Prédica: Tiago 2.1-13
Autor: Nestor Paulo Friedrich
Data Litúrgica: 19º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 02/10/1988
Proclamar Libertação – Volume: XIII
l – Considerações introdutórias
Tiago é um escrito inquietante, controvertido e fascinante por ser extremamente atual em nosso contexto brasileiro marcado pela exploração do povo trabalhador. Tg foi pouco estudado, o que se denota na pouca literatura existente. Nesta, por sua vez, percebe-se uma grande resistência ao escrito e grandes reservas em relação ao conteúdo. Talvez isto se deva ao fato de, no meio luterano, Tg já ter o seu carimbo, a epístola de palha. Nas introduções à carta a discussão se limita a questões como: é ou não uma carta? O nome de Jesus só aparece duas vezes! O autor era ou não irmão de Jesus? Tg apenas juntou um monte de material de forma desordenada, sem uma sequência lógica, ou tinha em vista uma situação bem específica? As dificuldades com o escrito de Tg não são recentes! Já antes de Lutero Tg sofre marginalização. Sua canonicidade foi decidida somente no ano de 367 e isto apôs longa discussão. Desde o início do século II Tg já não era mais usado para leitura litúrgica. A razão para tanta resistência está no fato de Tg ter uma visão bastante clara da realidade, principalmente quando se trata da opressão praticada pelos ricos, contra os quais se opõe veementemente, em detrimento dos pobres, que segundo Tg, são os escolhidos por Deus para serem ricos em fé e herdeiros do reino (2.5).
Não há dúvidas de que Tg usou muito material já existente, grupos de provérbios, parte do Sermão do Monte e trechos de advertência que tinham o seu próprio contexto histórico. Todo este material, contudo, conectado com outros, adquire obviamente novo sentido, pois passa a formar parte de outro texto e em outro contexto. (Tamez, p. 20)
Tg é um escrito parenético doutrinário, provavelmente redigido no final do século 1 ou início do segundo. O autor se chama Tiago e é um servo de Jesus Cristo (1.1) que está preocupado com os pobres. Ao contrário do que muitos pensam, Tg não está polemizando contra Paulo e sua teologia, mas tem em vista um cristianismo frouxo que invoca a fórmula paulina apenas para lhe servir de pretexto para sua acomodação. (Goppelt, p. 461) Sua mensagem põe a descoberto todo o cristianismo que se esconde sob aparências e vive de palavras vazias e ideias quietistas (Goppelt, p. 471). Wendland afirma que Tg é ainda hoje uma correção salutar a toda fé que degenerou em teoria, em puro saber de Deus (p. 130).
II – O texto
No v, 1 temos a ideia central que será desenvolvida nos versículos res¬tantes, isto é, a fé em Cristo não admite a prosopotempsia, a discriminação, acepção e valorização de uma pessoa pelo que ela possui e aparenta. Segue-se uma ilustração (vv. 2-3). Duas pessoas visitam a sinagoga, o local de reunião dos cris¬tãos, uma usa anéis de ouro e vestes luxuosas, a outra é um mendigo e está sujo. Ao primeiro se oferece um lugar confortável, de honra, ao segundo que se sente abaixo do estrado ou fique de pé. Não houve discriminação do pobre? Acepção de pessoas? Segue-se nova argumentação contra este tipo de atitude (vv. 5-7). Deus fez sua opção! Quem disse que Deus não toma partido? (1 Co 1.27; Lc 6.20) Deus quer ser o Deus dos homens que vivem por baixo, em humildade. Neste sentido, o próprio Jesus nos dá o modelo de vida ética quando vive a solidariedade com aqueles que são desprezados. O v. 6 deixa claro que há pobres na comunidade, mas igualmente pessoas que discriminavam o pobre. Tg chama a atenção e lhes mostra que exatamente aqueles que são bajulados, são os que oprimem, arrastam para os tribunais, perseguem e blasfemam contra o nome de Deus (v. 7).
Nos vv. 8-13 segue-se nova admoestação para um agir que condiz com a vontade de Deus. Tg cita Lv 19.18, o mandamento do amor, e coloca que o fracasso de um só ponto da lei é o fracasso diante de toda a lei e não por último, o fracasso diante de Deus. Tg reivindica total obediência à vontade de Deus. O cristão é chamado a agir baseado na lei da liberdade, isto é, orientado pelo imperativo do evangelho, pelo amor, pela misericórcia, o que conforme Tg não se resume no falar mas se concretiza no agir (1.27; 2.15-16; Mt 25.31 ss.). Aquele que não usa a misericórdia è submetido ao juízo.
A posição de Tg é clara. No texto encontramos quatro vezes a palavra ptochos, termo grego que designa aqueles que carecem de tudo para poderem sobreviver, são mendigos. Para Tg os ricos são insignificantes (1.10), uma flor que murcha (1.11), oprimem e arrastam para tribunais (2.6), blasfemam (2.7) e exploram não pagando o salário justo (5.1 ss).
Em Tg não há pessoas socialmente neutras. Pobreza não é destino, mas fruto de exploração, discriminação. Pobreza é provocada. Tg faz uma leitura da vida da comunidade pelo prisma da fé em Cristo e aí detecta o conflito entre pobre e rico. Deus fez a sua opção, a comunidade igualmente é chamada a fazê-lo. Em sua análise, Tg extrapola toda teologia firmada apenas sobre um discurso espiritualizado da fé e divorciado dos conflitos, hoje, uma realidade que nem mesmo a TV Globo mais consegue esconder, mas que a igreja insiste em acobertar.
Ill – Meditação
O assunto é controvertido. Falar sobre riqueza e pobreza como Tg y o faz é difícil. A palavra de Deus já foi domesticada. Enfiaram em nossa cabeça que amor é concordar com tudo e deixar como está, ser cristão é conformar-se, que devemos pregar a harmonia, afinal, já bastam os problemas que temos em casa. A quem interessa este tipo de coisa? O mundo, os ricos não permanecem indiferentes quando a verdade sobre a riqueza e pobreza é colocada a descoberto. Creio que em seu artigo sobre a pobreza, K. Barth tece algumas considerações que nos ajudam em nossa meditação sobre o assunto. Diz ele que não há nenhuma passagem na Bíblia em que sejam proclamados os direitos dos ricos. Não há nenhuma passagem em que Deus apareça como o senhor e salvador dos ricos e de sua riqueza, onde os pobres sejam exortados a preservar a riqueza dos ricos e permanecerem pobres eles mesmos, simplesmente por causa dos ricos. Inversamente, há muitas passagens na Bíblia, em que são proclamados os direitos dos pobres, onde o próprio Deus declara ser o guardião e o vingador desses direitos (…) há muitas passagens em que os pobres são enaltecidos como bem-aventurados, em que são designados de eleitos de Deus, em que as palavras 'os pobres1 são sinônimas de 'os justos'. Os ricos são frequentemente mostrados em proximidade suspeitamente estreita com os poderosos malfeitores, cujo orgulho antecede à que¬da (Barth, p. 352).
O texto de Tg foi trabalhado em três oportunidades. Primeiro com colegas pastores em uma conferência pastoral. Constatamos que muitas vezes a prática em favor do oprimido se resume ao discurso em sua defesa. Não há uma visão clara da realidade de conflito entre capital (rico) x trabalhador (pobre). Somos mestres em espiritualizar. Nosso povo, nossos membros foram dominados, acalmados e acomodados em sua situação pelo poder dominante. Como igreja contribuímos para esta situação quando por ocasião da confissão de pecados no culto dominical é anunciado o perdão para que o pecado possa novamente ser repetido. Não há uma perspectiva de transformação. Concluímos também que como pastores e igreja não sabemos trabalhar com o pobre, não sabemos nos articular, não temos uma metodologia e acabamos sofrendo política.
As outras duas experiências foram realizadas em comunidades no interior de Canguçu com pequenos agricultores. Em uma, na Coxilha dos Cavalheiros, o texto foi logo relacionado com discriminação racial. Em Remanso, o texto foi lido sob a ótica da opressão que sofre o pequeno agricultor. Os desafios advindos do estudo foram: estamos dispostos a caminhar juntos, nos organizar, a pensar como pequeno agricultor e não como grande? Arriscamos-nos até mesmo a sofrer por esta causa, que em última análise é a causa de Deus? A viver o amor até as últimas consequências?
Este texto de Tg é um desafio! Questiona o nosso ser comunidade, igreja, o nosso ser cristão dentro de uma realidade de conflitos. Neste momento, março de 1987, temos a greve dos bancários, movimento dos agricultores, recessão e algumas vozes levantam os perigos de um possível golpe. Aqui em Canguçu, município com o maior número de minifúndios do Brasil, é sintomática a situação de miséria e exploração dos agricultores. 85% de nossos membros são agricultores, destes 30% não têm terra, a grande maioria tem menos de 20 hectares. Qual a perspectiva desta gente? Esconder que esta realidade é provocada? Que é fruto de um sistema que beneficia a apenas 20% da população brasileira em detrimento dos restante 80%? É, a história ê velha, mas sempre foi enfeitada, harmonizada, minimizada! Tg não enfeitou! E este é também nosso desafio, clarear o conflito entre capital (rico) X trabalho (pobre). Mostrar que as coisas não acontecem por acaso ou por vontade de Deus, que toda e qualquer discriminação vai contra a sua vontade.
Discriminar é o mesmo que negar o direito à vida! Deus, ao tomar o partido do pobre, lhe confere a razão de existir e também o direito à vida em abundância neste mundo. Ao mesmo tempo, lança seu juízo sobre todo aquele que age sem misericórdia e impede que esta vida para todos se torne uma realidade, o mesmo valendo para o sistema.
IV – Prédica
Surpresa e admiração! Esta foi a reação à leitura do texto. Tg nos dá a oportunidade de mostrar que a Bíblia também levanta questões que geralmente costumamos taxar de políticas e subversivas, que ser cristão, viver a fé, o amor a Deus e ao próximo não é algo estático, estar conformado com este mundo, que a realidade de pobreza e opressão é provocada e que o Deus da Bíblia não é um Deus neutro, mas que toma partido.
Proponho os seguintes passos:
1. Analisar a situação de hoje! Como está a vida dos pequenos agricultores, de quem mora na cidade e recebe salário mínimo? Por que tantos agricultores estão enterrados no banco? E a balconista que recebe Cz $ 30,00 como salário fixo por mês? Como viver nossa fé nesta realidade? O deus do patrão é o mesmo que o do empregado? O deus do banqueiro é o mesmo que o do pequeno agricultor? O deus do Sarney (aquele do CzS), é o mesmo que nós confessamos como o nosso Deus?
2. Leitura do texto, e explicação do mesmo conforme o ponto II.
3. Nesta parte procurei clarear o conflito que há na nossa realidade brasileira conforme já escrevi no ponto III, e procurei motivar para uma caminhada em conjunto, a organização do pequeno e a conscientização da realidade para uma prática transformadora.
V – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus e Pai, perdoa-nos nossa fraqueza e covardia! Sentimo-nos envergonhados! Temos sido egoístas e extremamente cruéis com o nosso próximo mais fraco. Nossa fé não sai da conversa, a ação nos parece tarefa sempre para os outros. Como comunidade nos preocupamos em manter prédios, bajulamos os ricos, políticos e outros poderosos para conseguir ajuda financeira, enquanto que o pobre é desprezado. Usamos o teu evangelho para tapar uma realidade marcada pelo desprezo, indiferença, comodismo, falta de amor e misericórdia. Transforma-nos, Senhor, não permitas que nos conformemos com este século. Confiantes na tua misericórdia, nós clamamos: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Transforma-nos Senhor! Que tua palavra nos inquiete. Quebra nossas ideias já prontas sobre ti e tua vontade. Que a tua palavra abra nossos olhos para as desigualdades de nosso mundo e as necessidades do mais fraco e pobre. Senhor, dá que sejamos instrumentos do teu amor transformador. Amém.
3. Oração final: Agradecer que Deus nos dá uma perspectiva de futuro, que sua opção é nosso motivo de júbilo e esperança. Agradecer por todas as iniciativas que têm por objetivo a organização e libertação do pobre e oprimido. Agradecer pelo CAPA, CRÉ! Pedir que Deus nos conceda o poder do seu Espírito Santo para que nosso testemunho seja transformador, inquietante e coerente. Orar por todos os que sofrem sob este sistema capitalista que discrimina, mata, oprime e blasfema.
VI – Bibliografia
– BARTH, K. Pobreza. In: ALTMANN, W., ed. Kart Barth-Dádiva e louvor. São Leopoldo, 1986.
– BORNKAMM, G. Bíblia-Novo Testamento. São Paulo, 1981.
– CHAMPLIN, R. O Novo Testamento interpretado. São Paulo, 1980. v. 6.
– CULMANN, O. A Formação do Novo Testamento. São Leopoldo, 1970.
– GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento, Petrópolis/São Leopoldo, 1982. v. 2.
– LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. 3. ed. São Leopoldo, 1980.
– TAMEZ, E. A carta de Tiago. São Paulo, 1985. –
WENDLAND, H. D. Ética do Novo Testamento. São Leopoldo, 1974.