é a passagem da exploração coletiva das comunidades (tributo) a uma exploração individual dos camponeses (escravidão ou trabalho assalariado).
As sociedades indígenas, ditas primitivas, podem funcionar da mesma maneira que a ideologia tribal no seio da monarquia, no contexto dos países capita¬listas da América Latina. A existência e a resistência de formas alternativas de ocupação e uso da terra e de organizações mais justas da sua produção, podem, apesar de parecerem atrasadas, ser de fato revolucionárias, na medida em que mostram que a propriedade privada não é natural nem eterna. Mostram que são possíveis outras formas mais justas de distribuição e uso da terra.
II – Texto
Inicialmente é preciso salientar que o texto reflete um empobrecimento do povo e a presença de desigualdade entre ele.
Em Ne 5.1-5(6-12) o povo e as mulheres do povo que se sentem explorados expressam basicamente três reivindicações:
a) Redistribuição das riquezas (cf v. 2).
b) Redistribuição da posse da terra (v. 5).
c) Direito à liberdade contra a exploração da força de trabalho (v. 5).
A exploração denunciada pelo povo se dá em dois níveis:
a) Pelos próprios judeus na medida em que alguns se aproveitam da situação de crise para aumentar suas propriedades e cobrar altos juros.
b) Pelos persas através da exploração pelos altos impostos.
Curioso é que Neemias ataca apenas a primeira forma de exploração: a que se dá de irmão para com irmão. Ele não questiona o imposto pago ao império persa. Neemias representa o Império, não toca portanto no tributo. Fez-se apenas uma reforma econômica e social entre o povo judeu, internamente.
No caso brasileiro hoje será que é possível fazer alguma mudança no sistema fundiário, sem mexer com o capitalismo internacional ao qual está ligado?
O importante foi a reação do povo contra esta dupla exploração e expropriação que estava sofrendo. Conseguiu resultados apenas a nível interno: voltou-se a aplicar a lei do ano jubilar por causa da emergência da situação, o que fez surgir uma sociedade de iguais. Restou ainda o problema a nível externo: o tributo ao império persa.
No caso brasileiro internamente que tipo de reforma agrária, antecedido de um perdão das dívidas, traria mais igualdade e justiça social? Qual seria a promessa hoje, que garantiria a manutenção dessa restauração de justiça, impedindo uma nova acumulação baseada na expropriação?
III – Tema: propriedade e expropriação
A acumulação da propriedade da terra e o seu reverso, que é a expropriação dos trabalhadores, ê uma realidade muito antiga no Brasil. Já vem da época colonial e continua até os nossos dias. A propriedade da terra só é acessível a uma minoria que detêm o poder político e econômico. A grande maioria ou não tem acesso à propriedade da terra, ou sistematicamente está sofrendo um processo de perda desta propriedade, através de diversos mecanismos: endividamento com o banco (altos juros); altos custos dos insumos e baixos preços para aquilo que produz; falta de incentivos e de infraestrutura para a sua produção (o que não falta para os grandes proprietários), etc.
O que deve ser questionado não é a propriedade como tal mas o seu tipo e o acesso a ela. O direito à propriedade não deve estar acima dos direitos humanos e dos interesses sociais.
A concentração da grande propriedade- para negócio em detrimento de uma grande maioria que não tem acesso a ela, é o que deve ser questionado.
Quando se discute a questão dos acampamentos e das invasões, a ótica deve ser esta: Podem os interesses de uma pessoa, ou de um grupo apenas, estar acima dos interesses de uma grande maioria faminta e expropriada?
Pode a riqueza e a acumulação de bens, como é corrente em nosso meio, ser bênção de Deus, quando conseguida às custas da exploração e do sofrimento dos irmãos? Esta ideia justificadora de uma situação injusta não tem de modo algum base bíblica.
A maior parte dos alimentos que consumimos vêm da pequena propriedade. No entanto o recenseamento de 1980 revelou que 45% das terras do país estavam concentradas em menos de 1% dos estabelecimentos rurais e que metade dos estabelecimentos, que garantem a maior parte da produção, tinha apenas 2,4% da terra (J. S. M. p. 48).
A reforma agrária no Brasil é uma questão de democracia interna. Além de a terra estar concentrada nas mãos de poucos, com a consequente violência contra aqueles que dela necessitam para trabalhar, também as relações de trabalho são muito violentas. O exemplo mais drástico é o trabalho escravo, que não só acontece entre os judeus, como refere Neemias, mas é uma realidade em nosso país em diversas regiões. Apesar das promessas do governo, tudo indica que não vai haver reforma agrária, pois um regime político apoiado e dominado pelas oligarquias rurais, pelos grandes proprietários não vai querer mexer no direito de propriedade.
Estamos vivendo numa situação de crise econômica, da mesma forma como vivia o povo judeu na época a que se refere o texto de Ne 5.1-12. Quem está arcando com as consequências da crise, como naquela época, são os trabalhadores, recebendo baixos salários, baixos preços pelo que produzem e enfrentando um alto custo de vida. No campo está ocorrendo a expropriação daquele que realmente produz através da perda da terra e da exploração quase escrava de sua mão-de-obra.
No exato momento em que estes subsídios estão sendo escritos, está subindo o rio Envira no município de Feijó, estado do Acre, uma carga de 20 toneladas de tordon, o famoso desfolhante laranja, que será jogado de avião sobre os 600 mil ha da área da Fazenda Califórnia de propriedade do Grupo Atala-Cooper-sucar, em benefício de 4.000 cabeças de gado que se encontram em seus pastos. As grandes vítimas serão: os 100 empregados que ficarão sem trabalho, as tribos indígenas Kampa e Kulina que habitam a região a ser atingida, a população ribeirinha e toda a população do município de Feijó que vive às margens do rio Envira. Além dos danos irreversíveis para a saúde, há ainda o desastre ecológico que virá atingindo a terra, os animais da mata, as aves e os peixes. Tudo isso em nome do lucro e da propriedade privada do latifúndio. O mais grave em tudo isso é que a ação está sendo realizada com toda a cobertura legal e governamental, apesar de toda a mobilização do povo acreano contra este crime.
Para que haja justiça e democracia no país é preciso acabar com esta situação cujo relato acima é apenas um exemplo. O Grupo Atala-Coopersucar é apenas um entre os muitos grupos econômicos que detêm a maior parcela de terras do país e que recebem incentivos fiscais do governo, para explorar a terra de maneira mais predatória e anti-social possível.
Para o estabelecimento de uma ordem social mais justa é necessário ainda: permitir o acesso a ela a todos que nela querem trabalhar; garantir a terra aos que já trabalham nela através do perdão das dívidas, da garantia de preços e de condições de infraestrutura (estradas, saúde, educação, etc); incentivar o uso de técnicas alternativas, economicamente viáveis, no uso da terra; estimular expe¬riências comunitárias de produção agrícola que sirvam de ensaios para o estabelecimento de uma ordem social mais justa.
IV – Indicações para a prédica
O tema propriedade e expropriação é um tema melindroso e cheio de tabus em nossas comunidades, pois reflete uma situação injusta no seio dela mesma. No entanto é um tema que despertará interesse em qualquer comunidade do país, adquirindo, é claro, características locais próprias.
O primeiro passo para a preparação da prédica seria fazer um estudo da situação fundiária da região: É área de latifúndio ou de minifúndio? Quanto à produção: predomina a monocultura ou a policultura? Que tipo de culturas são cultivadas? Para consumo interno ou para exportação?
Existem muitos sem-terra ou muitos bóias-frias? Está havendo perda da terra pelos pequenos proprietários? Para onde estão indo? Para a cidade ou para outras regiões do país?
Verificar a existência de desigualdade entre os irmãos da própria comunidade: proprietários, meeiros, arrendatários, assalariados, etc.
Ilustrar a injusta situação fundiária brasileira através de fatos recentes divulgados nos órgãos de imprensa, sobre desrespeito de direitos humanos, por grandes proprietários rurais e empresas. Por outro lado relatar conquistas dos movimentos dos sem-terra, dos sindicatos, associações rurais, etc.
Devem-se fazer também as devidas distinções entre o sistema político e econômico dos judeus da época do texto e o sistema em que vivemos hoje.
Finalmente sugiro que o texto bíblico sirva sempre de pano de fundo para esta reflexão. Ele é bastante didático, apresentando uma sequência: a denúncia da situação, as reinvindicações e o encaminhamento do assunto em vistas a uma solução, ou seja, aponta para a esperança.
O apelo para a prática da justiça deve ser formulado a nível pessoal e também a uma ação que leve a uma mudança estrutural.
V – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor temos que confessar que cometemos o pecado de colocar a propriedade acima das pessoas e do interesse social. Que queremos ter sempre mais mesmo à custa da expropriação do outro: do meeiro, do peão, do empregado. E quando somos pequenos proprietários condenamos os sem-terra organizados, porque tememos que coloquem em risco nossa própria propriedade. Passamos a encará-los como inimigos, como uma ameaça, em vez de os apoiarmos e os considerarmos como irmãos iguais a nós. Perdoa-nos Senhor, por acreditarmos que riqueza é uma bênção tua, quando sabemos que é resultado do sofrimento do nosso irmão. Perdoa-nos pela nossa fraqueza e falta de coragem de lutar pela justa distribuição das terras e dos bens. Ajuda-nos a enten-der a tua justiça e a tua promessa. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, estamos aqui reunidos como povo de Deus, tua comunidade; pedimos que nos indiques o caminho a seguir. Que a palavra da fé nos estimule em direção aos sem-terra, aos posseiros, ao pequeno agricultor sofrido e endividado no banco, ao peão semi-escravo e ao índio expulso de sua terra. Tua mensagem nos quer levar ao serviço pelo outro e não ao benefício próprio e à autojustificação. Que este serviço comece pelo apoio concreto a todos os expropriados no campo, para que tenham acesso à terra e nela possam permanecer recebendo as condições para nela trabalhar. Pedimos ainda, que o Espírito Santo, que sopra onde quer, aja em nosso meio apontando formas de ação, que levam a uma mudança, que possibilite o estabelecimento de uma sociedade mais fraterna, justa e igualitária.
3. Leituras bíblicas: Lc 12.13-21, At 5.1-11 ou Mq 2.1-5.
4. Assuntos para intercessão na oração final: Orar para que os que possuem e trabalham a sua terra saibam se organizar para não perdê-la para os que querem a terra apenas para negócio;
– Orar para que as organizações de trabalhadores rurais executem a verdadeira reforma agrária que o governo e os setores dominantes da nossa sociedade não querem que seja feita.
– Orar para que os povos indígenas e a sua forma de ocupar a terra comunitáriamente sirvam como sinal de que existem formas alternativas de vida e organização social mais justas.
– Orar pela Igreja, para que se empenhe junto aos trabalhadores, tornando-se um verdadeiro instrumento evangélico na luta pela justiça.
VI – Bibliografia
– DIVERSOS. Introdução à Bíblia. Petrópolis, 1983. v. 8, tomo 1.
– IBASE. Violência no campo. Petrópolis, 1981.
– MARTINS, J. de S. A reforma agrária e os limites da democracia. São Paulo, 1986.
-——————. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis, 1981.
– MAY, R. H. Los pobres de Ia tierra. S. José, 1986.
– PINSKY, J. Modos de produção na antiguidade. São Pauto, 1986.
– WOLFF, G. A. Meditação sobre Neemias 5.1-5 (6-12). In: KIRST, N. coord. Proclamar Libertação. São Leopoldo, 1983, v. 9.
NÃO HÁ UMA TERRA SEM MALES
Não há uma Terra sem males, ainda.
Ainda, aqui.
Mas há uma Terra bastante,
se fosse de todos.
Os males e os bens
tomados partilha,
na busca,
na espera
da Terra-sem-males…!
Dom Pedro Casaldáliga In: A Cuia de Gedeão. Petrópolis, 1982. p. 30tc.