Prédica: Jeremias 8.4-7
Autor: Osmar Zizemer
Data Litúrgica: Penúltimo Domingo do Ano Eclesiástico
Data da Pregação: 19/11/1989
Proclamar Libertação – Volume: XIV
l — Delimitação do texto
O texto proposto para este penúltimo domingo do ano eclesiástico encerra Jr 8.4-7. Esta delimitação do texto, no entanto, não é pacífica na pesquisa. Isto já uma rápida olhada nas diversas traduções bíblicas em uso entre nós pode mostrar. Enquanto alguns pesquisadores delimitam a perícope conforme proposto (vv. 4-7), outros defendem a ideia de que também os vv. 8-9 ainda fazem parte desta unidade de texto. Ainda outros colocam o fim da perícope no v. 12, outros no v. 13, e ainda outros no v. 17. O motivo porque esta delimitação proposta é discutida tem a ver com o conteúdo destes versículos. Eles apenas apresentam uma constatação/acusação contra o povo; mas não apresentam nenhuma ameaça, não dizem que atitude Já vê tomará diante do fato constatado! E isto surpreende. Sente-se a falta de uma ameaça. Possivelmente é por isso que se procurem incluir ainda os vv. 8-9, no mínimo, nesta perícope.
Mas, se observarmos bem o texto, notaremos que os vv. 8-9 realmente devem ser vistos como uma nova unidade. Pois há neles uma troca de objeto em relação aos vv. 4-7: Enquanto nos vv. 4-7 o objeto é o povo de Jerusalém (v. 5), os vv. 8-9 passam a falar dos sábios (a serem melhor definidos).
Parece-nos que W. Rudolph, em seu comentário sobre Jeremias, tem razão ao afirmar, que em Jr 8.4-9.25 temos diante de nós um trecho de unidades menores, eventualmente tradicionadas isoladamente e juntadas pela mão do redator. Haveria uma certa continuidade temática nas sub-unidades 8.4-7; 8.13-17 e 9.1-8 = a falha total do povo no aspecto ético e religioso em relação a Javé. As inclusões de 8.8-9 (mais a inclusão posterior de Jr 8.10-12) e 8.18-23 nestas unidades com temática comum teriam acontecido por conexão de palavras-chave (=Stichwortanschluss!). O mesmo valeria para 9.9-21, que só se enten¬dem a partir de Jr 8.9. A conexão de palavras-chave seria: v. 7 = Direito de Javé; v.8 = Lei de Javé; v. 9 = Palavra de Javé.
Resumindo, pode-se dizer: A nível de autor destes ditos proféticos, Jr 8.4-7 e 8.8-9 formam unidades separadas, que somente foram ligadas uma à outra a nível de redação. Por isto podemos aceitar a delimitação da perícope conforme proposta: Jr 8.4-7.
II — Observações exegéticas
V. 4: Nosso texto inicia com a fórmula introdutória típica do dito profético: Assim diz Javé. O que segue assim está caracterizado como palavra de Javé, que o profeta se encarrega de transmitir. Porém o v. 7b deixa claro que se trata de uma palavra do próprio profeta. Também o v. 6 parece ser mais adequado como palavra do profeta do que como palavra de Javé. A. Weiser, em seu comentário ao livro de Jeremias, diz que em nossa perícope provavelmente se trata de uma espécie de transição daquele que coletou essas unidades menores, com a tendência de deixar parecerem também as palavras do profeta como palavras de Javé (conf. A. Weiser, Jeremias, p. 71).
Jeremias inicia com uma palavra figurada dupla, que faz constatações óbvias, normais na vida diária: Quando se cai, não se torna a levantar novamente? E quando alguém se desvia do caminho, não volta ele atrás? (Aqui o profeta faz um jogo de palavras com o duplo sentido do verbo sub, no sentido de desviar-se e de voltar atrás, dar meia volta). A resposta que o autor espera a estas perguntas retóricas é: Naturalmente que sim!
V. 5: Após haver conquistado desta forma a anuência íntima de seus ouvintes (leitores), o profeta lança a sua acusação em forma de perguntam Por que então é rebelde este povo, e persiste na rebeldia Jerusalém? Eles persistem no logro (tãrmit = logro, engano no sentido religioso, quando o povo passa a esperar socorro de falsos deuses — cf. O. Bruckmann, in: Herr tue meine Lippen auf, vol. V. Rudolph, Jeremia, p. 61 entre outros), e se negam a voltar atrás (súb = voltar atrás, arrepender-se, converter-se). O profeta constata que este povo está desviado de Javé, e, o que é pior: persiste cabeçudamente no seu descaminho, na sua infidelidade a seu Deus! Ele se nega a voltar novamente para Javé (sub). E isto é, em última instância, incompreensível para Jeremias! O que é natural na vida diária (se. quem cai, torna a levantar; quem se desvia do caminho, volta atrás!) não vale para este povo, para Jerusalém. Ele se nega a voltar-se para Javé. Por isto o profeta levanta a forte pergunta: Por quê? (maddüe).
V. 6: O profeta foi lá, para o meio do povo, e ouviu com muita atenção, na esperança de ouvir um sinal de arrependimento. E o que ele ouviu? eles falam o 'não-correto' , a inverdade (cf. 2 Rs 7.9; Jr 23.10). Não há nenhum sinal de arrependimento! Ninguém se assusta com a sua maldade, no sentido de parar e refletir dizendo para si mesmo: O que foi que eu fiz?! Eles todos estão desviados, afastaram-se de Javé (sâb = perf. de süb, no sentido de desviar-se) em sua corrida, como um cavalo corre desenfreadamente na batalha (cf. Jó 39.21ss; Jr 2.23). Com esta figura da corrida do cavalo desenfrenado na batalha, o profeta acentua, que não há jeito de o povo parar nesta corrida e voltar atrás no caminho que erradamente está seguindo. Estando uma vez no caminho errado, desviado, que se afasta de Javé, parece que só há uma alternativa: continuará neste caminho de afastamento de Javé! Jeremias ressalta através desta comparação do seu povo com a atitude do fogoso cavalo de batalha, o poder demoníaco, diabólico do pecado. Quando o povo uma vez se encontra no caminho de afastar-se de Deus, ele passa a ser cada vez mais dominado por este caminho, e se afasta — e parece que tem de afastar-se — cada vez mais, segundo uma força supra-individual do mal. É como um cavalo fogoso, que na batalha corre em louca disparada rumo ao conflito, ao confronto, ao perigo, sem conseguir deter-se!
V. 7: O profeta continua em sua comparação com fenómenos da natureza. Ele compara o proceder de seu povo com o proceder de aves migratórias: A cegonha no céu sabe os seus tempos prefixados; a pomba-rola, a andorinha e o sabiá observam o seu tempo de migração. — Aqui é importante observar, que aos olhos do homem da antiguidade neste proceder das aves migratórias não se manifesta em primeira linha o instinto, ou a lei da natureza. Para ele no procedimento das aves migratórias se cumpre a misteriosa e maravilhosa ordenação de Deus. De modo misterioso elas estão se submetendo à vontade de Deus, ao se submeterem aos ciclos migratórios.
Em contraposição a estes animais, que inconscientemente se submetem à vontade de Javé e a cumprem, o meu povo (ãmï) não conhece a ordem, a decisão legal, o direito de Javé (iãdâ mispãt Jahvé). Israel, que sabe do míSpât de Javé através do pacto do Sinai (cf. A. Weiser, Jeremia , p. 71), que experimentou o agir salvífico de seu Deus através de toda a sua história (cf. Dt 6.20ss), sim, que deve a sua própria existência como povo a este Deus, não (re)conhece o seu mispãt. E isto significa: Mesmo sabendo deste direito de Javé, deste mispãt, o povo de Israel não o reconhece, não se submete a este direito de seu Deus. Israel permanece rebelde, está afastado de seu Deus, e se afasta cada vez mais dele. Isto é irracional, anti-natural, sim, monstruoso e completamente incompreensível. Por isto o grande porque (mad — düe— v. 5) de Jeremias. E esta não é uma pergunta de um observador distante, neutro, mas sim do profeta existentencial-mente engajado, atingido e abalado, que sofre com esta constatação. Sim, por detrás desta pergunta em última instância está o próprio Deus, com seu coração cheio de amor para com o seu povo. Deus este que igualmente sofre com este proceder de Israel, este povo escolhido.
III — Datação do texto
O texto desta perícope não nos dá indícios precisos para uma datação. E também o seu contexto não nos ajuda muito. Em que situação histórica de Israel teria o profeta proferido este dito? Alguns pesquisadores afirmam que nosso texto apresenta uma certa relação com ideias desenvolvidas no capítulo 7 de Jeremias sobre o culto da aliança (=Bundeskult). E isto falaria antes em favor de uma datação de nosso texto no período do reinado de Jeoaquim (608/07 a 598/97 a. C.) — de quem Jeremias foi um crítico ferrenho — do que em favor de uma datação no início da atividade de Jeremias na época de Josias (639/38 a 609/08 a. C.) (cf. A. Weiser, Jeremia, p. 71, mas também W. Rudolph, Jeremia, p. 61, que também deixa aberta a possibilidade de datar esta perícope no período de Josias).
IV — Meditação do texto
O povo está afastado de Deus, e se nega a voltar-se ao caminho de Deus. Ele nem sequer está disposto a dar uma parada e ;i refletir sobre o seu procedimento erróneo até aqui. Pelo contrário, continua em seu caminho para longe de Deus, como um fogoso cavalo desenfrea¬damente corre no campo da batalha!
A questão central deste texto é a questão da fé. Trata-se da questão de reconhecer o mïspãt de Javé, do direito e da reivindicação que Deus levanta em relação ao seu povo. E reconhecer este direito de Deus não é um ato neutro, cognitivo apenas, intelectual. Ele implica em assumi-lo existencialmente e em submeter-se aos seus preceitos. Trata-se, portanto, da confiança e obediência devidas a Deus, do reconhecimento do senhorio de Deus. E este ato fundamental de fé vai se mostrar na prática do dia-a-dia.
Nosso texto não nos diz concretamente, em que consiste a rebeldia de Israel em relação a Javé, que o profeta constata, nem como se manifesta a não-disposição de arrepender-se e voltar-se para Deus. Jeremias não nos informa em que consiste este correr desenfreado, rumo ao afastamento cada vez maior de Deus. A partir daí torna-se difícil, sim, impossível partir na prédica de parelelismos entre o que acontecia então no povo de Israel no tempo do profeta e o que acontece hoje. Não podemos pois estabelecer este paralelo direto!
Não obstante, precisamos nos fazer a pergunta: Onde entre nós se mostra mais forte o não-reconhecimento do senhorio de Deus?
Penso que a partir da revelação definitiva da vontade de Deus em seu Filho Jesus Cristo, podemos dizer de modo muito geral: Tudo o que impede ou não promove vida plena, digna, em abundância é sinal do não-reconhecimento do senhorio de Deus! E aí cada qual em cada lugar poderá encontrar com facilidade exemplos: desde problemas com a ecologia, problemas sociais dos mais gritantes, como o problema dos sem-terra, dos sem-teto, do menor de rua, do idoso marginalizado, etc. Os exemplos concretos são muitos no continente, no país, na cidade, na comunidade, no lar. . . Cognitivamente até podemos reconhecer estes problemas prementes, podemos encontrar grupos que reconhecem que esta prática de vida, que produz tais problemas, convive com eles e os agrava, desconsidera o senhorio de Deus e a sua vontade. Mas, daí a dar meia-volta, voltar novamente nossa prática sob o senhorio de Deus, parece um passo quase impossível. Por quê? Parece que estamos presos pelas rédeas deste pecado, e continuaremos, impo-tentes, a correr, como cavalos de batalha, rumo a. . . Rumo a quê? Rumo ao abismo? À catástrofe universal ecológica e/ou social? Parece que não estamos diante de um problema voluntaíivo, nem individual, nem coletivo. Parece que há um poder supra-pessoal que nos cabresteia adiante neste caminho de distanciamento de Deus em que nos encontramos (cf. Rm 7.15-25a).
O que fazer? Qual é a nossa salvação? Em todo o caso não a podemos alcançar com nossos próprios meios! Aqui somente a graça e o amor do Pai, manifestos em Cristo e sua cruz por nós podem ser apontados. O reconhecimento do sola gratia , que leva ao arrependimento sincero, com a confissão de pecados concretos e à oração por forças e inspiração do Espírito Santo podem nos levar ao ensaio da produção de pequenos frutos do arrependimento, e de uma vida alternativa sob o senhorio de nosso Deus.
V — Passos para a pregação
1. Detectar sinais do não-reconhecimento do senhorio de Deus — começando pela própria comunidade, e ampliando os círculos passo a passo para a cidade, o país, o subcontinente, o mundo. . . (temas possíveis: menores abandonados; sem-terra; sem-teto; aidéticos; poluição; má situação do ensino; má distribuição de renda. . .);
2. Os problemas estão claros. Reconhecemos que eles são expressão do não-reconhecimento do senhorio de Deus? E continuamos no mesmo caminho. Por quê?
3. Leitura de Jr 8.4-7 com rápido comentário.
4. Deus sofre com a nossa negativa (e impossibilidade) de arrependimento. E nós. . . corremos rumo a. . .
5. Eventual leitura ou referência a Rm 7.15-25a.
6. Salvação? Qual é a saída? Sola gratia através do feito salvífico de Deus na cruz de Cristo por seus filhos.
7. Consequências: Arrependimento sincero — confissão de pecados concretos — pedido de forças e auxílio ao Espírito Santo para a produção de frutos do arrependimento.
VI – Bibliografia
– BREIT, H. Jr 8.4-7, in: Neue Calver Predighthilfen, Stuttgart 1983, V. 53, pp. 238-246.
– BRÜCKMANN, O. Jr 8.4-9, in: Herr. tue meine Lippen auf, 2a. ed. reescrita. Wuppertal-Barmen, 1961. V. 5, pp. 161-167.
– HOMBURG, C. Introdução ao Antigo Testamento S. Leopoldo, 1975.
– KROEKER, J. Jeremia. 3°. ed., Giessen-Basel, 1972.
– METZGER, M. História de Israel, S. Leopoldo, 1972.
-RUDOLPH, W. Jeremia, HAT 12, 3': ed corrigida, Tübingen, 1968.
– RUPRECHT, W. Jr 8.4-9, in: Calwer Predigthilfen, Stuttgart, 1962 V. I, série m, pp. 245-256.
– WEISER, A. Das Buch Jeremia, ATD 20, 5: ed. revisada, Göttingen, 1966.