Prédica: Lucas 22.31-34
Autor: Hermann L. Mühlhäusser
Data Litúrgica: Domingo Invocavit
Data da Pregação: 12/02/1989
Proclamar Libertação – Volume: XIV
l – Preliminares
O texto Lucas 22.31-34, previsto para o Domingo Invocavit, é uma conquista nova no quadro das perícopes. No livro de perícopes, editado em 1966, pelo menos, ainda não consta. Representa, portanto, certa dificuldade no que diz respeito aos recursos a comentários teológicos. Por outro lado, traz enriquecimento para o(a) pregador(a) e a comunidade. Ajuda a desviar a atenção de textos com alto teor satanológico que, no início da época da Paixão, deixam a gente bastante embaraçado. Permito-me fazer três colocações a este respeito e a recomendação de os(as) colegas se aprofundarem no assunto também.
1. Certo, nenhum dos sinóticos duvida da realidade e da influência maléfica de satanás. Só que isto não diz muita coisa. Deve ser compreendido a partir da concepção contemporânea. Fato é, e isto já pesa mais numa conclusão geral, que os três sinóticos não têm uma concepção uniforme. Antes, eles deixam transparecer certa perplexidade diante de situações contrárias à vontade de Deus no mundo dos homens, de maneira que satanás tem mais o papel dum código para denominar tudo o que é antidivino.
2. O próprio Jesus, por ocasião de suas curas, nunca se voltou contra satanás e jamais quis dirigir a atenção à figura de um suposto satanás. O perigo para o(a) homem(mulher) não vem de fora e, sim, de seu próprio interior, de onde sai o mal que contamina (Mc 7.15).
3. Também o uso do termo satanás em Lc 22.31 não elucida melhor o conceito que Jesus tem do adversário, pois não é palavra autêntica de Jesus, é tradição de Lucas. Além disso, razões linguísticas mostram que a expressão Satanás (vos) reclamou para (vos) peneirar não é a maneira de um judeu falar. De modo que dá para dizer que também para Lucas todo o mal vem do(a) próprio homem (mulher): do mau coração (Lc 6.45), do mau olhar (11.34), do mau pensar (19.22).
Só depois de desmascarado este satanás, que representa um desejável e bem-vindo bode expiatório para ó(a) homem(mulher), sou capaz de encarar e combater o satanás verdadeiramente perigoso, que anda por aí qual leão que ruge e tenta devorar a quem encontra e que tem nomes como: ambição e orgulho humanos, discriminação religiosa e ideológica, preconceitos intransigentes contra outras opiniões, hábitos, raças, classes e sexos, todas as formas de violência e de arbitrariedade. Aí sim se evidencia quem é satanás: é o monstro homem(mulher) que, revestido de poder e violência, judia e escraviza o(a) próprio(a) irmão(irmã). Andar despreocupado(a) quanto a este satanás pode trazer consequências mortais.
II – Contexto
O nosso texto está inserido no complexo maior da ceia de despedida e dos três sermões daí resultantes (Lc 22.24-38), em cujo conjunto representa a segunda parte. É provável que o v. 28 seja o ponto de referência para a nossa passagem, no sentido de Jesus querer alertar: Mesmo que os discípulos tenham permanecido comigo na minha tentação, o tempo da provação ainda não passou. Fiquem em estado de alerta, pois o Mestre está sendo contado entre os malfeitores; vem chegando a hora do homem e do poder das trevas, cujas consequências hão de sentir.
Dietrich Bonhoeffer, em seu livro Versuchung (Tentação), refere-se a esta passagem, dizendo: Já que satanás não conseguiu derrubar o Filho de Deus, passa a perseguir agora os seus discípulos. Nesta tentação, porém, trata-se das últimas convulsões daquela grande tentação, da qual Jesus sairá vitorioso, pois o poder, mesmo da tentação, está rompido, anulado. . . As tentações dos discípulos caíram sobre Jesus, e as tentações de Jesus vêm caindo sobre os discípulos. Contudo, é bom participar da tentação de Jesus, pois isto significa participar também de sua vitória, (p. 27.)
III – Texto
V. 31: Imagina-se satanás como no livro de Jó. Junto a Deus ele reclama o direito de provar os(as) discípulos(as). Para ilustrar esta provação, Lucas usa a imagem da peneira e o verbo peneirar, que é um termo do grego tardio, único no NT. Era costumeiro no judaísmo tardio usar o nome do parceiro de conversação de forma repetida: Simão, Simão. . ., o que, ao mesmo tempo, deixa supor uma relação especial e cordial com Jesus. Deduzir, porém, deste tratamento uma primazia tal que predestinasse a Pedro ser o representante direto de Cristo na Igreja e o iniciador do papado, significa simplesmente um exagero que não podemos acompanhar.
V. 32: Pois Simão Pedro, como qualquer outro(a) discípulo(a) de ontem ou de hoje, precisa ser carregado e guardado pela intercessão do próprio Cristo. Pai santo, guarda-os em meu nome. . . (João 17.11) Fidelidade confessional não é mérito do(a) discípulo(a), mas, sim, presente e graça do Mestre. Sem a intercessão de Jesus, iniciador e consumador de nossa fé, esta está sujeita a falir. — Também não é assim que fé fosse um estado de graça que, um vez adquirido, não se perde mais. É, antes, um morrer e ressurgir diários com Cristo. Questionamos, pois, a concepção que muita Igreja tem da conversão. Como se fosse suficiente saber indicar hora e lugar da minha conversão para ter certeza da minha salvação. Acaso alguém sabe dizer por quantas conversões Pedro passou? — Confortante é saber que é o envio de Jesus que nos levanta do chão, que nos perdoa e capacita a testemunhar, e não a nossa própria capacidade e ambição. A minha força nada faz, sozinho estou perdido. . .
V. 33: W. Grundrnann quer ver nesta declaração de Pedro uma associação com 2 Sm 15.21, que fala da lealdade de Itai, o geteu. Sem dúvida, é muito bonita esta afirmação de Pedro, porém, vazia, pois o Reino de Deus não requer heroísmo humano mas, sim, obediência e humildade dos(as) seguidores(as) de Jesus. Este é o segredo da perseverança.
V. 34: Entusiasmo barato não resolve nada. Jesus contrapõe ao entusiasmo de Pedro e, mais tarde, ao dos discípulos (v. 38) o seu basta! No caso de Pedro, Jesus quer dizer: Não te iludas, Pedro. Como te conheço melhor que tu a ti mesmo, sei que terás de passar pelo fracasso total antes de ser um servo do meu agrado total. — Finalmente, é interessante dar uma pequena atenção ao lugar deste sermão.
Confome Lucas, ele foi proferido na hora da ceia. Sem querer modificar o caráter de nossa Santa Ceia, que deve ser celebração festiva, eucaristia, revestida de louvor e gratidão e da vontade de viver sob a graça de Cristo, pergunto: Será que nós pastores(as) ainda dispomos de momentos em que, com coragem e autoridade, praticamos a admoestação e exorta¬ção confortantes? (Lembro-me, neste particular, que na casa de meu pai, também pastor, o lugar desta alocução era o sábado antes da Santa Ceia. Todo mundo vinha participar da confissão geral ou até para se confessar em particular e para se inscrever para a Santa Ceia do dia seguinte. A alocução, por ocasião da confissão geral, sempre tinha este caráter de exortação e edificação confortantes.)
IV — Meditação
Na meditação, duas leituras me orientaram. Uma vez, Versuchung (Tentação') de D. Bonhoeffer e, por outra, as meditações Wage dein Herz do meu estimado professor Eduard Haller. Inicialmente, porém, queria enfocar o termo epistrefein que, para Lucas, parece ser um termo de muito conteúdo teológico. Tanto no seu Evangelho como no livro dos Atos dos Apóstolos, este verbo aparece com peso programático, visando, pleiteando a conversão da pessoa humana. O homem é algo que deve ser superado, diz Zaratustra, e proclama a morte de Deus e a epifania do super-homem. Lucas vê a coisa dum ângulo diferente. Somente a partir do momento em que o humano em Pedro for superado, a sua ambição e o seu orgulho, dá para falar em conversão. Somente quando for levado ad absurdum o super-homem em Pedro, ele prestará para o Reino de Deus. Isto significa: eu mesmo(a), com todo o meu querer, desejar e vangloriar, devo morrer para que Cristo possa viver em mim. Só quando eu for aquietado(a) ao ponto de me esquecer por completo e de estar pronto(a) para ouvir, receber e compreender que um outro me guia, carrega e intercede por mim, só quando eu aceitar a verdade que não por própria força e, sim, por causa de Cristo sou alguém, só então chegarei à verdadeira condição humana, só então serei capaz de ação essencial, responsável e deveras construtiva.
Local e ambiente desta ação deve ser o anonimato, isto é, lá onde o meu eu se torna irrelevante, onde o meu nome com toda a sua suposta importância se queima — assim como o nome e a pessoa de um Isaías e de um João Batista se queimaram atrás da mensagem proclamada — e Cristo se torna tudo em todos(as), ressuscitando-me para nova vida. Logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. (Gl 2.20.) Assim, todo o agir humano, querendo subsistir perante Deus, deve passar pela morte. Pois ação cristã se concretiza no incógnito, na dedicação aos(às) pequeninos(as) irmãos(ás), no sacrifício, no serviço altruísta, na perseguição, na humildade e no martírio. Nada mais fácil para satanás nos pegar no pé do que lá onde está em jogo a nossa honra. Nada mais difícil para um(a) discípulo(a) do que guardar um coração puro e humilde num mundo em que tudo gira em torno de grandeza e brilho, de influência e posição, de poder e dinheiro. (Estarrecedor é olhar, sob este prisma, os lucros exorbitantes das assim chamadas igrejas eletrônicas.)
Estou pronto a ir contigo tanto à prisão como à morte! Que declaração bonita! Como soa bem! E como ela está vazia! Sei lá, devem existir pessoas humildes, sinceras e santas. No entanto, no momento em que elas se enxergam, interpretam e exibem como tais, já deixaram de ser humildes, sinceras e santas. O(a) santo(a) não tem tempo para a observação de si próprio(a). Todo o seu ser está voltado para a sua vocação e o seu serviço. O que os outros pensam sobre ele(a) não importa. Ele(a) é instrumento na mão de alguém maior. A mando deste ele(a) obedece e vai. Ele(a) ouve e caminha qual Noé e Abraão têm ouvido e caminhado, de maneira semelhante a uma infinidade de santos(as) de ontem e de hoje. Sim, o(a) santo(a) é tocado(a) e vai. Ele(a) é atingido(a) e pára. Ele(a) se cala, e o seu silêncio é canto de louvor para seu Senhor. Ele(a) fala, e a sua fala é juízo ou conforto para os irmãos. Ele(a) age, e o seu agir aponta para o Cristo, vivo e ressurreto e para o Reino dele, presente entre nós. Em tudo aquilo, o puro coração do(a) santo(a) e por Cristo carregado e guiado muitas vezes por onde ele(a) nem quer (João 21.18), abstrai de si. O(a) santo(a) vai o caminho da vocação divina, tornando-se, em toda a sua ingenuidade, um exemplo que um(a) homem(mulher) com e em Cristo pode ser íntegro(a), santo(a) e perfeito(a) (Mt 6.48).
Dom Helder Câmara conta a estória bonita daquela freira jubilar de 60 anos de congregação. Querendo provocar a vaidade dela, ele pergunta: Querida irmã, quantos anos são, precisamente, que a senhora está servindo a esta congregação? E ela responde: Meu pai, a minha vida consiste num único dia. Aprendi, na escola do meu Mestre a começar cada dia de novo.
V – Prédica
Posso imaginar o seguinte desdobramento da prédica: O(a) homem(mulher), por natureza e por si próprio(a), é garganta grande, incapaz de cumprir o que promete. Ainda que o espírito esteja pronto, a carne é fraca. Ligado(a) a Cristo, porém, inserido(a) nele, ele(a) chega a ser aquele(a) que foi planejado(a), pois: 1) Cristo carrega e guia; 2) Cristo intercede para que a nossa fé não venha a desfalecer; 3) Cristo, cujo perdão e poder se aperfeiçoa nos(as) fracos(as), sempre de novo encarrega e envia para fortalecermos os(as) irmãos(irmãs) e construirmos, assim, o seu Reino.
(Poder-se-ia dizer, também: Enquanto Cristo, cujo perdão e poder se aperfeiçoa nos fracos, enviar e encarregar, posso estar certo(a) do seu perdão.)
VI — Subsídios litúrgicos
1. Seria uma boa ensaiar com um coral litúrgico o Salmo 91 conforme antífona e cadência que seguem:
Antífona ( Veja em anexo)
2. Sugestões para a confissão: Ó Cristo, Senhor meu e Deus meu! Estou treinado(a) a ver nos outros os vestígios de sucesso, os sinais de energia e de força. Estou treinado(a) a medir e avaliar as coisas e pessoas pelas conveniências e eventuais vantagens. Até que ponto o(a) outro(a) pode me servir para alcançar os meus objetivos? Até que ponto ele(a) me ajuda a manter a minha imagem? Até que ponto pode se tornar perigoso(a)? Até que ponto. . .? Maldita vontade de me ver e interpretar a partir do(a) outro(a)! Ensina-me, Senhor, a ver-me no espelho de tua Palavra e de teu exemplo. Ensina-me, Senhor, a compreender que, tendo-te do meu lado, não preciso fazer olhos tortos a sucesso, título, posição ou glória quaisquer. Ensina-me que uma coisa só importa: ser eu moldado(a) conforme a tua imagem. E, tem piedade de mim!
3. Leitura bíblica: l Pedro 5.5-11
4. Oração final: Jesus, iniciador e consumador da fé! Muitas vezes sou fraco(a) de fé. Fortalece-me! Agradeço pelas pessoas que fortaleceram a minha fé. Dá-me forças, para que eu testemunhe a outros(as) a minha fé. Dá-me a compreender o mistério que reside no testemunho da fé: que, quando acendo com uma vela outras velas, o fogo não diminui, antes aumenta a luz. Quando, perante outros(as), dou testemunho de minha fé, esta não enfraquece, antes ela fica mais forte e mais robusta. (Intercessões).
5. Hinos: 40; 96; 97; 155 (HPD)
VII – Bibliografia
– BONHOEFFER, D. Versuchung. München, 1956.
– FUCHS. Art. Siniatzo. In: Theologisches Wörterbuch zum Nenen Testament. Stuttgart, 1964. V. 7.
– GNANABARANAM, J. Uma nova dança. São Leopoldo, 1970.
– GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Lukas. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Berlin (s. d.). V. 3.
– HAAG, H. Teufelsglaube. Tübingen, 1974.
– HALLERJE. Wage dein Herz. Güterloh, 1959.
– RENGSTORF, K. H. Das Evangelium nach Lukas. In: Das Neue Testament Deutsch. Göttingen, 1974.
– SCHIRLITZ, S. C, Griechisch-Deutsches Wörterbuch zum Neuen Testament. Giessen, 1893.
– VOIGT, G. Meditação sobre Lc 22.31-34. In: Die bessere Gerechtigkeit, Göttingen, 1982.