Prédica: Lucas 17.5-6
Autor: Martin Volkmann
Data Litúrgica: 15º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 03/09/1989
Proclamar Libertação – Volume: XIV
l – O texto
A palavra acerca da fé que desloca uma árvore, respectivamente um monte, nos é transmitida quatro vezes nos evangelhos sinóticos: Mt 17.20; 21.21; Mc 11.23 e Lc 17.6. Além disso ela é conhecida pelo apóstolo Paulo (l Co 13.2), o que atesta a importância deste dito para a Comunidade Primitiva. Outrossim, é interessante observar que, nestes quatro momentos nos sinóticos, ela aparece em contextos distintos: em Mc 11.23/Mt 21.21, em conexão com a figueira infrutífera; em Mt 17.20, em conexão com a cura de um jovem epiléptico (cena que Mc e Lc também apresentam, mas sem o referido dito). Já em Lc 17, ela aparece desvinculada de uma cena específica, dentro de uma coleção de orientações de Jesus a seus discípulos. O texto apresenta traços característicos da autoria de Lc: a menção dos apóstolos (cf. 6.13; 9.10; 22,14; 24.10 e, em especial, em At; em Mt 17.19 – a passagem paralela — são mencionados os doze); o pedido dos apóstolos e a resposta do kyrios (cf. Lc 11.1); o verbo prostithemi (aumentar) é expressão preferencial de Lc (cf. 3.20; 12.25, 31; 19.11; 20.11, 12; At 2.41, 47; 5.14; 11.24; 13.36). Este levantamento dos diferentes contextos em que aparece este dito mostra que o mesmo não está vinculado a uma determinada cena que determina decisivamente o seu sentido; é uma palavra compreensível a partir de si mesma, sendo, pois, justificado tomar estes dois versículos como texto de pregação.
Mt e Mc, nas respectivas passagens, falam em deslocar um monte enquanto que, em nossa passagem, se fala em uma amoreira. Em Mt 21.21, por sua vez, o dito vem em conexão com uma árvore, a figueira. Ambas as imagens, do monte e da árvore, já aparecem no judaísmo como expressão proverbial para tornar possível o que parece impossível (Strack/Billerbeck I, 759). No entanto, no judaísmo o dito nunca aparece, como aqui, como promessa para aquele que tem fé, mas sempre como uma caraterística do mestre, entendido da Lei, que tinha a capacidade de discutir com perspicácia, respectivamente para mostrar, via milagre, a correção de sua opinião. Já Bar Coqueba estabelecera como critério para avaliar a capacidade de seus guerreiros, que arrancassem um cedro montados num cavalo (Strack/Billerbeck I, 759; II, 234). Neste sentido, o dito de Jesus não tem paralelo direto em seu ambiente, porque aqui a promessa é vinculada à f é e válida para todo o crente, não apenas para o especialista.
A versão de Lc, que usa a figura da amoreira, tem uma ênfase especial, pois esta árvore é conhecida como tendo raízes especialmente profundas e se supunha que podia existir durante 600 anos (Strack/ Billerbeck II, 234). Já o grão de mostarda, que neste dito da fé só aparece aqui e em Mt 17.20 e que é especialmente minúsculo (Mc 4.31), contrasta com a profundidade das raízes e consequente firmeza da árvore. O contraste dos dois elementos, pequenez da semente — firmeza e profundidade da amoreira, destaca ainda mais a contraposição entre a pequenez e insignificância da fé e o resultado enorme de sua ação.
II — Dialogando com o texto
O texto gira em torno da fé. Este tema perpassa todo o NT e caracteriza a relação fundamental entre Jesus e as pessoas com ele confrontadas: Não encontrei tamanha fé em Israel (Mt 8.10); A tua fé te salvou (Mt 9.22; Mc 10.52; Lc 7.50; 8.48; 17.19); Eu creio. Ajuda-me na minha falta de fé! (Mc 9.24); Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo (Jo 11.27); Não me envergonho do evangelho, porque ele é a força de Deus para a salvação de todo aquele que crê (Rm 1.16).
1. Em nossa realidade somos confrontados com uma situação contraditória. De um lado, o avanço científico, as grandes realizações do homem, o domínio sobre quase tudo o que existe no mundo tornam a fé algo supérfluo. Tudo isso prescinde da fé. Por isso, assim se pensa, a fé já era, porque agora o homem tem o mundo em suas mãos. Mas para dominar o computador e usar os meios de comunicação, de fato não se precisa de fé. Isso tudo é objeto de pesquisa, de ciência — não de fé. Por outro lado — talvez por causa desta confusão — há, no nosso ambiente, uma intensificação da religiosidade. Ou melhor, por estas regiões do hemisfério, religião nunca deixou de ter um lugar de destaque na vida das pessoas. Justamente nestes dias em que formulo estas reflexões, são veiculadas notícias sobre acontecimentos estranhos no interior do RS: Na cidade de Santa Rosa, uma jovem movimenta objetos sem tocá-los e até contra a sua vontade (VEJA, n° 17, de 27 de abril) e em Santa Cruz do Sul um jovem diz ter visões de Nossa Senhora. Tudo isso leva pessoas a se sentirem desafiadas em sua fé.
Diante disso tudo é imprescindível refletir com a comunidade sobre a fé. Porque a fé é algo central na vida de toda pessoa. Sem fé é impossível viver. Mesmo num mundo tecnizado, onde a fé parece ter-se tornado supérflua, ela está bem presente e se manifesta de novas formas. Por isso se acentua ainda mais a necessidade de reflexão sobre a fé, porque, se a fé é tão central na vida de uma pessoa e se tantas coisas desafiam a crendice das pessoas, então tanto mais urgente se torna saber em que se crê. Porque religião sempre foi meio muito útil para a manipulação e dominação na mão dos poderosos.
Se do ponto de vista humano em geral a reflexão sobre a fé é tão importante, tanto mais ela o é para o cristão. Porque ser cristão é crer. Logo, o texto é um desafio para escutar o que Jesus tem a dizer sobre a nossa fé. O texto justamente inicia com um pedido dos apóstolos em relação à sua fé.
2. A colocação de Jesus acerca da fé nasce do pedido: Aumenta-nos a fé. Fé tem tamanho? A fé é mensurável? No NT há diversas expressões que parecem responder afirmativamente a estas perguntas. A fé pode ser pequena (Mt 8.26; 14.31; 16.8) ou grande (15.28). Em Mt 17.20 a palavra sobre a fé que remove montes é em resposta à pequenez de fé (oligopistía) dos discípulos. Em Rm 12.3 Paulo adverte a comunidade para que cada um tenha um conceito conveniente de si mesmo de acordo com a medida da fé que Deus dispensou a cada um. E em 2 Co 10.15 Paulo fala em progressos da fé. E em l Ts 3.10 ele diz que deseja rever a comunidade, a fim de completarmos o que ainda falta à vossa fé.
Sem dúvida, considerando especialmente as colocações de Paulo, pode-se falar em níveis diversos de conhecimento acerca de conteúdos da fé. Mas a fé como tal não é mesurável. Não é a partir de um determinado tamanho — por exemplo, quando não se tem mais dúvidas; quando se aceita como verdadeiras todas as afirmações de Credo e da Bíblia — que a fé atingiu o seu nível exato e é aceita como válida. O pedido dos apóstolos reflete, neste sentido, a situação da comunidade que está sendo questionada acerca de sua fé e que parece ver a solução do problema no tamanho de sua fé. Por isso: Aumenta-nos a fé.
A resposta de Jesus é antes de mais nada uma correção do pedido: Já a menor fé tem a maior promessa! Em jogo não está o tamanho da fé, mas a fé em si. O que importa não é a medida da fé, é o tipo de fé. Porque o pedido por uma fé grande dá a entender que esta fé muito pode, é capaz de enfrentar todas as dificuldades. Mas aí justamente está o perigo: Esta fé corre o risco da auto-suficiência, da confiança em si mesma. E, com isso, deixaria de ser fé, isto é, um agarrar-se em total confiança ao Doador da fé (Mt 14.30).
São os apóstolos que fazem o pedido a Jesus, isto é, pessoas que acompanham o Mestre, a comunidade que nele crê. Portanto, não é o descrente que pede por acréscimo na fé; é o próprio crente. E a resposta de Jesus coloca justamente este crente no seu devido lugar: sempre estamos diante do desafio fundamental se cremos ou não no Senhor. E a resposta de Jesus também estabelece o lugar onde tal fé recebe sua fonte decisiva: ela nasce da Palavra, do próprio Jesus. O pedido dos apóstolos, tão errado no seu propósito, recebe de Jesus a atenção. A fé nasce onde se escuta a voz do Senhor.
3. O exemplo de Jesus para caracterizar a fé correta — mesmo pequena produz grandes efeitos — corrige um mal-entendido muito co¬mum com relação à fé: quem crê se desliga do mundo. O crente não tem problemas porque os problemas que existem ao seu redor não o atingem. Na verdade, porém, o crente não é aquele que fica olhando para o céu, esquecendo-se dos problemas, conflitos, contradições, injus¬tiças ao seu redor, esperando, quem sabe, de Deus a solução de todos os problemas. A fé, mesmo a fé mais insignificante, é uma fé que transforma a realidade: ela arranca a árvore profundamente arraigada.
Permanece a diferença fundamental entre Deus, para quem nada é impossível (Lc 1.37; Mt 19.26), e o crente com sua fé do tamanho de um grão de mostarda. Não é ele que tudo pode de suas próprias forças. O homem só pode — e realmente pode! — transformar a realidade à base da fé, pequena, mas justamente por isso, decisiva, porque se baseia totalmente em Deus. Esta fé — tão pequena — é capaz de transformar a realidade; é capaz de realizar algo onde aparentemente não há saída. Esta fé — tão pequena, mas, justamente por isso, tão grande para realizar o impossível.
Onde dá para perceber isso? Na atuação do Centro de Acompanhamento ao Pequeno Agricultor (CAPA) e de todo movimento ecológico, com sua proposta de agricultura alternativa. No movimento popular, com sua proposta e seus exemplos de uma nova sociedade. No movimento dos sem-terra, na sua luta pelo chão para produzir e, assim, buscar novos modelos de produção e manutenção da vida. São os novos heróis da fé? Onde se pensa nesses termos, novamente estamos na ótica vesga da pergunta dos apóstolos. Não se trata de heróis, grandes homens. Trata-se de pessoas que têm a coragem da teimosia, da esperança de enfrentar as adversidades a partir de sua pequenez. Porque quem tem coragem de ser tão pequeno — a ponto de ser tão insignificante — tem a promessa de transformar a realidade, porque a sua força não está na sua grandeza, mas naquele que alimenta esta sua força: o Deus que dá e que nutre a fé.
Ill — Estímulos para continuar a reflexão
'Crede para que existais ousaríamos dizer. A fé é necessária não somente à inteligência, mas ao coroamento da plenitude humana. Em outros termos, é uma dimensão constitutiva do homem. Pela fé, o homem se distingue dos outros seres e também, por causa do caráter antropológico desta distinção, a fé é uma característica humana que une os homens ente si. (Raymond Panikkar.)
Para mim, crer é renunciar a uma salvação barata, reservada para cansados e medrosos, porque faz aderir a Deus, com sua demora, a desafiar o tempo e ocultando a face! Sim, crer é entregar-se ao Deus-da-História, sendo aquele que dos mortos ressuscitou um homem, executado: Jesus, e o fez Senhor. Crer é como agora se diz: 'participar', pensar a vida, planejar a ação, rever atitudes, comprometendo-se com os outros na mobilização de construir o mundo em desenvolvimento, segundo as dimensões da verdade e da justiça. (Cláudio van Baalen.)
Só vivendo plenamente a vida terrestre é que aprendemos a crer. Quando desistimos completamente de fazer algo importante de si mesmo. . . e tudo isso chamo viver no mundo, isto é, viver na plenitude das tarefas, dos problemas, dos sucessos e fracassos, das expe-riências e perplexidades, assim nos lançamos inteiramente nos braços de Deus, e não mais levamos tão a sério os nossos padecimentos, maslevamos a sério o sofrimento de Deus no mundo, e então vigiamos com Cristo em Getsêmani, e penso que isso é fé, isto é metanoia. Assim nos tornamos homens, cristãos. (Dietrich Bonhoeffer.)
IV — Encaminhando a pregação
A fé é um tema central do NT; por isso é importante escutar o que o Mestre tem a dizer acerca disso. A fé também é uma preocupação das pessoas hoje. Assim como os apóstolos pedem aumenta-nos a fé, os crentes, hoje, enfrentam dificuldades semelhantes: Qual é a f é correta? Quando se tem realmente fé? Quem crê pode ter dúvidas? Estas e outras perguntas, que você conhece de sua prática pastoral, servem como motivação para a reflexão sobre a fé. A seguir sugiro abordar o tema da fé que transforma realidades, seguindo os seguintes passos (veja a reflexão acima):
1) Sem fé é impossível viver — em quem crer? Onde está a fonte de nossa fé?
2) Fé grande — fé pequena: não é o tamanho que importa: é o tipo de fé.
3) Fé que nasce da Palavra do Senhor transforma realidades — na esfera pessoal e também na esfera comunitária, social.
V – Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Rm 1.16
2. Salmo: 55 ou 62
3. Leitura bíblica: Mc 9.14-27 11.1-3,5,8,11,23-29,39-40; 12.1-2.
ou Rm 3.21-28 ou Hb
4. Confissão de culpa: Senhor, quão facilmente nós usamos o teu nome! Muitas vezes nós o fazemos sem refletir e sem realmente querer dizer algo com isso. Nós nos chamamos de cristãos e, com isso, queremos expressar que somos teus. Mas, no dia-a-dia, muitas vezes somos mais nossos do que teus. Há momentos em que realmente queremos viver como os teus, mas a vergonha, o medo e a incerteza nos assaltam, e deixamos de aceitar a tua presença. E por não aceitar a tua presença para sermos livres, nós mesmos, na realidade, somos errantes, sem rumo. Senhor, faze-nos reconhecer que sem ti e sem tua orientação nada somos e nada podemos. Perdoa-nos que tantas vezes nos esquecemos disso. Por isso te suplicamos: Tem piedade de nós!
5. Oração de coleta: Senhor Jesus Cristo, como um viajante desorientado em seu rumo, nós necessitamos de tua orientação em nossa caminhada contigo. Por isso, como teus discípulos outrora te pediram que lhes ensinasses a orar e que lhes aumentasses a fé, nós nos achegamos a ti e te pedimos: orienta-nos em nossa fé! Fala a nós que nós queremos te ouvir! Dá-nos teu Santo Espírito para compreendermos e guardarmos tua orientação! Sob tua condução nossa caminhada seguirá o rumo correto. Amém!
6. Aspectos para a oração final: Agradecimento pelo momento de culto e orientação na fé (retomar algumas ideias da pregação). Intercessão por aqueles que sofrem em suas dúvidas de fé; que sofrem com perseguições por causa de sua fé; por coragem para o testemunho da fé. Pelos pais, padrinhos e professores na orientação na fé daqueles a eles confiados. Pela vivência da fé nas diversas Igrejas e pelo respeito mútuo entre os cristãos. Pela aproximação dos cristãos, para testemunho conjunto de sua fé.
VI – Bibliografia
Foram utilizados comentários e meditações de diversas coleções. Sugiro como literatura complementar sobre o tema:
– CINTRA, Frei R. Credo para amanhã. Petrópolis, 1970-72. V. 1-3.
– TILLICH, P. Dinâmica da fé. São Leopoldo. 1974.
– VVAA. Teimosia da Esperança. In: Tempo e Presença. Rio de Janeiro, 1987, V. 226.
– ZINK/RÖHRICHT. A fé dos cristãos. Sinodal.