ESTUDOS BÍBLICOS COM PEQUENOS AGRICULTORES
Leonídio Gaede
I — Introdução
Compartilho aqui um estudo que apliquei diversas vezes. Quero destacar duas experiências: a) Um encontro de dois dias com 18 pessoas: operários e agricultores. Havia homens e mulheres entre 40 e 50 anos e, também, alguns jovens, b) Um encontro, também de dois dias, com 60 jovens, a maioria da área rural. Numa questão os dois grupos se assemelhavam: estavam reunidos para um encontro mais amplo. A parte bíblica que dirigi era, pois, uma parte do encontro. Os grupos já tinham discutido outros assuntos. O gelo já estava quebrado e havia algumas possibilidades de afinamento entre os elementos: conhecimentos comuns, ambiente de descontração, etc. Esta parte pode ser compensada, pelo menos em parte, quando um estudo semelhante for realizado em grupos de comunidades, onde o pessoal já se conhece.
II – Método
Dei um nome para o método usado: dirigir não dirigindo. O que quero dizer com isso? Quero dizer que o dirigente não é neutro quanto ao conteúdo. Ele de fato dirige. Isto também é justo, pois afinal de contas ele preparou o assunto. Neste sentido quem dirige o estudo dirige o seu conteúdo. Uma proposta popular de formação jamais deixará, no entanto, de incluir nos conteúdos objetivados a questão do método. Isto é: O dirigente vai trabalhar de tal maneira que os integrantes do grupo façam as suas próprias descobertas. Estas descobertas passam a fazer parte dos conteúdos do estudo. E elas são um acréscimo ao dirigente. Por isso, o dirigente não tem a pretensão de fazer o grupo descobrir tudo assim como ele mesmo já descobriu anteriormente. As descobertas do grupo são a produção do grupo, são a Palavra de Deus falando àquelas pessoas. Como tal, elas devem ser incorporadas ao método do dirigente, não corrigidas. Dados a respeito do texto são de responsabilidade do dirigente. Sonegação de informações não vale!
III – Passos
Na minha experiência o estudo foi sobre As Pragas do Egito (Êx 7.8 — 10.29 e 12.29-36). A sugestão é que em estudos de tempos menores se escolha uma das pragas, ou então se planeje uma sequência de estudos com o mesmo grupo.
a) Primeiro passo: complicar (no sentido de reunir coisas heterogêneas. Nesta parte a ênfase está no dirigente). Tenho notado que um grupo reunido para estudar envereda antes no caminho da procura se enxergar desafios, isto é até óbvio! Mas não adianta o dirigente dizer que isto ou aquilo é o desafio do grupo. Ele tem que comunicar o desafio. E este foi comunicado quando o esquema mental natural do participante sai da rotina. Como fazer isto? Iniciar pela complicação e não por uma tentativa de nivelamento como se a função do dirigente fosse aparar arestas do início ao fim. Assim optei por entrar no estudo das pragas do Egito por uma porta (uma casa normalmente tem mais que uma porta, o texto também). Esta porta pela qual entrei é feita de duas perguntas: 1) O que é reivindicar? Se você já ajudou numa reivindicação, conte como foi! 2) Você já sentiu concretamente a presença de Deus em sua vida? Se quiser, conte como foi! (Ou conte algum caso de alguém que sentiu a presença de Deus na vida.)
No grupo menor estas perguntas foram respondidas em sessão plenária. No grupo maior foram escalados alguns repórteres que fizeram entrevistas e depois apresentaram os resultados.
É evidente que os testemunhos a respeito de reivindicações vão falar de experiências coletivas. Enquanto isto, também é quase tão evidente que os testemunhos a respeito da presença de Deus na vida vão falar de um sentimento pessoal, íntimo, individual. Mas qualquer que seja a resposta dada às duas perguntas, chegou agora o momento de comunicar ao grupo que, no texto das pragas do Egito, a presença de Deus é sentida no ato de reivindicar. É claro, isto não significa dizer que todo ato político tem que ser religioso, mas significa dizer que não há área em nossa vida à qual o Deus de nossa fé queira ficar alheio.
b) Segundo passo: Concorrer (no sentido de opiniões diferentes poderem correr junto. A ênfase está no grupo). Pode ser um espaço para manejar a Bíblia. É importante que o grupo tenha este espaço de liberdade para que, sozinho ou com um ou dois companheiros(as), olhe de perto o texto das pragas ou outra referência bíblica que tiver na cabeça. Pode ser uma consulta ao texto para conferir, constatar, enfim, aplicar o seu próprio método de leitura. Por isso, não se trata de fazer um trabalho em grupo com tarefa delimitada. Deve ser mais o exercício da liberdade de procurar argumento nas Sagradas Escrituras. Organizar este passo é bem mais difícil do que mandar a turma para os grupos discutir isso ou aquilo.
Tenho experimentado que, com a tomada de conhecimento do texto das pragas, o grupo estudante começa a enxergar os acontecimentos do texto ou como pretos ou como brancos: fica muito claro que Faraó está de um lado e Moisés de outro. Se, no entanto, olhamos para a nossa realidade, os acontecimentos não se dividem em pretos e brancos, mas a coisa fica toda meio cinzenta. Fica mais difícil de discernir. Por isso, acho que faz bem para o grupo ter tempo para falar das catástrofes da natureza. Quem é culpado das secas e enchentes? O grupo tem explicações mais racionalistas (desequilíbrio ecológico) ou mais místicas (castigo de Deus)? Se o dirigente perceber que o grupo se divide na questão, dá pano para muita manga planejar um tribunal do júri onde advogados defendem e acusam uma e outra tese de explicação das catástrofes da natureza. Os demais participantes podem ser o presidente do tribunal e o corpo de jurados que dará a sentença. Evidentemente isto não é proposta quando se trata só de uma noite de reunião.
c) Terceiro passo: conferir (no sentido de ser fiel ao grupo e ao que se sabe. A ênfase está no dirigente). O dirigente precisa ter a oportunidade de expor a sua opinião sincera (até para manter ou conquistar credibilidade). Pressupõe-se que o grupo já tenha adquirido maturidade suficiente para não entender a palavra do dirigente como a palavra que vem para derrotar opiniões. O grupo saberá do que o dirigente está falando, pois tem conhecimento do texto base. O dirigente terá recolhido já, pelo menos, algumas contribuições do grupo. Neste relacionamento com o grupo, o dirigente poderá expor o que ele mesmo descobriu no texto desde que está lidando com ele. Poderá fazê-lo, por exemplo, baseado nos sete pontos do item quatro (Conteúdo).
d) Quarto passo: compor (no sentido de somar conclusões do estudo com experiências do grupo). Pode-se tratar das conclusões tiradas em sessão plenária. Aí depende muito de como está a espiritualidade do grupo. A sessão poderá ser de oração, de formulação de preces, de compartilhar O que deste estudo eu levo para a minha vida e a vida dos outros, O que este estudo diz para o mundo de hoje, Como ser testemunha de Cristo num mundo de pragas. . .
IV – Conteúdo
No texto bíblico das pragas do Egito está fortemente presente uma tradição com origem no contexto do exílio da Babilônia, talvez um contexto de risco de perda da fé em Javé. Na narração desta tradição sempre estão presentes os magos egípcios. Isto é sinal da luta entre Javé e os ídolos. Luta vencida por Javé! (Os mágicos são os primeiros a reconhecer a presença do dedo de Deus — Êx 8.19.) O texto das pragas é a liturgia dos sinais e prodígios que glorifica Javé e prova que Moisés e Arão o representam legitimamente. Podemos dividir as pragas em quatro grupos: 1) as causadas por Arão (1;, 2: e 3:), onde Deus demonstra seu poder sobre a natureza bruta: água sem divisa, pó da terra, animais sem donos (peixes do rio, sapos e mosquitinhos (Almeida diz piolhos!)); 2) as causadas por Moisés (li, 8: e 9:)» onde Deus demonstra o seu poder sobre o ar e o fogo (= tempestade de areia?); 3) a causada por Moisés e Arão (6a.), onde Deus demonstra o seu poder sobre a vida de pessoas e animais; 4) as causadas por Javé (4:, 5. e 10:), onde Deus demonstra seu poder sobre a base econômica da vida em geral (as moscas da 4; praga são um tipo de varejeira que aparece por causa da existência de carne podre de animais mortos em alagamentos de enchentes do rio Nilo. Além disso, a 5a praga mostra os rebanhos vivos sendo atacados por peste). Mas, mais do que isto, as pragas causadas por Javé mostram o seu poder sobre a vida humana, em especial sobre a relação de poder entre criatura e Criador. A 10! praga deve ser vista na ótica de Êx 22.29: O primogénito de teus filhos me darás.
O primeiro grupo só faz causar desconforto aos egípcios e serve para chamar a atenção. Depois, num crescendo constante, se tor¬nam destrutivas da propriedade, do cultivo, do gado, prejudicando as pessoas e chegando à dimensão catastrófica da décima praga. (Galazzi, p. 13.)
Ordenamos assim o conteúdo do texto das pragas do Egito em vista do ser testemunha de Cristo hoje:
1) Na terra da opressão não sai orquestra que presta (Sl 137.4). Hoje ouvimos tantas vezes que o mundo está tão mal porque ninguém mais reza. As igrejas estão vazias. O povo perdeu a fé; por isso aconte¬cem secas, enchentes, catástrofes. . . A Bíblia aqui ensina o contrário: O verdadeiro culto a Deus só vai acontecendo na medida em que se vai conquistando a liberdade. O Sinai vem depois da saída. Antes do Sinai tem que ser queimado o bezerro de ouro (Êx 32.20). Se a igreja está vazia, temos que perguntar pelo andamento do processo de libertação. Josué 24 mostra que o verdadeiro culto é escolhido quando há memória de libertação. Os escravos hebreus puderam fugir para fora do mundo que os explorava. Mesmo que muitos brasileiros hoje estejam abandonando o Brasil, fugir para a terra que mana leite e mel não está entre as nossas possibilidades, pois faraó está em toda a parte. O leite e o mel estão em nossa terra. A desgraça é que o povo está alienado deles por um mar de impossibilidades. O milagre será que as águas da impossibilidade serão muros de proteção em vez de impedimento (Êx 14.22). Ser testemunha de Cristo hoje é encarnar o projeto global de libertação, não se satisfazer com reforminhas internas.
2) Às vezes, quando falamos no projeto de libertação, esquecemos de clarear o papel do opressor. Se o opressor é apontado como agente na situação que requer a libertação, então tem que ser clareado o seu papel no projeto de mudança. E, porque o opressor é também o dominante, a análise conjuntural que o leva em conta desembocará na análise estrutural. O texto das pragas do Egito diz que Deus faz questão de se tornar conhecido para os opressores do Egito. O verbo é iadá e significa um conhecer que inclui o sentir, o experimentar. O opressor é obrigado a sentir a presença libertadora de Javé (Êx 5.2; 7.5; 7.17; 9.14; 9.29; 11.8). Ser testemunha de Cristo, hoje, é experimentar Deus na experiência com os movimentos de transformação (Êx 10.2).
3) Às vezes nos enganamos pensando que para salvar fodos temos que agradar a todos. Achamos que para agradar temos que levar uma atividade julgada neutra. Esquecemos, então, que ser neutro não é ser neutro, mas é estar neutralizado pelo poder atuante. O método de Javé no texto das pragas é distinguir entre oprimidos e opressores (Êx 8.4; 8.21; 8.23; 9.4;~9.14; 9.26; 10.2; 10.6; 10.23; 12.12; 12.23-27). É importante notar que a distinção não está na raça (Êx 12.38; 12.49). Se no texto das pragas há relatos com origem na situação de exílio, então deuses da religião dos opressores tentaram a fé dos exilados.
Mas a liturgia das pragas não admite que oprimidos adotem deuses de opressores (assim como não admite culto no Egito — cf. ponto 1). Por isso está clara a desclassificação da religião de Faraó, está clara a distinção entre o Deus libertador e uma religião que legitima o poder opressor (Êx 7.11; 7.22; 8.7; 8.18-19; 9.11). A verdadeira religião só é libertadora (Is 1.11-17; 58.1-12). Ela nunca vai legitimar uma opressão constituída (Galazzi, p. 17). Ser testemunha de Cristo hoje é atuar a partir do entendimento de que opressores e oprimidos só podem ser salvos através da distinção entre os dois (Êx 10.7: a salvação dos egípcios também está ligada à saída dos hebreus).
4) Talvez nossa vontade de resolver problemas nos faça menosprezar a incompatibilidade entre o bem e o mal. Mas não podemos esquecer a lógica de Gn 3.15. Estão postas inimizades e oposições que precisam ser reconhecidas. No texto das pragas isto aparece quando está dito que Deus endurece o coração de Faraó. O que parece contradição é pura realidade: aquele que acirra a luta endurece o opositor. É o jogo da cana de braço: quanto mais você puxa, mais o outro endurece. Ser testemunha de Cristo, hoje, é contar com a possibilidade de ter complicações no relacionamento com a sociedade dominante, por ser espelho que reflete as imagens do bem e do mal, assim que as duas são reconhecíveis separadamente.
5) Porque o bem e o mal coexistem, nos é difícil reconhecer a divisa de seu antagonismo. O mal muitas vezes vem disfarçado de ovelha e o bem, que numa situação de injustiça tem caráter reivindicatório, nos é apresentado como pura violência. Por isso é preciso que se ultrapasse a fase do julgamento pela aparência e pelo momento. Faraó diz: Peçam a Deus que tire esta praga, e eu deixarei sair o seu povo (Êx 8.8; 8.28; 9.27-28; 10.16-17). Não há provas para afirmar que Faraó aqui não esteja falando sério. Ele está falando corretamente. Mas o seu julgamento não é feito pelo momento correto, mas pela história verdadeira. A história mostra que Faraó e o projeto de sair do Egito não são farinha do mesmo saco. Ser testemunha de Cristo é descobrir a verdade histórica, pois ela pode estar encoberta por posições julgadas corretas apenas pela nossa época. Ser testemunha é não se iludir com resultados imediatos e aparentes.
6) O objetivo, que é a libertação integral (saída), não pode ser tapeado com concessões parciais. O poder ameaçado gosta de fazer as concessões que não afetam a sua essência. Faraó concede que os hebreus celebrem o tão reivindicado culto na terra do Egito (Êx 8.25). Moisés não aceita. Faraó concede que saiam para celebrar o tal culto, mas que saiam só os homens (Êx 10.11). Moisés não aceita. Faraó concede que saiam todos, inclusive as crianças, mas que fique o gado (Êx 10.24). Moisés, além de não aceitar, reivindica gado do Faraó para levar junto (Êx 10.25). Podemos até enxergar uma progressão nas concessões de Faraó. Parece que há avanços: Primeiro ninguém pode sair, depois podem sair os homens e na última proposta todos podem sair, só fica o gado. Mas, com tqdas as concessões, Faraó assegura uma coisa: que depois do culto os filhos de Israel voltem para o mundo da escravidão. Se Moisés não aceita nenhuma proposta destas é porque sabe que a questão essencial é celebrar a libertação da escravidão e não celebrar por celebrar. Ser testemunha de Cristo hoje é não se submeter a quem gosta de oferecer migalhas e sobras (Lc 16.19ss; Lc 21.1ss).
7) Em toda luta pela vida, a morte como oposição a Deus está sob o domínio de Deus (Rm 6). Por isso, na questão de dar ou tirar a vida, Deus está sempre na frente (Êx 9.15-19). Não é possível que um ídolo se antecipe nesta questão (Ex 10.28). No contexto da 10: praga precisamos ver a questão da morte dos primogênitos, como já dissemos, na ótica de Êx 22.29: O primogênito de teus filhos me darás. Na relação com a terra dos ídolos, o Egito, a questão se amplia, como mostra Êx 4.22-23. O povo de Israel consagra seus primogênitos a Javé, verdadeiro, único e eterno Rei (não tem o problema da sucessão presidencial!). Os primogênitos do povo de Faraó são consagrados ao ídolo do trono da opressão. Representam a continuidade do reino da morte. Na matança dos primogênitos egípcios morrem candidatos ao trono opressor. Ser testemunha de Cristo hoje é trabalhar neste sentido: reinar, dar ou tirar a vida, compete a Deus. Temos esta certeza de que no fim das contas Deus interrompe o reino da morte. Afinal, ele tem experiência em criar a partir do caos (Cm 1.2). Ele começa a vida até a partir da pedra (Mt 3.9; Êx 17.5).
V— Resultados
Graças a Deus, podemos computar em nossa experiência uma fase em que se vibra quando um estudo da Bíblia desemboca numa ação concreta. Deste tipo: No estudo concluímos que a questão é ajudar as viúvas. Por isso o grupo resolveu visitar a Fulana de tal para oferecer ajuda. Por outro lado, quando não há este tipo de encaminhamento a gente tende a dizer: Discutimos, discutimos e não deu em nada. Do meu ponto de vista, este saudável movimento dos grupos de estudo bíblico que saem de si devem também preservar o outro movimento que é o retornar a si. O estudo bíblico não é só ponto de partida, também é ponto de chegada. A prática chamada cristã quer ser celebrada nos estudos. Por causa disso, uma prática cristã diversa quase sempre leva a divergências num grupo de estudos. Em princípio, isto deve ser visto como riqueza e não como limitação do grupo.
A partir desta reflexão acho que precisa ser esgotado o estudo bíblico como oração. Em geral dá para dizer que o racionalismo tomou conta dos grupos. Oração é aquele momento em que, na ótica do mundo, onde quem decide é a produção, você joga tempo fora. Você está orando de fato a Deus quando se nega a prestar serviço a Mamon (Mt 6.24) e presta culto (Dienst) unicamente a Deus.
Para o capitalista puro, a oração é uma perda de tempo. E para o cristão verdadeiro, a oração é negar as regras de Mamon. Por isso, ter um grupo que se reúne para estudar a Bíblia sem segundas intenções pode ser hoje um tapa na cara do ídolo. Não convém esquecer, porém, que o exercício do amor ao próximo é decorrência natural do tapa dado no ídolo. O cristão de fato age. Não e admissível pensar que aqueles que se autoproclamam como não-cristãos sejam sozinhos responsáveis pela transformação deste mundo que os cristãos não amam.
Tenho percebido que o estudo do texto das pragas do Egito ajuda a derrubar o preconceito de que certas boas obras como, por exemplo, lutar por melhores preços para os produtos dos colonos, lutar por terra, lutar pela vida do índio, do negro e da mulher, não possam ser feitas em nome de Deus.
IV — Bibliografia
GALLAZZI, S. A Mão do Senhor contra o Egito. In: Estudos Bíblicos. 2. ed. Petrópolis, 1987, V. 6.