Prédica: Efésios 4.1-6
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: 17º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 17/09/1989
Proclamar Libertação – Volume: XIV
l — A escuta do texto
1. Andai de modo digno da vossa vocação
a) A dádiva da unidade
Nas comunidades pós-paulinas reina insegurança. A passagem 4.14 dá a entender isso. É necessário pleno conhecimento do Filho de Deus para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro, e levado ao redor por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro. O alvo é que se chegue ã unidade na fé.
Com a finalidade de trazer orientação clara para dentro dessa situação de insegurança é escrito esse tratado teológico em forma de carta. O escrito tornou-se conhecido como Carta aos Efésios. Fala de unidade destinada a todos os seres humanos e a todas as coisas. Ressalta que essa unidade não pode ser alcançada a não ser em Jesus Cristo. E a tarefa suprema da Igreja é ser instrumento e corpo de Cristo na sublime obra de reconciliação e de busca de unidade.
É uma carta escrita na prisão. O autor designa-se a si próprio de prisioneiro de Cristo Jesus (3.1) e de prisioneiro no Senhor (4.1). Entende-se como embaixador em cadeias (6.20). Como mensageiro do Senhor crucificado traz mensagem de esperança e exortação às comunidades.
Uma comunidade não nasce por si mesma. Ela é criada pelo agir do Espírito Santo. Também os cristãos, aos quais o autor de Efésios se dirige, não chegaram a sê-lo com base em alguma decisão ou mérito próprios. No início da carta são expressamente lembrados da sua vocação. É o Deus e Pai do Senhor Jesus Cristo que os escolheu antes da fundação do mundo para serem santos e irrepreensíveis perante ele (1.4). São lembrados do templo em que ouviram a palavra da verdade, o evangelho da salvação (1.13). Pessoas tão diferentes umas das outras, diferentes também em suas opiniões e convicções, são convocadas para serem Igreja de Jesus Cristo. Maior que todas as diferenças é o que une essas pessoas e faz delas uma comunidade, o corpo de Cristo.
Tudo isso se dá no ouvir do evangelho da salvação! A unidade é dádiva de Deus. É nesse sentido que se pode falar em unidade do Espírito, que deve ser preservada. Esta unidade remete para a frente, para a riqueza da glória (1.18), para a esperança da vocação (4.4). Ela não é uma grandeza ao nosso alcance, no sentido de que dela pudéssemos dispor. Ela é dádiva graciosa e, ao mesmo tempo, promissão divina. Os cristãos são chamados a se esforçarem diligentemente por preservar a unidade do Espírito (4.3). Devem procurá-la, sim. Mas ela já sempre está dada antes de quaisquer planos concretos no sentido de também vivê-la.
b) Vivência concreta da unidade
A unidade é dádiva divina, assim dissemos. Ao mesmo tempo, porém, é encargo. Por isso, o apóstolo se dirige em pedido insistente aos seus endereçados. Após lembrar a dádiva da salvação, diz de maneira bem direta: Rogo-vos que andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados (v. 1). E o que é concretamente esse andar digno? A resposta nos é dada no versículo 2. Aí nos é dito, em primeiro lugar, que se trata de um andar em humildade e mansidão. Antes de mais nada podemos aprender o que vem a ser humildade em Jesus mesmo. Lembro Fp 2.5-11. Os filipenses são conclamados a terem em si o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus. Ele a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo (Fp 2.7). Não reinvindicou especiais direitos por ser Filho de Deus. Em Fp 2.3 lemos: Nada façais por partidarismo, ou glória, mas por humildade, considerando cada um dos outros superiores a si mesmo.
Quando nós, porém, falamos em humildade, pensamos de imediato em servilismo e submissão. E um camarada muito humilde se diz quando se pensa que uma pessoa não tem as condições mínimas de avaliar uma situação, de lutar por seu espaço de vida, submetendo-se a tudo e a todos. É presa fácil daqueles que querem explorá-lo. Mas a Bíblia entende por humildade uma atitude positiva.
Em seguida, é mencionada a mansidão. Ela pode ser definida como qualidade ou estado de manso, índole ou procedimento pacífico, brandura, serenidade, etc. O apóstolo Paulo vê nela uma característica do próprio Cristo (2 Co 10.1).
Em segundo lugar, andar na vocação para a unidade se dá em longanimidade. Makrothymia significa paciência, firmeza de ânimo, magnanimidade, perseverança. No Novo Testamento o termo é frequentemente aplicado a Deus mesmo. Paulo adverte o impenitente: ou desprezas a longanimidade de Deus? (Rm 2.4). Em l Tm 1.16 o apóstolo fala da sua própria experiência e destaca que Cristo teve completa longanimidade com ele. Na Segunda Epístola de Pedro (2 Pe 3.15) se lê que a longanimidade do Senhor é nossa salvação. Se Deus fosse um Deus irascível, teria destruído o mundo desobediente. Mas Deu.s é misericordioso e, em Jesus Cristo, veio não para destruir, mas para trazer vida, vida em abundância!
E ainda: o andar segundo a vocação é um andar em amor. Aí se aponta para uma benevolência invencível. Se tratamos uma pessoa com amor no sentido de ágape, nada nos fará desistir de buscar para ela exclusivamente o bem. E não é isso algo instantâneo, mas sim, uma atitude constante e permanente. Estende-se também àqueles que não nos parecem amáveis. Alguém o expressou assim: Ágape é o poder de amor até àqueles que não nos agradam.
2. O fundamento da unidade
a) Um só Senhor, uma só fé, um só Batismo
Até aqui refletimos sobre a unidade como dado básico para a comunidade cristã. É um bem inalienável, pois é dádiva graciosa do próprio Deus. Agora, nos versículos 4-6, é exposto o fundamento para a unidade antes descrita e para cuja preservação diligente a comunidade fora admoestada. Podemos perceber elementos estruturais bem determinados. V. 4: corpo-espírito-esperança; v. 5: Senhor-fé-Batismo; v. 6: o Deus uno o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos. Podemos verificar também um crescendo nas colocações em direção a um alvo culminante.
Um só Senhor. Percebemos aí, de imediato, a semelhança com a confissão da Igreja Primitiva: Jesus Cristo é Senhor (Fp 2.11). Os cristãos primitivos confessam que o próprio Deus elevou Jesus ao senhorio supremo mediante a ressurreição. O senhorio de Jesus se coloca como vitória sobre todas as pretensas autoridades a exigirem obediência incondicional. Neste sentido a confissão que Jesus é Senhor tinha nítida conotação política, pois kyrios era uma designação corrente para o imperador romano. Aí se afirma enfaticamente: Não o imperador, mas Jesus é o Senhor! Ele é o único. Há um só Senhor! Nele está fundamentada nossa única esperança. Podem ser diferentes nossas maneiras de expressão, nossos métodos, nossa organização. Mas marchamos todos em direção da mesma meta. Temos uma só esperança: Um mundo redimido em Cristo, que é nosso único Senhor. A ele estamos ligados na fé.
E onde pessoas se encontram em uma só fé, não pode haver divisão. Fé é confiança inabalável e total em Jesus Cristo. É entrega confiante. Os que se encontram na situação comum de entrega ao Senhor, estão nisso intimamente ligados uns aos outros.
Outro forte argumento em favor da unidade é o Batismo. Ele envolve fundamentalmente na participação no corpo de Cristo. Falando em fé e Batismo, o autor de Efésios aponta para a nova existência que ninguém pode criar e desenvolver mediante seus próprios esforços. Nova existência é dom gracioso de Deus. Efésios encontra-se em genuína tradição paulina. Um só Batismo! Aí não há lugar para divisões.
b) Um só Deus e Pai
Dissemos que se pode perceber em nossa perícope uma argumentação ascendente em direção a um ponto culminante. Chega-se, assim, até à rocha, até ao fundamento último da unidade da comunidade cristã. Este fundamento é exposto no v. 6 em grandiosas palavras de louvor e de adoração: Um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos. Não se destaca, em primeiro lugar, que Deus é Rei e Juiz. O testemunho neotestamentário encerra o que de mais excelso tem a dizer sobre o Deus vivo na expressão Deus Pai.
Ele é sobre todos. Com isso se indica o domínio de Deus. Apesar de tanta coisa parecer indicar o contrário, nada está fora do seu domínio. — Ele age por meio de todos. Aí deparamo-nos com o que se tem convencionado chamar de providência divina. Deus não criou o mundo e, depois, o abandonou a sua própria sorte. Deus está com sua criação, guiando, sustentando, mantendo e amando. Ele está em todos, A formulação grega permite também a tradução em tudo. Temos aí uma fórmula panteísta do estoicismo. Os pensadores dessa escola filosófica grega imaginavam Deus como o fogo mais puro e mais luminoso. Acreditavam que uma centelha desse fogo divino habitava em cada ser humano. Essa centelha é que dava vida às pessoas. Os cristãos, porém, usam essa mesma fórmula para expressar que Deus, exclusivo e único, é o Criador e Mantenedor do mundo e que tudo está sob seu domínio. Ele, em sua bondosa presença, é a fundamentação última da Igreja.
II — Meditação a caminho da prédica
Juntamente com os destinatários da Carta aos Efésios somos admoestados a preservarmos a unidade do Espírito para a qual fomos chamados como comunidade.
Qual é a nossa situação? Percebemos em nosso meio desavenças e conflitos. Barreiras de separação se erguem também na Igreja. Mas somos chamados a vencermos tudo isso através da vivência concreta, através de um andar de modo digno da nossa vocação. Isto é, com toda humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-nos uns aos outros. Aí caem as barreiras de separação. Aí surge vida em comunhão. Deus mesmo possibilita essa nova existência. Assim sen-do, vida em unidade é dádiva divina e, justamente assim, fator decisivo na vida da comunidade. A riqueza que isso representa descreve muito bem o seguinte texto de M. Lutero:
Quem chega a crer por meio da palavra dos apóstolos, que saiba por amor de Cristo e por força desta oração, que ele se tornou um só corpo e bolo com toda a cristandade. Tanto que o que fez bem ou mal a ele como membro, faz bem ou mal a todo corpo; não apenas um ou dois santos, mas todos os profetas, mártires, apóstolos, todos os cristãos, tanto os que estão junto de Deus, sofrem com ele, com ele vencem, lutam por ele e lhe ajudam, protegem e salvam-no, encontrando-se num tal intercâmbio de amizade, que todos suportam suas falhas, sofrimentos e desgostos; e ele, por sua vez, participa de todos os bens, consolo e alegria deles.
Que mais poderia alguém desejar do que entrar nessa comunhão ou irmandade, e se tornar um membro desse corpo que se chama cristandade? Pois quem poderá causar dano a alguma pessoa que tem tal segurança? visto que sabe que, quando tem um sofrimento, por menor que seja, céus e terra, todos os anjos e santos gritarão. Se um pecado o atacar, querendo atemorizar a consciência, morder ou oprimi-la, ameaçando com o diabo, morte e inferno, então diz Deus juntamente com toda a multidão: Querido pecado, deixe-o em paz; diabo, nada lhe faça; inferno, não o devore. — Mas para isso precisa-se de fé, pois aos olhos e à razão do mundo as coisas permanecem bem diferentes, bem ao contrário. (Castelo Forte, 1983, meditação para 25 de setembro.)
Temos nossa existência no meio do mundo. É a ele que devemos o testemunho da fé que nos une. Nosso testemunho de unidade inicia na comunidade local. No dia-a-dia deve-se manifestar que temos um só Senhor.
Por ocasião da Assembleia Constituinte do Sínodo Evangélico Luterano Unido, em Curitiba, a 21 de outubro de 1962, o então P. Presidente E. Th. Schlieper pregou sobre Ef 4.3-6 no culto de encerramento. Recomendo observar como ele fala do testemunho de unidade que os cristãos devem ao mundo.
Também para VII Assembleia Geral da Federação Luterana Mundial em Budapeste, Hungria, de 22 de julho a 5 de agosto de 1984, foi levada a preocupação de que a unidade recebida seja encarnada no mundo pelos cristãos.
Essa unidade deve ser experimentada como sinal da presença de Deus num mundo dividido e abalado por conflitos. Deve ser encarnada em ações da justiça que se fundamenta na força unificadora da Palavra e dos Sacramentos. É possível que isso conduza a conflitos na vida da Igreja. Pois a concordância doutrinária não deixa de ser um aspecto essencial da unidade. Mas esta também inclui a ação conjunta, que desmascara as divisões existentes e se transforma num desafio para os nossos conceitos de unidade eclesial, e conduz à pergunta: Podem permanecer fazendo parte da comunhão adversários políticos, representantes do poder estabelecido (establishment) e da revolução, opressores e oprimidos? (Jesus Cristo-Esperança para o Mundo. FLM — Documentos, no. 13, setembro de 1983, p. 43.)
Proponho que, num segundo momento, se medite com a comunidade reunida em culto dominical o fundamento da unidade a ser vivida no dia-a-dia. Imagino possível acompanhar a argumentação da segunda parte de nossa interpretação do texto bíblico.
Ill — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, tu conheces nossos atos e nossas fraquezas. Tu vês as divisões que há entre nós. Erguemos muros de separação na família e na comunidade na qual vivemos. Deixamo-nos guiar pelo espírito da concorrência e do individualismo. Senhor, tu conheces o escândalo da nossa desunião. Ó Deus, fonte de toda comunhão, dá-nos o teu Espírito, laço de unidade perfeita. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Ó Pai celeste, não permitas que vaguemos na alienação e na desunião. Derrama o teu Espírito Santo sobre nós, a fim de que nos torne livres e abertos a nosso próximo. Agradecemos-te, Pai celeste, porque neste culto, podemos juntos te invocar e escutar a tua Palavra de vida e de esperança.
3. Oração final: Agradecimento pela salvação recebida. Graças porque Deus se faz presente neste mundo de morte. Temos medo. Vemos ao nosso redor tanta injustiça; há tantas pessoas frias e calculistas; sentimo-nos impotentes diante da violência praticada contra os seres humanos e contra a natureza; muitos jovens estão apavorados quando encaram o futuro; sofremos com as divisões que há entre nós; temos medo de nós mesmos. Que Deus nos livre de todo medo e .de uma vida sem futuro. Oremos pela Igreja no mundo. Que ela seja nutrida pelo amor divino e que ela ande no caminho da unidade. Que Deus proteja sua Igreja e una seus membros entre si.
IV — Bibliografia
– GNILKA, J. Der Epheserbrief. In: Herders Theologischer Kommentar zum NT. Freiburg, Basel e Wien, 1971. Vol. X/2.
– KIRST, N. Meditação sobre Efésios 4.1-6. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, 1979. V. 5.
– SCHLIEPER, E. Th. Unidade e solidariedade. In: FISCHER, J. (Org.) Testemunho Evangélico na América Latina. São Leopoldo, 1974.