Prédica: Números 21.4-9
Autor: Dario Schaeffer
Data Litúrgica: 5º Domingo da Quaresma/Judica
Data da Pregação: 20/03/1988
Proclamar Libertação – Volume:XIII
I – Introdução
A releitura e o reentendimento deste episódio, na caminhada do povo de Deus, não pode ser feito apenas a partir do ano eclesiástico – Judica, 59 domingo na Quaresma, ajuda, mas a Igreja Luterana (ainda?) não caminha no deserto e provavelmente, qua Igreja nunca vai caminhar – mas principalmente a partir do lugar vivencial, existencial e político dos que hoje caminham para conseguir terra: os sem-terra em sua luta pela Reforma Agrária – a luta primordial e fundamental, da qual dependem praticamente todas as outras.
Acho que é por não terem este plano de vivência que alguns teólogos europeus andam perdidos na explicação (quase sempre neuroticamente cristológica e imediatista) deste texto e na compreensão deste episódio.
É preciso entender que primordialmente a tradição deste acontecimento, narrado em Números, reside na própria caminhada do povo de Israel, no sofrimento que surgiu dali e não em cultos e culturas anteriores ou de outros povos, como costumam procurar os comentaristas. Importante, por outro lado, não são as cobras, nem a salvação pela cobra de bronze, mas o fato do desânimo, do desespero, do enfraquecimento do povo e das perguntas que são levantadas por esta situação. É ele que origina o restante dos acontecimentos. Vamos analisar isto um pouco mais de perto.
II – Texto
O grupo de gente que caminhava há anos no deserto, com uma expectativa de receber um lugar para viver e morar, não deve ter aceito com muito boa vontade o fato de ter que fazer uma volta maior do que a esperada para poder continuar a jornada: Edom se recusa a deixar passar o povo por sua terra. (Nm 20.14-21). Nada mais lógico do que a instalação do descontentamento e do desânimo. A impaciência neste caso não é nenhum deslize psicológico ou o resultado de um imediatismo que revela imaturidade política. Não reside nesta impaciência também nada de teológico, eventualmente a compreensão de que ela seja pecaminosa ou criminosa. É antes de mais nada a reação natural de um povo que se vê ameaçado de não conseguir o necessário para viver, que vê seus intentos mais legítimos por terra e vida negados pela impossibilidade e incapacidade de outros o ajudarem. É nesta reação que reside a origem deste acontecimento, que se torna teológico e por isso politicamente relevante apenas pelo fato de que o povo, em vez de estudar e enfrentar os problemas que lhe são colocados à frente, volta-se contra Deus e Abraão. Um povo acostumado a contestar autoridades (Faraó, povos e reis encontrados na caminhada), inclusive com armas em punho (Nm 21.1-3), não tem receio de contestar também aqueles que o levam à terra prometida. As dificuldades enormes e as privações constantes já passadas e por vir fazem o povo duvidar das boas intenções de Deus e Abraão. Acredita que o levam à morte e não a um futuro bom (5). O real torna-se ilusão e a ilusão de vida no Egito se torna opção. As coisas se invertem. O povo ameaça transformar a ideia de escravidão em ideal e a realidade – dura e dramática – da luta por libertação fica resumida à dureza da caminhada. Este vácuo ou recuo ideológico, esta (agora sim) revelação de imaturidade, que, apesar de tudo que já foi enfrentado e já foi conquistado, teima em reaparecer, necessariamente precisa ser controlado. As forças da reação se transvestem de salvadoras e a opção salvadora perde totalmente a credibilidade.
Para o povo a inversão destes valores é crucial e fundamental para sua existência como povo livre. E se torna por isso também fundamental para a compreensão deste texto.
O que segue é apenas a consequência. É preciso desmascarar a ilusão mortal. As cobras, a condenação à morte (Ex 32.25ss) a retirada da ajuda na guerra (Dt 1.34ss.) e muitos outros momentos da ira de Deus, que precisam produzir a morte para chamar o povo de volta à realidade, são comuns no AT.
No entanto há necessidade de um excurso retificatório de uma mentalidade provinda de nosso modo de ver as coisas e refletida em alguns comentaristas: as cobras são vistas simplesmente como animais maus e são representantes do que é ruim, são castigo. Porque em nosso mundo civilizado e maniqueísta só existe o bom e o mau, o que serve ou não serve. E as cobras são animais sem serventia que mordem e matam. São coisa ruim.
A história humana, porém, tem testemunhas de que a figura da cobra não é compreendida tão unidimensionalmente. A cobra tem um valor arquetípico, simbólico e político, que também aparece em nosso texto. Ela traz a morte, sem dúvida. Mas é nesta morte que reside a esperança, a volta, a mudança de direção. As mordidas venenosas das cobras têm um valor político, como a necessidade de morte numa revolução. Mas se elas significam a morte de alguns, não significam, como seria o caso da volta para a escravidão, a morte para o povo. As cobras são a morte da retrógrada ideologia, de que o Egito (escravidão) é melhor do que o pão vil da liberdade (5). As cobras não são, pois simplesmente castigo moralista, mas são o fato real de que a inversão dos valores que dirigem o povo para sua meta de transformação, significam a morte. As cobras são necessárias, são úteis, tornam-se dialeticamente boas. São o sofrimento extremo para não se perder o rumo do caminho da liberdade. É por isso que são representantes da vontade de Deus, do Deus da vida e não da morte.
A serpente de bronze torna-se então arquetipicamente a representação de uma situação contrária a Deus, contrária à libertação do povo. Ela lembra, o com isso cura!, que o caminho de volta, a saudade da escravidão, é o caminho da morte. A cobra de bronze não evita a mordida, mas evita que ela tenha efeito. O símbolo da cobra de bronze dizia bem claro que o caminho da escravidão nunca mais poderá ser trilhado. Nunca mais Egito nem Faraó. Apesar da necessidade deste excurso, esse símbolo de salvação não pode ser superestimado, pois existem no AT símbolos e marcos muito mais importantes (cito apenas Ex 20 e Js 24.14ss) que, no entanto, só crescem em valor quando completados e construídos com episódios como o narrado em nosso texto.
Ill – Meditação
Não é nenhuma novidade para o povo pobre no Brasil e na América Latina, que está caminhando para uma nova sociedade, através de lutas revolucionárias, de luta por terra, por justiça, por emprego, por saúde, que em certos momentos há uma parada, um desespero diante das incríveis e inimagináveis dificuldades que lhe são colocadas no caminho. Nada mais justificável que o desespero dos sem-terra acampados quando, depois que algumas pequenas promessas por terra estão na iminência de serem cumpridas e depois de longos meses e até anos de vida precaríssima, a polícia, de repente, invade o acampamento, arranca barracas, lonas e plantações, ameaça crianças e adultos, destrói tudo, sem consultar, nem falar (dia 15 de março de 1987, Rio Quartel, fazenda Mondeneze – Linhares ES. Janeiro/87, fazenda Curimbatã, Chopinzinho – PR). Em meio à lama, chuva e opressão, o povo chega à beira do desânimo, e muitos contam com a possibilidade de voltarem a ser bóias-frias, escravos. São poucos os que lutam. De uma maneira relativa é ainda mais fácil resistir às dificuldades num acampamento monstro, de milhares de famílias no sul do país, com apoios os mais variados e cobertura pela imprensa, do que aguentar a repressão num pequeno acampamento de 50 famílias sem-terra, no interior do Espírito Santo, ignorado por tudo e todos, tendo o apoio apenas, heróico, mas fraco, de pequenos grupos eclesiásticos e de entidades de organização popular.
Mas todos sabem que é necessário continuar. Não há mais possibilidade de volta. A chance de vida está adiante. O que ficou para trás é morte. Isso eles sabem. Mas a tentação de voltar sempre está presente, de um modo muito cruel e muito forte.
No outro lado vemos e convivemos com luteranos, descendentes de alemães e pomeranos, que se voltam contra lideres sindicais, seus próprios companheiros, contra pastores que querem participar da caminhada histórica do lascado povo brasileiro por terra e justiça e que querem fomentar a organização também deles. O que leva este povo a ser tão duramente contra as transformações sociais e políticas? São capazes de se aliar à UDR e suas manifestações com uma facilidade incrível. Mas são reticentes e duros no apoio aos sem-terra e aos marginalizados da cidade. Não estou cometendo injustiça quando afirmo que no Espírito Santo a maioria dos luteranos é contra a Reforma Agrária e não quer nem ouvir falar dela, é contra os movimentos populares nos quais membros de outras igrejas estão engajados de corpo e alma. Não faço injustiça, pois os poucos luteranos que se propõem a lutar sabem – e somente eles – o nível de pressão e de oposição que sofrem diariamente de sua opção. E não é que os contras pertençam à clas¬se de fazendeiros. A maioria é composta de pequenos proprietários, meeiros e até assalariados, que sofrem a injustiça e a exploração, que é o pão diário de toda a classe roceira pequena.
A pergunta pelo porquê disto não é meramente política. Ela é teológica. Pelo fato de a igreja luterana ter uma grande parcela de culpa e de responsabilidade. Ela, como Igreja, na maior parte do tempo, foi o baluarte das forças de direita no Estado. Diz-se que não se fazia política na Igreja antigamente. Isso quer dizer: silêncio a respeito da conjuntura política da época, o que é o mesmo que aquiescência. Ou pregação de obediência e submissão do povo. Foi e ê o jogo do Faraó feito em nome de Jesus Cristo.
Por isso é óbvio que as forças hegemônicas, líderes da Igreja, hoje têm saudades da escravidão, da segurança e firmeza da ditadura de 64, entre outras.
Nesta situação a pergunta pelo futuro de Deus com a sociedade e com o ser humano não é feita. Normativo se torna o passado e a opressão. A acusação que se ouve é idêntica à do nosso texto: Por que vamos arriscar a perder tudo? O melhor é segurar o que temos. O pior é que muitas vezes não têm nada e estão a ponto de perder o pouco que têm.
Está aí a raiz do problema que gerou o episódio de Nm 21.4-9. A incredulidade, a falta de confiança no que Deus quer com este mundo, cria a saudade da escravidão, do passado seguro.
E as cobras?
Continuo crendo que são a consequência lógica e óbvia da atuação dos que não querem o futuro da liberdade, mas se prendem ao passado opressor: o flagelo das cobras é hoje o flagelo do consumismo, do capitalismo – a miséria, a opressão, a pobreza, a injustiça. Isto mata. O povo organizado sabe isso. Mas não está livre da tentação e muitas vezes é mordido. Também os que Deus ama são mortos pelas mordidas. Muitas vezes tem que ser assim.
E a cobra de bronze?
É aquilo que salva e ao mesmo tempo lembra que a saudade de 64 não leva a nada, melhor, mata. Deve ser salvação e ao mesmo tempo admoestação muito dura. Diria que esta tarefa cabe a todas as forças que lutam para que nossa sociedade conheça o caminho da justiça. Poderão ser aqui no Brasil a CUT, o PT, O MST, etc. Mas mais clara ela se torna na revolução que mata para poder caminhar. Que precisa matar para dar vida e liberdade.
Será que podemos transpor isso diretamente para Jesus Cristo? Não é ele que está pendurado na haste que Moisés ergueu. É a figura de uma cobra. Mas – e assim João (3.14) o entendeu – a cobra elevada tem algo a ver com Jesus. Tem a ver que Jesus também trouxe a morte para que uma nova vida pudesse ser construída, a morte do velho homem, da velha opção social. E de sua cruz nasce tudo de novo e de esperançoso que a humanidade necessita: terra, paz, moradia, perdão, saúde, vida – eterna. É morte para a vida nova.
IV – Prédica
1 – Analise para quem você vai pregar no domingo Judica.
2 – Depois escolha outro texto (tipo 2 Sm 23.24-39; Nm 4.21-28; 1 Tm 6.1-2 et alii).
3 – Verá que nenhum problema terá.
4 – Descanse na sombra.
Se, no entanto, um dia, estiver no meio de bóias-frias, de trabalhadores rurais sem-terra, de desapropriados, de drogados, de homossexuais, de negros, de prostitutas e outros marginalizados, que estão na luta por uma sociedade sem males, diga a eles em claro e bom tom:
1 – O futuro é de vocês. Como Deus prometeu a terra a Israel, ele quer liberdade, terra, vida digna para vocês. Os que hoje têm tudo já têm o que merecem. Mas até isso lhes será tirado.
2,- Não se deixem atemorizar pelo poder. Não se deixem iludir pela comida farta e pelo dinheiro das classes que não trabalham. Não se deixem enga¬nar pelos fazendeiros, pelo marajás, pelos dueños deste país. Não queiram ser como eles. Vocês são escolhidos para construir um mundo onde todos terão o suficiente para viver. Quem se deixa iludir pela escravidão, morre com e como os que escravizam.
3 – Vocês recebem a maior força: a de Deus. Não olhem para trás, não mais se deixem iludir, não mais parem de lutar. A cruz os acompanha. É sinal de vida, de esperança, de terra, de casa, de comida, de respeito, de liberdade. É sinal de caminho certo, pois é o caminho do Deus do povo lascado.
Verá que será ouvido. E convidado a caminhar junto com seus verdadeiros irmãos para a libertação.
V – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados
Trazemos diante de ti, Deus da libertação,
– o fato de não querermos mudar a injustiça em justiça,
pois muitas vezes lucramos com ela.
Perdoa, consola e fortalece-nos na fé.
O fato de olharmos desconfiados e com raiva
os poucos que lutam para que teu Reino venha. ,
Perdoa…
O fato de fazermos jogo duplo contigo,
com tua palavra e com nosso próximo necessitado.
Perdoa…
O fato de, às vezes, desanimarmos
por não vermos frutos imediatos na luta por uma sociedade justa.
Perdoa…
O fato de acharmos que a escravidão dá segurança
e que duvidamos de tua libertação.
Perdoa…
Senhor, Deus, queremos ser teus agentes,
mas somos fracos e pecadores.
Ajuda-nos!
2. Coleta: Deus, chegamos aqui com boa vontade para crermos em ti e vivermos esta fé, com tudo que ela implica. Mas a boa vontade não é suficiente. É preciso crer. Crer de verdade é colocar a vida a serviço daquilo que cremos. E cremos que tu és Senhor sobre os senhores e Pai de quem é pequeno e abandonado. Faze com que possamos sair daqui hoje fortalecidos nesta fé. Amém.
3. Oração final
Intercessão por:
– Aqueles que deixaram sua vida na luta pela Reforma Agrária: são os que hoje carregam a cruz de Cristo.
– Aqueles que vivem precariamente e já sem muitas esperanças, em barracas e mil acampamentos de sem-terra peto Brasil afora: são os que gritam: Meu Deus, por que me abandonaste!
– Aqueles que apóiam os sem-terra: são os samaritanos. Que não desanimem.
– Aqueles que decidem a política do país. Senhor dos senhores, Deus no meio dos deuses, tens o poder de mudá-los. Através de nós.
– Aqueles que estão desiludidos. Faze-os olhar para a frente. Dá-lhes companheiros fiéis na luta que os apóiem.
– Nossa Igreja, que finalmente seja uma Igreja que, toda ela, vibre e viva para aqueles que clamam por libertação: os pobres, os sem-terra, os marginalizados da cidade e do campo.
VI – Bibliografia
– BRAEMMER, H. Auxilio homilético sobre Nm 21.4-9. In: Neue Calver Predigthilfen, Stuttgart, 1981.
– GABATHULER, H. J. & GUGGISBERG. K. Auxílio homilético sobre Nm 21.4-9. In: Predigststudien, Stuttgart, 1981.
– GRUEBBER, E. Auxilio homilético sobre Nm 21.4-9. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, 1981. v. 7
– KRAUS, H. J. Grundriss einer alttestamentlichen Kultgeschichte. Muenchen, 1962.
– NOTH, M. Geschichte Israels. Goettingen, 1966.
– POEIRA – Jornal da CPT do Paraná, n? 42, jan./fev. 1987.