Prédica: Mateus 27.33-56
Autor: Carlos Musskopf
Data Litúrgica: Sexta-Feira Santa
Data da Pregação: 24/03/1989
Proclamar Libertação – Volume: XIV
l — Sexta-feira Santa: Deus morreu. Nada a celebrar.
Nós não temos razão alguma para estar alegres na Sexta-feira Santa. Nosso Deus morreu. Deus havia tomado a forma de ser humano e habitado entre os humanos, divulgando sua mensagem em palavra e ação. Não foi um outro deus que veio; nem foi parte de Deus que se revelou no homem Jesus de Nazaré. Portanto, quando Jesus nasceu, Deus nasceu como ser humano, e quando Jesus morreu, Deus mesmo morreu. A humanidade ficou sem Deus até o terceiro dia. Este é um fato radical, sensível e profundo: será que é tão difícil crer num Deus que morre por nós e derrota a morte em nosso favor?
Em grande parte das nossas Comunidades de Confissão Luterana, a Sexta-feira é o grande dia para tomar a Santa Ceia. Não vejo o mínimo sentido nisso. Sexta-feira Santa é dia de luto. Não temos o que celebrar ou festejar. É dia de tristeza, de derrota, pois Deus foi morto por causa dos pecados das pessoas e por causa das leis, costumes, privilégios (as tais das estruturas!) vigentes na época. É claro que nós olhamos para este dia pela ótica da Páscoa e não perdemos a esperança, mas, de fato, poucos foram os que acreditaram que algo ainda viria a acontecer (se é que houve alguém!).
Na Igreja Católica Romana, este é o único dia em que a Eucaristia não é celebrada e várias Paróquias realizam a procissão do Cristo Morto. Mas, por alguma razão que desconheço, um forte grupo de nossa Igreja introduziu a Santa Ceia neste dia. Com isso se fica com a impressão de que é celebrada a morte de Cristo. É evidente que a morte de Cristo é o elemento mais importante da fé cristã. E o momento-chave para a nossa redenção e nossa vida. Só que esta morte foi necessária por causa dos pecados — pessoais e estruturais — e não vejo motivo para celebrar isso com a Santa Ceia. Na Sexta-feira Santa é celebrada uma Santa Ceia perneta, pois falta, neste dia, o elemento da ressurreição, da nova vida.
Por isso, neste dia a Igreja deveria retratar os sentimentos cristãos: o altar deve estar vazio; um pano preto pode ser estendido da cruz até o altar (a maioria das igrejas tem uma cruz atrás do altar); os membros devem ser incentivados a expressar sinais de luto, seja na maneira de vestir, seja na maneira.de se comportar neste dia. Onde possível, poderia ser feito um tempo de jejum e reflexão antes ou depois do culto. De uma maneira geral, nós deveríamos ser mais criativos na maneira de expressar nossos sentimentos. É claro que isso se choca com a realidade de nossa sociedade (especialmente a urbana), a qual sempre menos considera estes sentimentos. Mas nisto está mais um desafio à nossa criatividade e à nossa capacidade crítica frente à sociedade.
Encerrando estes comentários preliminares, gostaria de reforçar a ideia de que a Santa Ceia deve ser celebrada na Páscoa (e, obviamente, na Quinta-feira, onde isto for possível).
II — O texto proposto
Estamos diante de duas unidades: vv. 33 a 50 e vv. 51 a 56. E estranho e lamentável que alguns deixem exatamente os vv. 55 e 56 de fora. As duas unidades se relacionam como uma janela que mostra uma paisagem. Dá para falar só da janela ou só da paisagem, mas é preferível falar de como ambas se limitam e se confundem. A primeira unidade narra os acontecimentos desde a chegada ao Gólgota até a morte de Jesus na cruz. A segunda relata as consequências deste acontecimento, ou seja, a nova realidade que brota no mundo a partir da morte de Jesus.
III — Alguns detalhes
Alguns comentaristas lembram a presença de quatro personagens: os soldados; os ladrões crucificados ao lado de Jesus; os representantes da elite dominante: sacerdotes, escribas e anciãos; e os que iam passando. Estes quatro grupos estão do lado dos que desprezaram Jesus. Mas temos o próprio Jesus e as mulheres de outro lado (vv. 55 e 56).
A hipocrisia dos assassinos está presente no detalhe do v. 34. A intenção deles pode ter sido dupla: 1) Acenar com um refresco e dar uma bebida de gosto terrível só para ver a reação de Jesus; 2) aliviar o sofrimento que estava por vir na crucificação, pois esta bebida tinha um efeito estupefaciente. Jesus rejeita a bebida e com isso rejeita o alívio que vem de cima. Não se presta para o ridículo e muito menos sucumbe à tentação de ter aliviado seu sofrimento pelos métodos de quem está causando a dor.
Outro detalhe interessante é a inscrição da acusação no v. 37. Comparando com os outros evangelistas, vamos perceber que a única parte que é comum a todas as inscrições é a expressão: Rei dos judeus. Foi por esta razão que Jesus foi crucificado: por querer ser (ou, ser de fato!) o rei dos judeus. Esta, pelo menos, é a versão dos que manipulam os meios de comunicação: reduziram o Salvador da humanidade a um mero e efêmero rei dos judeus. E quem iria acreditar ou seguir um rei crucificado? E um caso típico de interferência e manipulação, que a classe dominante procura exercer sobre a religião e a fé. Eles sabem muito bem que não só os reis de Israel, mas todos os reinados e todas as formas de dominação no mundo haveriam de dobrar seus joelhos diante da magnitude do Crucificado. Eles tinham consciência de quem era e o que representava o homem Jesus de Nazaré. Mas procuram esvaziar, diminuir sua importância, rotulando e definindo, a seu gosto, a tarefa de Jesus. Esta versão eles transmitem na escrita de acusação (v. 37) e através do mais simples e eficiente veículo de comunicação: a boca (v. 42). As pessoas que iam passando (v. 39) funcionam ao contrário: no fundo sabem que Jesus é o Filho de Deus (v. 40), e que esta é a razão verdadeira de seu assassinato, mas eles(as) não se rebelam contra a versão dominante, aceitando-a como oficial, mas não necessariamente real. Astutamente os dominantes fazem uma concessão (v. 43), acenando com o aspecto teológico.
O duplo detalhe dos berros e da exclamação Eli, Eli, lema sabactani também merece destaque. O grito faz a ponte entre uma unidade e outra. O grito faz parte da cena de crucificação, mas, ao mesmo tempo, é sinal da nova realidade: É no berro que se dão as conquistas mais significativas da história crista. (Nós, luteranos, herdamos a Reforma que Luther conquistou no berro e na raça!) No grito há um encontro, uma fusão da dor do mundo e da resistência de Deus. Para o mundo é um grito de desespero; para Jesus é um grito de esperança. Disso também concluímos que as palavras de Jesus na cruz devem merecer um estudo numa perspectiva um pouco diferente.
É comum ver-se no uso que Jesus faz do SI 22 uma expressão de submissão e obediência ao Pai. Mas, se não há hierarquia entre o Pai e o Filho, pois ambos são expressão do mesmo Deus, fica difícil imaginar que Jesus se sentisse desamparado de si mesmo. Este grito de desamparo sai da boca de Jesus, mas não é dele: é da humanidade. Jesus tira da tradição bíblica aquilo que a humanidade desesperançada sente naquele momento: o mundo se sente abandonado por Deus; a humanidade fica órfã de Deus. Portanto, o que Jesus diz não expressa o seu próprio desespero, mas é a expressão do gemido da humanidade já carente de Deus. Jesus traduz teologicamente com as palavras do salmista, o sentimento de frustração de todas aquelas pessoas que creram ser ele o Filho de Deus. Ele mesmo sabia que ia ressuscitar no terceiro dia e que revigoraria as esperanças dos humildes; Jesus sabia que daria uma resposta ao apelo do mundo desamparado. Mas, naquele momento, importava ser voz, grito, berro daqueles que viriam a ser seus(suas) seguidores(as).
Os vv. 51, 54 e 55 apresentam os elementos-base da nova Igreja: 1) Rompendo-se o véu que separava os comuns dos mortais da presença direta de Deus, rompe-se o poder do clero, rompe-se a supremacia do clero na manipulação da revelação e da vontade de Deus; rompe-se a distância, criada pelo clero, entre Deus e as pessoas, bem como termina a necessidade de intermediação. Jesus é Deus que sai de trás do véu e encontra o povo sofrido na cruz. 2) O segundo elemento-base é o soldado. Miserável, cumpridor de ordens, operário, bóia-fria, incapaz de pensar e de decidir por vontade própria; adestrado a dizer Sim, senhor! a qualquer estúpida ordem superior, o soldado tem o seu momento máximo de libertação, de dignidade, de afirmação como pessoa, quando reconhece em Jesus crucificado verdadeiramente o Filho de Deus. Supera a versão dominante e profere uma confissão de fé humilde e poderosa que se guardou pelos tempos, sendo repetida por milhões de não-seres do mundo, que vão sendo libertados pela presença de Jesus. Esta confissão não foi expressão de uma fé otimizada, gloriosa ou delirante, mas de uma fé/consciência naquele que tem poder sobre os poderes do mundo. 3) Sinal e símbolo desta nova Igreja que nasce entre os desprezados, são as mulheres. Por isso é impossível e incompreensível que se deixem os vv. 55 e 56 fora da perícope. As mulheres são as companheiras mais fiéis e mais corajosas de Jesus. Quando os discípulos mais próximos já o haviam negado e abandonado, trancafiando-se numa casa, as mulheres permaneceram com Jesus, acenando para o fato de que ele conta com elas em primeiro lugar para a nova Igreja.
VI — Resumindo
Jesus foi consciente e tranquilo para a morte na cruz, pois foi fiel ao seu próprio plano que é o plano de Deus. Não há dicotomia entre a vontade de Jesus e a vontade de Deus, pois Deus não é outro senão o encarnado em Jesus de Nazaré, o qual vai para a morte por causa das injustiças individuais e estruturais. Existe, sim, dicotomia entre o que o povo pensa e sente a respeito de Jesus e o que as autoridades querem que o povo pense e sinta. O povo fica confuso e superficialmente adere à versão dominante, ajudando a matar Jesus. E, fazendo isso, eles matam sua própria esperança, numa atitude masoquista de quem espera soluções indolores e autoritárias para resolver o caos pessoal e coletivo. A morte de Jesus na cruz muda tudo no mundo: o que estava escondido é revelado; o não-ser se torna ser; o negado é afirmado.
VII — E, agora, a prédica
Cada um dos detalhes abordados já dá base para uma boa prédica. Mas, tomando o todo do texto, podemos propor os seguintes passos:
— O ato da crucificação de Jesus responde aos interesses de um grupo dominante da sociedade da época;
— o povo sente em Jesus algo a mais, mas não sabe elaborar o que é isso;
— Jesus não julga/condena o povo, mas se identifica com ele, expressando os seus sentimentos;
— Jesus é Deus mesmo, que tem um plano para a humanidade, a nível pessoal e coletivo;
— o plano é desvelado às pessoas insignificantes e marginalizadas.
A prédica pode voltar-se para o hoje, respondendo a uma ou mais das seguintes perguntas:
Que interesses, de que grupos, há no falar de Jesus hoje? Que confusões o povo de Deus faz nos dias de hoje no que se refere às versões oficiais de fatos e acontecimentos? Que situações pessoais e coletivas levam Jesus à cruz hoje? No Brasil existem os pobres, os ricos e os dominantes; como estes grupos se inter-relacionam e onde se conflituam? Qual deles traz sinais de esperança? Qual está sendo o papel da mulher na nova realidade que se criou a partir da morte de Jesus?
VIII — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Nesta oração deve ser enfatizado que cada um(a) que está na igreja neste culto é culpado(a) pela morte de Jesus, pois cada um(a) continua tomando as mesmas atitudes da população naquela época.
2. Oração de coleta: Pedir que o Espírito da nova realidade produzida com a morte de Jesus nos encontre neste culto e nos conduza em nossa vida.
3. Assuntos para intercessão: Por fé e coragem para lutar pelo novo; por olhos e mente abertos para enxergar onde Jesus está sendo crucificado hoje; por humildade para saber aceitar de onde vêm os sinais do novo.
IX — Algo do que foi lido
– BAUER, J. B. Dicionário de Teologia Bíblica. São Paulo, 1973.
– McNEILE, A. H. The Gospel according to St. Matthew.
– HENDRIKSEN, Exposición del Evangelio según Mateo. In: Comentário dei Nuevo Testamento. Grand Rapids, 1986.