Prédica: João 5.1-16
Autor: Heinz Ehlert
Data Litúrgica: 19º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 01/10/1989
Proclamar Libertação – Volume: XIV
l — Considerações exegéticas
O texto, no trecho indicado, contém a narração de um milagre e a consequência que trouxe o fato de o mesmo ter-se realizado num sábado: agravamento da relação entre os judeus e Jesus. Podem-se distinguir, portanto, duas partes: vv. l a 9a, a cura, e vv.9b-16 (18), a disputa com os judeus. O texto grego (de Nestle) não inclui os vv. 3b-4, pois não se encontram nos manuscritos mais antigos. Provavelmente são comentário explicativo, adicionado mais tarde. No texto de Almeida, o v. 4 está entre colchetes por isso. — O nome Betesda está assegurado arqueologicamente, embora apareçam também as formas Betsaida e Betzata. A interpretação dada é casa da graça ou casa da misericórdia.
V. 1: Depois disto ou depois destas coisas, no início do v. l, não representa uma indicação cronológica como se os acontecimentos aqui narrados sucedessem imediatamente após os contado antes. E, antes de tudo, um recurso redacional do autor para fazer uma ligação com o anterior.
Uma festa dos judeus é a motivação para Jesus pôr-se a caminho. De que festa se trata, não é especificado; alguns supõem que seja a da Páscoa, outros, a dos Tabernáculos. Aí Jerusalém, com o seu templo, atrai os fiéis. Jesus subiu a Jerusalém. É indício de que usou o caminho mais longo da Galiléia, através do vale do rio Jordão, passando por Jericó, e subindo realmente cerca de 1.000 m, pela estratégica (estrada) dos romanos que passa por Betânia e o Monte das Oliveiras para chegar a Jerusalém. O caminho mais curto pela Samaria era evitado pelos judeus, sempre que possível, devido à hostilidade dos samaritanos. O evangelista não tem interesse na festa como tal (embora João mencione as festas repetidas vezes; cf. 2.13; 5.1; 6.4,7). O interesse é outro: o encontro de Jesus com o doente num sábado.
V. 2: O tanque mencionado tem duas repartições. Ao redor dele há 4 pavilhões de colunas. Um quinto separava os dois tanques, que tinham comunicação entre si. Justamente neste quinto se encontram toda sorte de enfermos, esperando curar-se pelas águas que se agitavam periodicamente. A agitação era ocasionada quando o tanque do norte despejava as águas no outro, ao sul. Alguns acham que havia uma comunicação subterrânea com a fonte de Siloé, da qual se sabe que era intermitente.
V. 3: Deviam ser muitos os que procuravam cura pelas águas e, além disso, acometidos de diferentes males ou deficiências.
V. 5: Jesus vai lá; não é dito por quê. O que procurava? Foi ao encontro dos fracos? Em todo caso, encontra entre tantos um homem que já sofria há 38 anos. Este pormenor é, provavelmente, citado para sublinhar a grandeza do milagre. O sofrimento prolongado se torna mais desesperador porque acentua que não há ninguém para colocar o doente na água quando a mesma se move. O autor não explica como o doente chegou até lá, se alguém o trouxe — havia, então, alguém? Além disso, marca o egoísmo das pessoas, ocupadas consigo ou com os seus. Onde fica a solidariedade entre os que sofrem?
V 6: Jesus fala com ele — primeira iniciativa para tirá-lo da solidão. Quer despertá-lo: Queres ser curado?
V. 7: Ele responde que não há perspectiva. Não percebe que ali está alguém que lhe oferece ajuda. Seria alguém que apenas está curioso ou deseja entabular uma conversa fiada? Desânimo transparece nas palavras dele. Não tem vez!
V. 8: Segue a palavra de ordem, cheia de autoridade, deste desconhecido (e que continua desconhecido). Agora é confiar e obedecer. Levanta-te. . .
V.9: Ele obedece e consegue. O milagre aconteceu. Nada de águas milagrosas. A palavra (e o poder) de Jesus bastou. Anda pra lá e pra cá. É uma demonstração para ele mesmo e para Jesus. Funcionou, continua funcionando. Pode seguir.
No final, uma observação como que marginal. Mas não é nada marginal. Introduz o trecho seguinte. A disputa sobre o sábado, que resulta em questionamento da autoridade de Deus.
V. 10: Um homem entre os judeus carrega uma coisa (leito-colchonete) num sábado. Isso era proibido. É recriminado. Mal se libertou dá deficiência física, é ameaçado devido à transgressão das prescrições sacrossantas. Os vigias estão aí. Além disto, acontece nas imediações do santuário. Não pode ser tolerado!
Vv. 11-13: Um vaivém de perguntas e respostas. O curado trata de se pôr a salvo. Não é dele a responsabilidade. Alguém mais poderoso lhe deu ordens. Mas o poder e benefício nem entram em discussão. Apenas a transgressão da lei. Parece um inquérito. Jesus já está longe. No templo, como se saberá logo mais. Será que se pôs à procura dele, os judeus ao seu encalço?
V. 14: Na verdade, é Jesus que o encontra e reconhece e o aborda. Dá-lhe uma recomendação adicional: Não peques mais (cf. 8.11). A ajuda de Jesus compromete. O pecado perdoado, a vida restaurada é compromisso com a vontade de Deus. Ser paralítico, deficiente não é o pior. Então o que é? Não se diz. Mas tem a ver com separação de Deus.
V. 15-16: Até parece denúncia. O homem conta que foi Jesus que lhe deu a ordem que tanta indignação causou e tanta recriminação lhe trouxe. Agora acontece o confronto entre Jesus e os judeus, representantes dos oponentes e adversários de Jesus. A observação do versículo seguinte e a referência ao Pai são sentidos como o cúmulo. O evangelista explica por que intentavam matá-lo (v. 18).
II – Meditação
Vários aspectos do relato de cura em pauta merecem uma reflexão. O problema da deficiência física é colocado. Tentativas humanas válidas para superá-las outrora e agora podem ser constatadas. O ideal é ficar restaurado, normal. Mas tantas possibilidades existem de levar uma vida normal, apesar das deficiências! A sociedade é que dificulta. A sociedade não dá vez. Com sua ida à casa da misericórdia Jesus põe em evidência não só a existência de deficiências e deficientes físicos, mas a deficiência de amor e solidariedade. Será que não nos quer abrir os olhos para vermos o próximo em sua solidão? Quanta solidão não existe hoje devido à sociedade de consumo, ao estilo de vida que levamos. Onde estão os deficientes e os velhos? Há lugar para eles junto a seus filhos e familiares? Será que as nossas casas de misericórdia são também depósitos para infelizes deficientes que, a rigor, não têm ninguém que se interesse por eles de verdade?
Nada indica, neste trecho, que a gente deve conformar-se com a situação — qualquer que seja a deficiência em nosso meio, nem com a própria, nem com a dos outros em nosso derredor. Pois isso não é conforme a vontade de Deus. É preciso tomar e despertar iniciativa para agir positivamente em relação a elas. Na verdade, mais que abrir os olhos para as deficiências, Jesus os abre para os deficientes. São pessoas. Elas sentem e anseiam. Têm esperanças e vivem decepções, iguais a nós, os normais. As atitudes egoístas, em vez de animar e encorajar, desanimam mais ainda.
A primeira atitude de Jesus foi a comunicação. Não foi de conversa fiada para se entreter e/ou divertir um pouquinho. Foi pela importância que, para Deus, tem a pessoa humana, cada ser humano. Não interessa o grau de deficiência, subdesenvolvimento ou culpabilidade que tenha. Podíamos também falar de depravação ou simplesmente do pecado. Sem dúvida, o homem do tanque de Betesta foi um pecador. Nada sabemos de seus antecedentes, sabemos somente que sofre 38 anos e que não tem ninguém para assisti-lo, pelo menos durante as longas e frustrantes horas que passa naquela casa de misericórdia. Mas é um ser humano, criado à imagem de Deus. Jesus faz vê-lo, como o Pai o vê. Ele fala e age em nome do Pai, de quem leva o nome toda a família no céu e na terra.
Mas a palavra de Jesus não só desperta. Ela é poder. Poder de Deus para libertar e salvar. Mais do que simples comunicação, a palavra de Jesus serve para despertar do desânimo e da letargia em que uma pessoa ou todo um setor da sociedade se possa encontrar. Não temos, às vezes, também a impressão de que em nossas favelas ou bairros pobres, ou picadas de agricultores empobrecidos e trabalhadores rurais as pessoas se entregam à sorte? Não que não tivessem vontade de sair do marasmo físico e psíquico em que se encontram. Mas são enganados por aproveitadores, tanto no sentido econômico como espiritual. Em casos de doença, correm aos benzedores, aos terreiros, às sessões espíritas ou, ainda, às capelas da bênção. Tudo, porque não está ao seu alcance o que precisam. Haveria necessidade de um verdadeiro despertar! O Evangelho de Jesus é mais do que denúncia. É despertamento e oferta de ajuda ao mesmo tempo. Despertar tanto para a realidade da miséria, quer material quer espiritual, como para a realidade da nova vida em Cristo que Deus quer para todos. Queres ser curado? Não basta saber que se está mal, é preciso ter vontade mesmo de ser curado, de sair da situação. Olhar mais longe do que só para o imediato e ser crítico para com os meios que se oferecem. Devemos aprender isto como grupo, comunidade e povo. Se o Evangelho de Cristo é poder de Deus para a salvação, então há saída para os males deste mundo.
À palavra do despertar segue a palavra do poder e ordem: Levanta-te! É preciso confiar na Palavra de Deus. Levá-la a sério. Serve também para as situações do nosso dia-a-dia. Obedecer é realmente ouvir. Ouvir para guardar. Aos que o fazem, Jesus chamou de bem-aventurados. O que Jesus dá é mais do que uma cura casual. Ele dá vida nova. Reconcilia com Deus, estabelece comunhão. Põe em contato com a fonte da vida, para que o reconciliado não caia no mesmo pecado, na mesma miséria. Não pegues mais! A nova cidadania no Reino de Deus exige conduta comprometida com Deus, o Pai é parceiro da nova aliança. Mas exige-se no meio do povo. No meio da comunidade. Isto significa também que as pessoas que aceitaram o Evangelho, tenham oportunidade de viver do e no Evangelho. Quais são as oportunidades que a nossa Igreja oferece às pessoas para crescerem e se auxiliarem mutuamente para que aconteça: Não peques mais?
A atitude, palavra e ajuda de Jesus inspiraram a diaconia da Igreja de todos os tempos. Com justa razão. E podem e devem até hoje. Não é por acaso que nos campos missionários foram implantados serviços de saúde, hospitais e outros tipos de serviço de ajuda e orientação na vida; verdadeiras casas de misericórdia. Se o Estado pretende assumir este serviço, devemos estar atentos e pressionar por meios políticos, para que o faça e o faça de maneira eficiente. Mas seria o bastante? Sempre haverá campo para a Igreja exercer o amor fraternal. Mas, ficando ainda no campo da saúde: Quando hoje tanta gente procura sempre mais — e muitas vezes em vão — psicólogos e psiquiatras, principalmente nas cidades, não se mostra aí um grande déficit? Será que não seria possível uma colaboração mais consciente (diálogo) e estreita entre médicos e pastores? Estamos nós, os pastores, preparados e apare¬lhados para prestar real ajuda? Ajuda que vem de Cristo, o grande médico para corpo e alma?
A afirmação de Jesus de ser o Filho de Deus, isto é, o Cristo, suscita oposição também hoje. Aberta ou velada. Pois limita e define o exercício do poder em qualquer âmbito. Quem ama e teme a Deus sobre tudo não pode abusar do poder, seja na família, seja na comunidade, seja na Igreja, seja no governo. Então acontecem os desmandos. Então se recorre à violência, como foi no caso dos judeus. Eles aqui representam os infelizes que desejam ser religiosos, sem se submeter totalmente a Deus, também quando a sua ação não se enquadra no sistema deles. É um alerta para a Igreja de todos os tempos, para não abafar o Espírito Santo. Mas colocar-se à disposição dele, para ser verdadeira testemunha.
III — Escopo homilético
A visita de Jesus a Betesda é uma demonstração da vontade de Deus de curar todo tipo de deficiência e miséria. Envolve-nos, nesta ação, como pacientes e agentes. Vale a pena agir e testemunhar a despeito dos que se opõem à missão de Deus.
IV – Indicações para a prédica
Valendo-se dos elementos da exegese e meditação aqui oferecidas, podemos formular a prédica. Importante é que se tenha presente a situação local e nacional do pregador e da sua comunidade. Podemos partir de alguma realidade conhecida, p. ex., um caso de deficiência, causada, talvez, por acidente. Uma experiência de atendimento precário pelos órgãos de saúde pública ou um exemplo flagrante de exploração da credulidade (pessoa explorada por charlatões religiosos). Chegar, então, ao tema da prédica: Jesus age em Betesda. Descrever o quadro de Betesda de então, lá perto do templo de Jerusalém, referindo-se, então, à Betesda de hoje, isto é, fazer comparação entre o coxo da época e os diferentes coxos hoje. Não esquecer de destacar o amor próprio, falta de consideração e falta de solidariedade entre os que estão sofrendo.
A seguir descrever, de maneira viva, o que Jesus oferece: sua atenção, sua palavra de despertamento, de poder e de desafio. Partindo daí, perguntar pela missão que disto resulta para nós. Procurar exemplificar com algumas dicas concretas: a) O que a gente pode fazer, b) O que a comunidade pode fazer, lembrando, inclusive, exemplos da história da Igreja e de sua missão.
Terminar alertando para a eventual oposição de poderosos, mas também encorajando para recorrer ao Pai, fortalecendo-se na comunhão dos santos para o trabalho que Deus tem para o seu povo (cf. v. 18). Voigt oferece, em seu auxílio homilético, a seguinte proposta para roteiro da prédica: Em Jesus Deus age — ele cura (1), liberta (2), compromete (3).
V – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, há muita escuridão na terra. Quando a tua luz entra, enxergamos a nossa culpa e pecado e a dos outros também. Estamos muito afastados de ti. Envolvidos com nossa sorte, emaranhados nas teias do maligno. Liberta-nos de nós mesmos e do poder do mal! Perdoa-nos por Jesus Cristo! Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Grande é teu poder, ó Pai. Fala a nós por tua palavra e por teu Espírito. Renova-nos por Jesus Cristo, para podermos participar das tuas obras, também hoje. Firma a nossa amizade de fé com os irmãos aqui presentes. Amém!
3. Elementos para a oração final: Interceder por casos específicos de enfermos na comunidade (colhidos em culto). Agradecer por ajuda recebida. Orar pelas obras diaconais da comunidade e Igreja e os seus obreiros: creches, lares, hospitais. . . Orar pela Igreja e pelo governo para que sejam servidores e não dominadores. Por associações de bairros e cooperativas. Por uma renovação política. Pela concretização e por sinais do Reino, já agora.
VI – Bibliografia
– BÜCHSEL, F. Das Evangelium nach Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch. 5. ed. Gottingen, 1949.
– BÜLCK, W. Das Johannes-Evangelium und die Gegenwart. 2. ed. Hamburg, 1948.
– SCHNEIDER, J. Das Evangelium nach Johannes. In: Theologischer Hamdkommentar zum Neuen Testament. 2. ed. Berlin, 1976.
– VOIGT, G. Meditação sobre Jo 5.1-16. In: Die bessere Gerechtígkeit. Göttingen, 1982.