Prédica: 1 Timóteo 3.16
Autor: Werner Kiefer
Data Litúrgica: Véspera de Natal
Data da Pregação: 24/12/1988
Proclamar Libertação – Volume: XIV
l — Introdução
Natal! Batem os sinos. Na pobre manjedoura Cristo é nascido. Noite linda! Noite de Belém! Lindas palavras! Mas o texto previsto para esta grandiosa noite não nos fala diretamente do Natal. Não comenta sobre a pobreza, a esperança no Messias sobre a qual estamos acostumados a ouvir. O referido v. começa falando sobre o mistério da piedade. Será estranho para a comunidade que espera de seu pastor/a algumas palavras que confirmem suas convicções natalinas.
Romantizar o nascimento de Jesus é o que não falta nesta noite. Nisto os poderosos da UDR, UDU, governantes comprometidos com a corrupção e poder, irão investir algumas migalhas dos seus lucros. Farão até um churrasco, darão presentes. Fabricarão vitrines em presépios do nascimento de Jesus. Investe-se, gastam-se algumas migalhas para que eles mesmos possam continuar contemplando num berço esplêndido um Cristo humilde, manso, romântico, que não desafia a contradição entre ricos e pobres. Procura-se harmonizar, nesta noite de véspera de Natal, uma contradição inerente ao próprio sistema capitalista. Abusa-se do nascimento do menino Deus quando se procura harmonizar, de forma aparente, a violência cruel neste mundo: nesta noite tudo quer ser festa em meio às discórdias e contradições. E depois do Natal, a violência, a exploração continuam.
O véu romântico fabricado e imposto pelos donos dos meios de produção e que força uma ideia alienante do Natal, precisa ser desmascarado. Olhemos para aquele que de corpo e alma foi uma criança marginalizada pelo poder, que se fez carne com osso e sangue, que suou pelas estradas poeirentas da Palestina, que sofreu na carne e no coração a doença, a pobreza, a hipocrisia dos conterrâneos. Quem sabe, a comunidade possa assim, neste impacto, rebuscar uma mensagem que compromete com o Cristo que se fez gente, para mostrar o quanto ainda acredita na criação do Pai.
Timóteo, quem és tu? Grande companheiro, colaborador de Paulo. O verdadeiro filho na fé (l Tm 1.2). Foi encarregado de importantes tarefas (l Tm 3.Is; l Co 4.17; At 19.22; Fp 2.19s). Cooperou na escrita de algumas cartas paulinas (l e 2 Ts). A tradição diz que foi o primeiro bispo de Éfeso. Foi ordenado ao ministério pastoral nas comunidades da Ásia Menor, pelo seu companheiro mais experiente (l Tm 5.22). Timóteo é pastor na paróquia da Ásia Menor, onde é encarregado de zelar por várias comunidades.
Il — O que se objetiva com a carta
Ela reflete o pensamento de Paulo. Mas, provavelmente, não foi escrita por Paulo. A carta esboça a preocupação com a vida comunitária (capítulo 2) e com o procedimento de seu ministro (capítulo 3). Ambos os assuntos estão em pauta, porque, na comunidade de Timóteo, há ideias que procuram desestabilizar a vida comunitária. Frente a esta problemática, procura-se rebuscar, confirmar a tradição apostólica. O pastor Timóteo deverá reler as tradições que guarda na memória, da prática e do ensino de Jesus. Por isso, os cargos na comunidade são importantes. A contestação das ideias contrárias à comunidade de Jesus Cristo virá a partir da tradição que preserva a memória histórica dos ensinamentos do Filho de Deus.
A carta objetiva aconselhar a comunidade e ao seu pastor para que tenham clareza suficiente de modo que não sejam engolidos por um sistema onde não mais prevalece o bem comum, o amor ao próximo que Jesus viveu e ensinou.
Ill — O lugar social das comunidades
Timóteo está na Ásia Menor. Ali o modo de produção escravagista e o processo de urbanização são realidades presentes. A passagem de pessoas do campo para a cidade está presente nesta época. Karl Kautski revelou que entre a comunidade cristã primitiva estão os mais empobrecidos da sociedade. E são procedentes donde vem a maior parte do trabalho e da produção.
O Estado procura legitimar o seu poder através das assembleias, onde participam somente os mais abastados. O imperador sustenta o poder como um pai de família (pátria potestas). Os súditos leais serão os favorecidos filhos(as) do Pai da Pátria. Desenvolve-se a ideologia que vê no imperador a figura do pai de uma grande família.
A comunidade cristã primitiva assume esta estrutura que tem a sua estrutura de dominação política. Mas a comunidade de então assume esta estrutura com a lógica baseada na tradição do Antigo Testamento. A partir desta organização procura-se ser fiel ao Pai — Deus (Mc 10.42-45). O Pai da família é Deus e não mais o imperador. Através da estrutura da casa forma-se a comunidade e ali todos podem participar (Ef 2.19; Rm 8.17). A casa é o lugar da presença de Deus, é o lugar onde Deus derrama o seu Espírito Santo.
Neste contexto devemos ler a Carta a Timóteo. Este deverá preservar a vida comunitária, como se deverá proceder na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo (l Tm 3.15) em contraposição às práticas imperiais que procuram desestabilizar a tradição proveniente da família da casa (oikos).
IV — Estudo do texto
A introdução nos indica que o texto se refere ao mistério da piedade, da qual Timóteo é portador. O que segue à frase introdutória adota uma linguagem que se destaca por causa da estrutura usada. Trata-se de uma poesia com seis breves proposições, agrupadas duas a duas. E. Schweitzer mostrou que o poema é construído de forma quiástica. Há dois assuntos que falam de dois acontecimentos.
(A) Ele foi manifestado na carne,
(B) Justificado no Espírito,
(B) Contemplado pelos anjos,
(A) Proclamado às nações,
(A) Crido no mundo,
(B) Exaltado na glória.
(A) Refere-se a um acontecimento que tem o seu togar no mundo.
(B) O acontecimento é de ordem transcendente.
Este tipo de estrutura linguística e de conteúdo não é peculiar a l Tm 3.16 . Vemos algo semelhante em Fp 2.6-11; Cl 1.15-20; l Pé 3.18-22; Jo 1.1-14. Geralmente se destaca o acontecimento de Jesus Cristo desde a sua preexistência, passando-se pela encarnação, até a exaltação. Nem todos os textos falam com a mesma ênfase destes três percursos de Jesus Cristo. Há ênfases diferentes. Jo 1.1-14 dá certo peso à preexistência de Jesus, enquanto que em l Tm 3.16 e Cl 1.15-20 destacam-se a exaltação e a encarnação. O texto em apreciação, l Tm 3.16, não se refere à preexistência de Jesus. Dá peso igual à encarnação e à exaltação. Provavelmente, temos aqui uma parte de um hino, uma estrofe de uma poesia, citada na carta endereçada a Timóteo.
Os textos acima citados são considerados hinos cristo lógicos ou profissão de fé litúrgica (Bíblia de Jerusalém). A sua origem está na comunidade cristã primitiva, tendo como caráter a expressão de fé, de confissão a partir do evento Jesus Cristo. Geralmente foram usados nas celebrações, na liturgia. O texto de Fp, por exemplo, foi usado, provavelmente, por ocasião da liturgia (Jerwel) ou, quem sabe, no auge da oração durante a liturgia (Lohmeier).
Nesta confissão de fé, a comunidade cristã primitiva apropria-se de uma linguagem mítica. Na compreensão da estrutura do mito parte-se da compreensão de que a humanidade é escravizada por potências no mundo e de que a sua redenção, a libertação vem do mundo superior. O Salvador vem e se encarna no mundo e volta novamente ao mundo superior, exaltado e recebido na glória. No livro de Atos de Tomé, fala-se de um redentor divino, que foi enviado da casa paterna, renuncia à sua riqueza, despe as suas vestes celestiais de raios de luz, desce para o mundo da matéria para libertar as almas cativas, l Tm 3.16 é, assim, o fragmento de um hino litúrgico. A sua linguagem provém do mundo mítico; o seu conteúdo, no entanto, se contrapõe a este mundo quando procura valorizar a encarnação de Jesus, que se fez carne, sofreu a morte, morte de cruz (Fp 2.8).
Existe uma sequência cronológica nestes hinos cristológicos. Há um percurso de três etapas. O texto de l Tm enfatiza o percurso intermediário, onde também há uma sequência: manifestado na carne, proclamado entre as nações e crido no mundo. Na carne refere-se à humanidade de Jesus. Na carne sofre como qualquer ser humano, até a própria morte. E tornou-se carne no mundo, onde foi crido, onde viveu na sua própria carne situações de pecado, de conflito, de morte. Mundo expressa a humanidade integrada numa realidade histó¬rica com todos os seus males. Ali Jesus viveu e foi crido. Jesus não fugiu das tensões e conflitos, mas as enfrentou com todo o seu ser.
As outras três proposições de ordem transcendente, que no mito correspondem à entronização celestial, afirmam, de uma vez por todas, a soberania de Deus sobre a sua criação, de onde sempre de novo é rechaçado. Fala-se de exaltação, elevação, com uma solene cerimónia, e não propriamente de ressurreição.' A exaltação, contemplada pelos anjos, demonstra a vitória de Deus na implantação definitiva do seu Reino, já agora, em Jesus Cristo.
Voltemos para o início do v., onde se afirma que grande é o mistério da piedade. Qual é o elo de ligação entre esta frase e o fragmento do hino cristológico? Provavelmente podemos ver este elo a partir do compromisso da fé, que leva a viver uma nova vida. Esta nova vida é consequência do evento de Jesus Cristo, que se fez carne, se despojou. O pastor Timóteo, tendo bem presente esta realidade em Cristo Jesus, saberá que, em conjunto com a sua comunidade, deverá ir fundo em zelar pela tradição que visa a vida, o amor ao próximo. O profundo exemplo de Jesus Cristo deve ser seguido.
Concluindo, os hinos cristológicos têm vida própria. Têm a sua origem no contexto da comunidade cristã primitiva e ali são vivenciados. l Tm 3.16 é citado pelo autor da Carta a Timóteo numa situação crítica da comunidade. O evento de Jesus Cristo deve inspirá-la para dar a continuidade ao projeto de Deus no mundo.
V — A caminho da prédica
l Tm 3.16 poderá provocar alguma admiração ao ser lido como base para a pregação. Não fala de esperança, vinda do Messias. A comunidade, que certamente é numerosa nesta noite, poderá de início ficar na expectativa, ver a própria relação do texto para com a véspera de Natal.
O objetivo inicial desta prédica é tentar sair do círculo que aborda a pobreza do nascimento de Jesus. O que em si não é uma boa nova. Porque nesta noite, certamente, muitas crianças nascerão em condições desumanas ou até piores do que as em que Jesus nasceu. A alegria, que em si não está explícita no texto, pode ser o início, o gancho onde se pode pendurar a reflexão. Porque foi justamente a alegria que fez com que a comunidade se reunisse e elaborasse a sua confissão. A graça de Deus apareceu e se encarnou. A comunidade não está mais submetida ao senhor — pai do império, que a explora, não está mais submetida a potências espirituais, ideologias alienantes. Numa situação em que a escravidão ameaça de todos os lados, confessar que Jesus veio, fez-se gente e solidarizou-se com os empobrecidos, doentes, pecadores(as) e que liberta, significa a presença de uma grande alegria, que provoca coragem para se unir e viver novos tempos.
Deus se fez carne em Jesus Cristo. Fez-se gente como nós. Nesta condição sofre como qualquer ser humano. Deus fez-se pequeno para chegar perto de nós. Por isso, podemos nos alegrar. Não estamos mais sozinhos. Temos um grande amigo. Eis aí a nossa libertação. Em meio à não-vida podemos jubilar, pois Cristo nasceu, e a vida venceu. Esta alegria do Natal deve levar a denunciar as falsas alegrias que o sistema capitalista produz e apresenta como oferta para o Natal. A todos são oferecidos presentes, uma grande ceia, mas só será uma pequena minoria que poderá festejar.
Na solidariedade de Deus, demonstrada em Jesus Cristo a partir dos porões da humanidade, a criação divina pode se alegrar, porque ela mesma é redimida. Deus confirma a sua soberania a partir da sua encarnação e da exaltação, concedida a Jesus Cristo. A vinda de Jesus Cristo é festa para os desesperados, para os pequenos. Para os poderosos é motivo de preocupação, de colocar o Serviço de Segurança Nacional de Informação em alerta máximo.
A alegria do Natal poderá ser uma realidade a partir do momento em que podemos confessar e viver as palavras do texto. Ao experimen¬tarmos a alegria de que Jesus está aí, Deus se fez gente no mundo, então podemos descobrir o verdadeiro Natal, que dura 365 dias por ano, e se renova anualmente. Neste momento é que nos distanciamos do Natal daqueles poderosos que o querem comprar, manipular, mas não assumem o compromisso, a fé naquele que fez o Natal existir.
A presença de Deus no mundo em Jesus Cristo significa também que Deus se fez missionário. A comunidade vive a realidade de Deus e evangeliza, assumindo, na sociedade em que vive, esta nova realidade. E quando a comunidade assumir esta opção de viver o Evangelho no mundo, ela sairá do círculo romântico do Natal, que visa a promoção pessoal e o prolongamento da miséria com um assistencialismo barato. Onde a vida, o amor, a paz e justiça são vividos com toda alegria. A própria denúncia do Natal capitalista é anúncio do Natal que Jesus quer oferecer com a sua graça.
VI — A pregação
1) Natal — alegria. Por quê? Quem sabe, pode-se apontar aqui para as alegrias presentes, principalmente para aquelas que são passageiras.
2) Leitura do texto.
3) Deus se fez presente em meio a escravidão, domínio, desespero. Deus se fez gente em carne e osso. Entra para dentro da aflição do mundo. Eis a nossa alegria.
4) A alegria do Natal somente será uma realidade quando assumirmos a opção de Cristo. É o momento de tirar o véu romântico do Natal que engana e frustra os empobrecidos.
VII — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Nesta noite, quando nos reunimos para ouvir a boa nova do teu nascimento, da tua vinda, possamos reconhecer a nossa falta de fé no Filho de Deus que se fez pequeno. Nós não o reconhecemos. Que Deus nos perdoe pela indiferença para com esta alegria que podemos ter com o Natal, com o nascimento de Jesus Cristo. Deus veio até nós, mas nós nos afastamos dele. Não queremos compromisso com a verdade. Preferimos falsas promessas, os nossos negócios. Deus, perdoa o nosso pecado da omissão, da indiferença, da covardia, da falta de fé. A uma só voz clamamos: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, abre as nossas mentes, dispersa as nossas preocupações, para que a tua Palavra possa ser a semente da vida eterna que, em nós e entre nós, germine e cresça como dom do teu Espírito. Amém!
3. Leitura Bíblica: Isaías 7.10-17.
4. Oração final: Agradecemos por estarmos juntos aqui e sentirmos quão próximo Deus se fez em nós. Agradecemos por não estarmos para sempre entregues a este mundo, mas que, em Deus, possamos ter a certeza da libertação. Deus veio em Jesus. Ele está aí. Que esta alegria nos possa comprometer, desafiar para transformar este mundo.
— Intercedemos por aqueles que perderam o sentido do Natal em Jesus Cristo. — Intercedemos pelos irmãos e irmãs que, nesta noite, não podem celebrar conosco o Natal. — Intercedemos pelos nossos governantes, para que possam sensibilizar-se com a corrupção, pobreza, injustiça que gera tanta violência. — Sensibiliza-nos, ó Deus, para que possamos sair, agora, na certeza de que o Natal é festa da vida, da alegria. Que esta certeza possa frutificar num mundo melhor. Pai-Nosso. . .
VIII – Bibliografia
– DIETRICH, J. L. A terra e o camponês no Novo Testamento. In: Palavra Partilhada. CEBI-Sul, São Leopoldo, 1987, ano 6, V. 2.
– KÄSEMANN, E. Ensayos Exegéticos. Salamanca. 1978.
– KIEFER, W. Uma análise de Fp 2.5-11. São Leopoldo, 1985 (datilografado).