Prédica: Êxodo 16.2-3,11-18
Autor: Clóvis Horst Lindner
Data Litúrgica: 7º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 09/07/1989
Proclamar Libertação – Volume: XIV
l — Considerações exegéticas
Os dois grandes blocos temáticos abordados no livro do Êxodo são a saída do Egito e a aliança no Monte Sinai. Entre esses dois temas encontra-se a divisa natural do cap. 16, no qual se relata esta impressionante história. Ela obviamente merece o destaque que recebeu, pois engana-se quem a julgar apenas como uma história com função de mera transição geográfica (passagem pelo mar / experiência no deserto / Sinai). Ao contrário, o deserto é campo de aprendizado, no qual a fé em Javé é confrontada com a dureza da realidade.
Como um todo, o cap. 16 apresenta ao povo a questão do descanso sabático semanal como uma ordem natural da criação. Dentro desta temática oculta-se essa jóia de raro valor em todo o AT. Por isso mesmo, não há como contestar o fato de que a temática do sábado escorrega para um segundo plano na delimitação da perícope — e com razão. Não há como usar o curto espaço de uma prédica para refletir sobre os dois assuntos. Por isso mesmo a delimitação apenas preserva a murmuração dos israelitas e a consequente ajuda de Javé, que sacia seu povo faminto no deserto.
Por outro lado, os w. 2-3 e 11-18 contêm, de forma resumida, a estrutura de todo o capítulo. O povo murmura e manifesta sua necessi¬dade de maior segurança neste empreendimento desconhecido e pouco palpável. A resposta que recebe é esta surpreendente, salvadora e incon-dicional dádiva de Deus que, evidentemente, não se pode estocar nem acumular. Assim, o texto segue um motivo central do tema do Êxodo. Em oposição à imagem de segurança associada à escravidão (Egito), se abre um novo caminho de liberdade, que inicia com a dura fase da passagem por um deserto hostil e desconhecido. A espetacular saída do Egito e a passagem pelo mar não têm, como ato contínuo, a aliança no Sinai e a tomada da terra prometida. Antes do happy end vem a dura experiência da caminhada por um deserto ameaçador e pouco acolhedor. O deserto tira o sabor prematuro de vitória. Ele se abre diante do povo como um vasto campo de experiências ameaçadoras e de perigos constantes. Mas também, como um tubo de ensaios para a percepção do amor de Javé pelo seu povo, o qual protege e orienta (cf., p. ex., cap. 17). Os resultados obtidos nesse grande tubo de ensaios serão conservados como lembrança muito viva na memória histórica de Israel. Êx 16 pertence a uma série de textos que são lidos à luz desta percepção histórica em importantes dias festivos.
O deserto é a grande experiência inicial de liberdade na vida de Israel. Dele, ficam as marcas da juventude deste povo; da doce primavera de sua libertação. O deserto foi o grande espaço que acolheu este povo jovem e recém-liberto da maneira como se recebe o melhor amigo. Por isso mesmo, o deserto foi o espaço onde Israel respirou o ar da liberdade pela primeira vez. Nele, os israelitas perceberam pela primeira vez o significado da palavra imensidão; qual a sensação de poder olhar até onde a vista alcança. Foi igualmente no deserto que se lançaram os fundamentos da primeira grande religião monoteísta da história primitiva da humanidade.
Deus conduziu o povo ao deserto para salvá-lo. Mas, o resultado é perseguição (14.10ss), sede (15.22ss; 17.2ss), fome (16.2ss), perdição e praga das serpentes (21.6ss), e brigas: Eles murmuraram contra Moisés e Aarão.
O deserto como o lugar da grande experiência de liberdade também se transforma em solo fecundo para a semente da dúvida. Será que não é melhor que voltemos ao Egito? (14.3.) A fé em Javé passa por um duro teste nem sempre vencido satisfatoriamente.
Essa sensação de ter dado um passo errado cria uma imagem extremamente idealizada do passado. Necessidades do presente são péssimos óculos para olhar o passado. Elas passam o passado a limpo. Nossa memória tem a incrível capacidade de transformar preto e branco em colorido. Pois, diante de panelas cheias de carne cozida, os antigos escravos egípcios certamente não estiveram com regularidade. (M. Noth, p. 106.)
No entanto, como ocorre muitas vezes, atrás de um sonho oculta-se uma meia-realidade, pois o escravo está de fato livre de muitas preocupações características da liberdade responsável. Num regime escravocrata ê o dono de escravos que determina, pensa e resolve as coisas pelos escravos. A liberdade está prenhe de responsabilidade. Este é o preço que nem todos estão dispostos a pagar.
O maná do deserto é uma inusitada experiência de salvação. Mas tais experiências de salvação não podem ser creditadas como ganho numa espécie de poupança de dádivas divinas. Javé não é um Deus que se credita como lucro. Somente é possível estar consciente de que ele existe e está aí para nós (para que saibais que eu, Javé, sou o vosso Deus; v. 12). Este é o Deus da libertação, que se revelou a Moisés (cf. Êx 3.14).
A crítica profética sempre tem se erguido, de modo especial, quando a salvação divina era considerada como posse indestrutível e intransferível, na qual a condição de escolhido se confundia com uma espécie de título a ser apresentado a Javé como conditio sine qua non: Tu nos escolheste! Tu tens compromisso conosco! (Cf., p. ex., Mq 2.11).
Êx 16 fala especificamente do milagre do maná. As mansas codornizes citadas no v. 13 têm uma importância maior em Nm 11
— texto de tradição mais antiga. A redação mais recente de Êx 16
— um escrito sacerdotal — absorve tal tradição mais antiga e a conjuga, ao lado do milagre do maná, numa única narrativa.
Tanto o maná como as codornizes não podem ser exatamente enquadrados no terreno dos milagres. Ambos são fenómenos naturais, comuns até hoje na região do Sinai. O maná é resultado do trabalho de pequenos piolhos, que sorvem a seiva dos tamariscos, extraindo dela o necessário para alimentar suas larvas, deixando o restante cair ao solo em forma de pequenas gotículas endurecidas e de sabor adocicado. Milagroso talvez tenha sido o fato de se ter encontrado uma impressionante quantidade desse alimento. As codornizes, por sua vez, são pássaros cansados do longo voo ao qual são obrigados pelo vento que os impulsiona por sobre o mar. Ao pousarem, semi-mortos de cansaço, podem ser apanhados com extrema facilidade. Nenhum milagre, por-tanto?
Sim, e não! Simplesmente aconteceu salvação! É esta que conta. É desta que o povo se lembra! A salvação acontece mesmo sem transformar o deserto num reino de magia, onde o pão cai do céu, como neve, e os pássaros passam voando, assados e prontos para o consumo. A salvação acontece por meio de alimento natural oriundo do chão do deserto. A fome é saciada. Assim, Israel experimenta que Deus — aquele que os chamou para fora do Egito — está com eles, salvando ë preservando sua comunidade diariamente de forma nova. Como ele o faz é secundário. Também no deserto Javé encontrou suprimento. O povo pode colher aquilo que cada um necessita para seu sustento diário (16.4).
No v. 15 encontramos um interessante jogo de palavras. Diante desta inusitada comida, os israelitas perguntam espantados: man hu (O que é isso?). No surpreso O quê? (man) oculta-se o significado etimológico popular deste alimento: maná (v. 31). O maná também aparece várias vezes no NT como alimento dado por Deus que promove a vida, como referência específica a Êx 16, especialmente em Jo 6 e Ap 2.17. O apóstolo Paulo apresenta o pão do céu de Êx 16 e Nm 11 como o antecessor do pão da Santa Ceia (l Co 10.3).
E interessante observar, também, que o colher apenas o suficiente para cada dia caracteriza uma situação de justa distribuição dos bens. Ninguém tem condições de acumular além daquilo que precisa para o dia de hoje e, por outro lado, ninguém fica sem a parte que precisa para o dia de hoje. Assim, Êx 16 transforma-se num modelo de paz no sentido hebraico da palavra Shalom. Shalom é ter o suficiente (Ebach, p. 115). Dessa forma, a perícope também carrega em si algo da estreita ligação bíblica entre os conceitos de paz e justiça.
II — Passos para a prédica
1. Deserto
Com o deserto começa a experiência de liberdade para Israel. Ele faz parte dela como um campo é indispensável para a partida de futebol. Para a prédica, este aspecto pode servir de introdução e fio vermelho, da seguinte maneira:
a) Descrição de deserto como unidade geológica;
b) Descrição de deserto como situações difíceis em nossa vida (solidão, vazio interior, guerras, opressão, etc.);
c) O deserto para Israel como passagem para a liberdade e para a vida; treinamento para a liberdade responsável.
2. Murmuração
A experiência de deserto provoca ansiedade. Diante disso, há duas atitudes possíveis: calar-se ou protestar. Israel escolhe o protesto, apesar de ter sido libertado há pouco tempo das garras de seu opressor. Parece contradição e até falta de gratidão, que provoca uma falsa visão do passado, tornando-o cor-de-rosa. Mas, há dois aspectos importantes:
a) Só quem desabafa pode ser ouvido;
b) Deus aceita o desabafo de seu povo (nosso também).
3. O Deus que ouve — Senhor e preservador
Deus ouve o grito que vem do deserto. Também a clareza do nosso grito determina a intensidade de nosso conhecimento sobre o deserto que nos rodeia hoje. Deus ouve também o nosso grito e diz também hoje: Eu sou o vosso Deus! Esta é a mensagem decisiva também em nossos dias:
a) Nós temos um Senhor que é Deus e um Deus que é Senhor! Ele está acima de todos os poderes políticos e financeiros do mundo moderno, que provocam situações de deserto;
b) Ele não é o Deus das multinacionais, nem das estratégias militares, nem do FMI e seus comparsas credores;
c) Ele é o Deus dos pequeninos a caminho no deserto;
d) Ele não é um imperador, mas: o Deus que vai junto, acampa junto e sofre junto com o povo a caminho no deserto.
4. Preservação hoje
Podemos confiar somente neste Deus que está ao nosso lado no deserto e permanece conosco:
a) Ele preserva e sacia (sem milagres, mas com aquilo que já existe à disposição!);
b) O maná como alimento para cada dia (sem poder ser acumulado!), do qual todos tinham o suficiente (Shalom!);
c) Jesus Cristo é Deus conosco hoje! Ele é o maná para a vida e para a coragem de protestar contra formas modernas de deserto e de injusta distribuição do maná (acumulação como forma de estabelecer podridão);
d) Por meio de Cristo, Deus nos preserva e sacia, dando nova vida;
e) Por meio de Cristo, Deus nos chama a murmurar contra a falta de paz e justiça, para que nossa murmuração possa transformar-se em alimento e vida para todos! Onde isso acontece, a justiça merece ter esse nome, e a tão propalada paz começa de fato a acontecer!
5. Possível final
Nós sabemos o que é deserto, cara comunidade: uma paisagem de morte. Sabemos o que é deserto em nós e à nossa volta: uma paisagem de morte! Mas, também sabemos como o deserto pode ser afastado: com vida cheia de confiança, de tal maneira que possa surgir uma nova paisagem. Pois, onde cresce confiança em Deus, cai uma gota daquela chuva que transforma desertos em jardins floridos! (Makarowski, p. 10.)
Ill — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de culpa: Senhor Jesus Cristo! Chegamos diante de ti com humildade para reconhecer o quanto temos sido inconsequentes novamente nesta semana que passou! Vivemos dizendo que é preciso mais paz e justiça, mas continuamos indo na direção que não queremos. Somos agressivos e injustos. Pensamos somente em nós mesmos. Nos julgamos os melhores e os que sabem tudo. Vivemos criando situações de deserto para os outros, trazendo sofrimento e dor, incompreensão e preconceitos, ódio e egoísmo. Permite que busquemos corn sinceridade aquilo que tu queres de nós. Perdoa-nos e anima-nos a transformar desertos em oásis! Perdoa-nos e dá-nos o verdadeiro e salutar espírito do amor que vem de ti, para que não acumulemos acima do que precisamos para a nossa sobrevivência digna. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus e Pai! Tu queres falar conosco por meio de tua Palavra. Dá-nos o espírito da disposição de ouvir. Afasta interferências que ofuscam o ouvir atento. Fala conosco, Senhor, para que ouçamos a tua libertação! Fala conosco, Senhor, para que nos deixemos capacitar para a f é e o amor verdadeiro! Em nome de Cristo! Amém!
Oração final: Senhor, nosso Deus! Queremos te agradecer por nos permitires ouvir esta história tão impressionantemente plástica do maná no deserto. Nós também conhecemos situações de deserto em nossa vida e à nossa volta. Muitas situações de deserto. Também nós nos decidimos a caminhar em uma nova direção na vida e, quando damos os primeiros passos, sentimos medo e dúvida. Para podermos viver, Senhor, nós precisávamos ouvir novamente esta história. Ela nos conta o quanto tu nos presenteias, dando-nos em Cristo o pão vivo que desceu do céu. Ajuda-nos a não querermos este alimento de vida somente para nós mesmos. Torna-nos instrumentos para levar vida adiante. Por isso, te pedimos hoje que tu sejas o maná em todas as situações de deserto em nosso mundo (com base na realidade, interceder pelos problemas do lugar e do mundo à volta).
IV — Bibliografia
– EBACH, Meditação sobre Êx 16.2-3, 11-18. In: Gottesdienst-praxis. Gütersloh; 1983. V. 4.
– JENNI, E. e WESTERMANN, K. — Theologisches Handwörterbuch zum Alten Testament. München, 1976. V. 2.
– LEMKE, I. Meditação sobre Êx 16.2-3,11-18. In: Predigtstudien. Stuttgart, 1984. V. VI/2.
– MAKAROWSKI, K. D. In: Gottesdienst-praxis, Gütersloh, 1984. V. VI/3.
– NOTH, M. Das zweite Buch Mose. In: Das Alte Testament Deutsch, 5. ed., Göttingen, 1968; V. 5.
– von RAD, G. Theologie des Alten Testaments. 6. ed. München, 1969. V. 2.
– WOLFF, A. Meditação sobre Êx 16.2-3,11-18. In: Assoziationen, Stuttgart, 1983. V. 6.