Prédica: Jeremias 7.1-11 (12-15)
Autor: Joachim Fischer
Data Litúrgica: 10º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 30/07/1989
Proclamar Libertação – Volume: XIV
l — A situação histórica
Jeremias, nascido por volta de 650 a. C. em Anatote, a 7 km ao nordeste de Jerusalém, como filho do sacerdote Hilquias (1.1), foi chamado a ser profeta em 627/6 (1.4-10). Iniciou sua atividade no tempo do rei Josias de Judá (639/8 — 609). Este tentou reconquistar a independência do país ante o domínio assírio e restabelecer o reino de Davi. Após ter sido encontrado, no templo de Jerusalém, o livro de Deuteronômio (2 Rs 22.8-10), Josias promoveu uma grande reforma político-religiosa: fez uma aliança entre Javé e o povo (2 Rs 23.1-3); suprimiu os cultos a outros deuses senão Javé, concentrando o culto a Javé em Jerusalém (2 Rs 23.4-20); talvez tenha realizado também as reformas sociais exigidas por Dt (cf. Jr 22.15s). No fim, porém, sucumbiu ante o poder egípcio: foi morto na batalha de Megido contra o faraó Neco (2 Rs 23.28-30a). Seguiu-lhe no trono, por três meses, seu filho Jeoacaz. Mas este foi deposto por Neco, deportado para o Egito (2 Rs 23.30b-33a,34b) e substituído por seu irmão Eliaquim, cujo nome foi alterado pelo faraó para Jeoaquim (2 Rs 23.34a). O país tornou-se dependente do Egito, o que se evidenciou no pagamento do tributo ao faraó (2 Rs 23.33b,35).
Os acontecimentos deste tempo agitado e conturbado constituem o pano de fundo histórico de Jr 7.1-11. Neste texto transparecem as questões da coerência entre fé e vida (vv. 3-5a,9s), da prática da justiça em relação ao próximo (v. 5b), dos marginalizados e oprimidos (v. 6a), do culto a outros deuses senão Javé (vv. 6b,9b) e da profanação da casa de Deus (vv. lOs). A partir da história, pois, encontramos as primeiras pistas para a prédica.
II – O texto
Em Jr 7.2b-15 encontramos o que geralmente é chamado de discurso do templo, palavras de Jeremias faladas ao povo reunido no templo de Jerusalém. Segundo 26.1, o discurso foi proferido no início do reinado de Jeoaquim. 7.1 constitui a instrução redacional; 7.2a é palavra de Javé ao profeta. No cap. 26 encontramos um breve resumo do discurso (vv. 4-6) e um relato detalhado sobre suas consequências (vv. 7-19).
Uma análise mais pormenorizada mostra que o discurso não foi proferido exatamente na forma em que nos é transmitido em 7.2b-15. Trata-se de uma composição de vários elementos, feita por gerações posteriores (talvez discípulos de Jeremias), a partir de palavras autênticas de Jeremias. Os redatores certamente estavam movidos pela intenção de manter viva a memória da mensagem profética e de atualizá-la para sua situação, que era diferente da de Jeremias. O discurso, pois, pode ser caracterizado como um trecho em que um núcleo jeremiânico foi trabalhado e elaborado, posteriormente, como uma espécie de sermão. Este apresenta caráter deuteronomístico.
Nos vv. 8-11, as características da pregação autêntica de Jeremias transparecem com maior clareza: a radicalidade da mensagem, a maneira incisiva e apodíctica de falar, a irritação do profeta. Nos vv. 3-7 temos um Jeremias mais trabalhado, mais condicional, por assim dizer (se emendardes os vossos caminhos, então eu vos farei habitar neste lugar). Trata-se de um Jeremias deuteronomizado.
Sugere-se como texto para a prédica os vv. 1-11. Mas deve-se tomar em consideração também os vv. 12-15, onde o texto aponta para os precedentes de Silo e Efraim e anuncia o juízo.
III — A mensagem profética
Jeremias proclama a vontade de Javé no momento em que o povo de Judá vê fracassar sua esperança por independência nacional. Devido à derrota de Megido, à morte de Josias, à destituição de Jeoacaz e ao avanço dos egípcios, o povo sente-se frustrado, perplexo, amedrontado, inseguro no plano político. Tanto maior, no entanto, é a confiança que deposita no templo. É, aparentemente, a única certeza, o único apoio que sobra. Acredita-se que o templo garante a presença de Javé tem meio ao seu povo e a segurança nacional do mesmo. Templo do Senhor é este é o grito de guerra do povo (v. 4). A repetição do grito na mensagem profética indica que o povo se agarra desesperadamente naquela superstição mágica.
Jeremias não apoia o povo naquilo que parece ser a única saída possível. Ao contrário, ataca duramente sua crença: ela é mentirosa (v. 4a), pois leva a uma falsa segurança. Por outro lado, na primeira parte de seu discurso, tampouco corta qualquer possibilidade de esperança. Aponta para aquilo que em verdade é a única evidência da presença, do apoio e da proteção de Javé: a mudança profunda da vida, para que esta realmente corresponda à vontade do Senhor e seja coerente com a fé que se confessa: Emendai os vossos caminhos e as vossas obras (v. 3). Ao introduzir sua mensagem com o nome solene de Javé (v. 3a: o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel), Jeremias lembra seus ouvintes da aliança que Javé estabeleceu com eles. Na aliança, a salvação (vv. 3b,7: a posse da terra) só será dada se as exigências da aliança serão levadas a sério. Promessa e compromisso são inseparáveis. Mas quando o compromisso for conscientemente assumido, a promessa vale apesar da ameaça pelos egípcios.
O compromisso abrange, basicamente, o que os profetas sempre exigiram: praticar justiça no relacionamento com as pessoas, dar chances iguais também aos que geralmente são oprimidos, respeitar a vida e o direito à vida (uma vida digna!) e fidelidade a Deus (vv. 5b-6). Podemos resumir esse compromisso em quatro conceitos: justiça, igualdade (ou: amor), vida, fé. São conceitos que dizem respeito à vida pessoal e ao convívio na sociedade. A presença de Javé no mundo e na história, pois, está relacionada com a vida das pessoas que nele crêem, e com a vida da sociedade ou comunidade que tais pessoas constituem; não está relacionada com algo material, uma construção, como, p. ex., o templo.
O estrangeiro, o órfão e a viúva são, no Antigo Testamento, os representantes dos economicamente fracos e socialmente desclassificados. Todo o Antigo Testamento deixa claro que Javé está ao lado desses oprimidos (cf., p. ex., Dt 10.18). Sempre de novo exige-se do povo de Javé que conceda àqueles oprimidos chances iguais para viver (cf., p. ex., Dt 14.29).
Na segunda parte do seu discurso, Jeremias critica mais duramente ainda a falsa segurança que o povo acredita ter encontrado em sua confiança supersticiosa e mágica no templo. Aponta de maneira mais concreta ainda para a contradição gritante entre sua atitude diante de Javé e seu comportamento no dia-a-dia. No templo, diante de lave, acreditam já estar salvos pela simples presença de Javé (v. 10). Mas fora do templo, em sua vida diária, transgridem os mandamentos do mesmo Javé, um por um: roubam, matam, cometem adultério, juram falsamente, adoram a Baal e a outros deuses (v. 9). Jeremias alude, pois, expressamente aos 7°, 5°., 6°. e 2: mandamentos (segundo a contagem luterana). Pior ainda: não sentem nenhuma dificuldade de assistirem, de vez em quando, ao culto no templo, de auto-assegurarem-se, nestas ocasiões, de sua (suposta) salvação e de continuarem vivendo contra os mandamentos de Javé (v. 10). Assim dão a entender que a casa de Javé, para eles, não passa de um covil onde querem se abrigar, como salteadores se escondem em seu covil, após terem praticado seus assaltos. Eles mesmos, ao entrarem no templo, transformam-no em tal covil, expulsando o verdadeiro proprietário, Javé (v. 11). A este trecho do discurso do templo refere-se Jesus ao expulsar do templo os vendedores, compradores e cambistas (Mc 11.15-17; Mt 21.12s; Lc 19.45s).
A comunidade reunida deve ter ficado muito chocada. Mais chocados ainda ficaram os ouvintes diante do anúncio do juízo, ou seja, da destruição do templo e da expulsão e dispersão do povo (vv. 12-15). Nesta última parte do discurso, Jeremias já não chama mais para uma mudança; não deixa entrever em suas palavras nenhuma possibilidade de salvação. Não é de estranhar que logo queriam matá-lo (26.8-11).
IV — Reflexões para a prédica
1. Segundo a tradição da igreja, o 10: Domingo após Trindade lembra os cristãos da destruição de Jerusalém no ano de 70 d. C. Quer-se, assim, estimular a comunidade e refletir sobre seu relacionamento com Israel. Mas não me parece um tema adequado para uma prédica no final do século XX. Pois as gerações pós-Auschwitz facilmente poderiam ser levadas pelo texto de Jr 7.1-11 a entenderem o genocídio praticado por alemães, sob o regime nazista, contra o povo judeu como sendo o juízo do qual fala o profeta. Seria um desastre se a prédica fortalecesse, sem querer, o anti-semitismo que existe por aí. O perigo de tal mal-entendido talvez tenha sido o motivo pelo qual o anúncio expresso do juízo (vv. 12-15) não foi incluído no texto que serve de base para a prédica.
2. O discurso do templo dirigiu-se a todos de Judá que estavam reunidos, em determinada ocasião, no templo em Jerusalém. Não podemos aplicá-lo, sem mais nem menos, à comunidade que ouve nossa prédica, por mais tentador que tal procedimento seja. Nossos ouvintes não são idênticos aos judeus que ouviram as palavras de Jeremias. Nem nós pregadores recebemos a ordem expressa de proferir hoje tais palavras. Para podermos transmitir adequadamente a mensagem do texto, creio que precisamos orar mais do que nunca para que sejamos devidamente iluminados por Deus para nossa tarefa.
3. Fiel ao texto, a prédica será, sobretudo, uma prédica contra , a saber, contra a falsa segurança dos que crêem, onde quer que estejam. A comunidade não pode ser poupada deste confronto. Adorar a Deus é a finalidade mais nobre da vida humana. Mas nisso esconde-se também o maior perigo. A fé em Deus facilmente se desvia, se distorce, se corrompe. Torna-se uma falsa confiança em Deus, quando o ser cristão nada mais é do que preservação da tradição, sem vida própria, sem compromisso com o futuro. Qualquer despertamento na igreja pode terminar como a reforma de Josias: depois da irrupção primaveril inicial em que os cristãos não se desviam do caminho de Deus nem para a direita nem para a esquerda (cf. 2 Rs 22.2b), vem a estagnação: a pergunta pela vontade de Deus para o momento atual é esquecida; pratica-se novamente o que era mau perante o Senhor (2 Rs 23.32,37;24.9). Quando isso acontecer, não adianta nada o fato de sermos herdeiros da Reforma de Martim Lutero, de valorizarmos a Bíblia e de termos uma estrutura bastante democrática na igreja. Nada disso nos garante a bênção de Deus se disso não decorrer o compromisso sério de se cumprir a vontade de Deus, aqui e agora.
Falsa é a confiança em Deus que se limita a uma atitude puramente espiritual, divorciada da vivência do dia-a-dia. O v, 9 estimula-nos a atualizarmos a prédica mediante exemplos concretos. Seria bom colocai a questão dos outros deuses em primeiro lugar, como a raiz de todos os outros males, visto que o 1o. mandamento é o principal: Eu sou o Senhor teu Deus. Não terás outros deuses diante de mim (Êx 20.2a,3). Ter um deus significa confiar e crer (. . .) de coração em alguém ou algo de que(m) se espera todo o bem e toda a felicidade (Martim Lutero, Catecismo Maior, explicação do l! mandamento do decálogo). Em quem ou em que a comunidade confia e crê de coração?
Em quem ou em que nós confiamos e cremos de coração? Talvez Lutero novamente nos possa dar uma boa pista ao dizer que dinheiro e bens materiais são o ídolo mais comum na terra (Catecismo Maior).
4. O culto a falsos deuses destrói inevitavelmente o convívio humano. Há roubo, ou seja, exploração dos outros, enriquecimento às custas de outros, sobretudo dos social e economicamente mais fracos, que em geral também politicamente não estão organizados e, por isso, não têm voz que seja ouvida. Há desconsideração das multidões de favelados e famintos, aos quais se nega o que precisam e o que merecem. — Há assassínio, ou seja, ameaça e agressão à vida das pessoas e da natureza, como subnutrição, aborto, falta de um sistema mais eficiente de saúde. Há violência de toda espécie nos lares, nas relações de trabalho, nas prisões, nas estradas. —Há adultério, ou seja, desprezo da fidelidade entre cônjuges, aversão contra o compromisso pessoal, que é essencial no casamento. Há uma verdadeira indústria que explora o culto à sexualidade, em revistas, no cinema, na televisão, na prostituição. Trata-se, em última análise, de uma atitude para a qual a felicidade do próprio Eu é o supremo valor. — Há falsos juramentos, ou seja, uma atitude irresponsável em relação à verdade, a manipulação da verdade em proveito próprio, o uso da meia-verdade. As pessoas tornam-se meros objetos. No fim, não se pode mais confiar em ninguém.
5. Essa realidade pode estar presente — e muitas vezes de fato está presente — no meio do própria comunidade cristã, no fundo do coração dos próprios membros. Aos domingos se vai à igreja e se participa do culto, mas nos dias chamados úteis (o domingo é, por acaso, dia inútil?) a f é é aposentada. Diante do mundo, essa realidade pode ser negada; pode ser escondida atrás da fachada de uma fé aparentemente respeitável. Mas diante de Deus ela não pode ser escondida. Creio que é necessário confrontar a comunidade com essa realidade. Seria bom se ela a reconhecesse como sendo também a sua e percebesse que a mensagem profética não quer atacar os outros. É impossível enganar a Deus sobre nossa verdadeira situação. Conseqüentemente, não deveríamos nos enganar a nós mesmos a esse respeito.
6. A revelação da nossa verdadeira situação em relação a Deus não é obra nossa. Deus quer libertar-nos do engano. Quem se deixa atingir pela palavra do juízo, quem não resiste à morte do velho Adão, pode contar com a presença e a ajuda de Deus. A caminhada é sofrida, pois é a caminhada em que compartilhamos da cruz de Jesus Cristo.
Aqui a mensagem da nossa prédica vai além do texto de Jeremias. Em Cristo, Deus faz com que nossos caminhos e nossas obras se tornem boas. Em meio à realidade da desobediência à vontade de Deus há também sinais da presença salutar de Deus no mundo. São lugares e grupos ou comunidades onde se pratica justiça, não se oprimem os fracos, se respeita a vida — e tudo isso porque se pergunta pela vontade de Deus hoje e se luta para permanecer fiel a ele, o Senhor dos Exércitos, Deus de Israel e Pai de Jesus Cristo.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados; Misericordioso Deus. Chegamos a ti e te abrimos nosso coração. Em nosso dia-a-dia muitas vezes confiamos mais em nós mesmos do que em ti, Criador de todas as coisas. Com a boca confessamos nossa fé em ti, mas nossos caminhos e nossas obras frequentemente não correspondem à tua vontade. Transgredimos os teus mandamentos e seguimos os desejos egoístas do nosso coração. Criamos nossos próprios deuses em vez de adorarmos unicamente a ti. Separamos fé e vida e mesmo assim cremos que somos salvos. Somos injustos para com nosso próximo. Oprimimos os que são mais fracos que nós. Sentimos dolorosamente a profunda contradição em nossa existência. Clamamos a ti: perdoa a nossa culpa; dá-nos a chance de um novo começo; tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Pai celestial. Pedimos-te que nos mandes teu Santo Espírito, para que possamos realizar este culto, gratos por tua bondade e atentos à Palavra. Abre nosso coração para o encontro contigo. Livra-nos de tudo o que nos impede de buscar-te. Abençoa-nos nesta hora com tua presença. Pedimos-te em nome de Jesus Cristo, nossa única esperança hoje e para sempre.
3. Assuntos para a oração final: Agradecer pela Palavra de Deus que nos critica e corrige, pela promessa da salvação, pela paciência com que Deus aguenta nossa desobediência e incoerência. Interceder por aqueles que são injustiçados, pelos menores abandonados, pelos aposentados do INPS e pelas viúvas pensionistas do INPS, pelas vítimas da violência em todas as suas formas manifestas e ocultas. Interceder pela igreja para que os templos não sejam profanados pelos próprios cristãos (por nós mesmos!), e sim, sejam casas de oração e adoração. Interceder pela comunidade local para que seja uma bênção para o lugar ern que existe.
VI — Literatura
– BENTZEN, A. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo, 1968. V. 2.
– RUDOLPH, W. Jeremia. In: Handbuch zum Alten Testament. Tübingen, 1947. V. 12.
– SKINNER, J. Jeremias: profecia e religião. São Paulo, 1966.
– KLIEWER, G. U. Meditação sobre Jr 7.1-11. In: DREHER, C. & KIRST, N. (coord. Proclamar Libertação. São Leopoldo, 1982. V. 8.
– VOIGT, G. Meditação sobre Jr 7.1-11(12-15). In: Die bessere Gerechtigkeit. Göttingen, 1982.
– REVIS¬TA DO CEM, São Leopoldo, ano 6, n. l, 1983.
– CENTRO DE ELABO¬RAÇÃO DE MATERIAL DA IECLB. (ed.) Eu sou o Senhor teu Deus. São Leopoldo, (1983). (Auxílios Práticos, 2).