Prédica: Mateus 6.1-4
Autor: Uwe Wegner
Data Litúrgica: 13º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 20/08/1989
Proclamar Libertação – Volume: XIV
I – Tradução do texto
V. 1: Guardai-vos de não praticardes a vossa justiça na frente das pessoas, para serdes vistos por elas. Do contrário não tendes recompensa do vosso Pai nos céus.
V. 2: Quando, pois, praticares esmola, não toques trombeta diante de ti, como praticam os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelas pessoas. Em verdade vos digo, (já) receberam a sua recompensa.
V. 3: Tu, porém, quando praticares esmola, não saiba a tua esquerda o que pratica a tua direita,
V.4: para que a tua esmola seja em secreto. E o teu Pai que vê em secreto te recompensará.
II — Oposição e conflitos no texto
O termo que mais aparece em Mt 6.1-4 é praticar=fazer, no grego: poeïn (Ix no v. 1; 2x no v. 2 e 2x no v. 3). Esta estatística não deixa dúvidas: o assunto do nosso texto é uma prática, mais concreta-mente, a prática da justiça (v. 1). Quando os vv. 2-4 falam na prática da esmola eles não têm outra coisa em mente que a prática da justiça. A confirmação disto vem de uma observação no AT, mais precisamente, na tradução grega do AT: nesta o equivalente grego para o termo hebraico zedakah=justiça é, por várias vezes, justamente o que em nosso texto traduzimos como esmola (cf. Dt 6.25; 24.13, etc.; vários outros textos são citados em Zahn, p. 259).
Há, segundo o texto, duas práticas possíveis com relação à esmola=justiça. A primeira prática é rejeitada por Jesus. Ela se caracte¬riza pelo seguinte:
— É pública: feita na frente das pessoas (v. 1), em sinagogas e ruas, com publicidade (=trombetas), de forma consciente e calculista (v.3);
— é feita com a finalidade de angariar algo junto aos espectadores: para ser visto por eles (v. 1), para ser glorificado por eles (v. 3);
A esta primeira contrapõe-se a segunda prática, proposta por Jesus. Suas características são:
— Não é publica, é em secreto (v. 4);
— Não é calculista (v. 3);
— Tem a promessa de recompensa da parte de Deus;
— Quanto a sua finalidade: nada é dito explicitamente por Jesus.
Enquanto que a finalidade da publicidade em torno da esmola é a de ser visto ou glorificado pelas pessoas, o objetivo da prática da esmola em secreto fica acobertado num primeiro momento. Na verdade, assim pensamos, este objetivo é a razão última destas palavras de Jesus: trata-se do pobre. Mais precisamente: a proteção do pobre contra manipulações por parte de terceiros. É isto: a prática da esmola em secreto quer acabar com a prática da manipulação do pobre para fins interesseiros. Jesus não quer que o pobre seja um meio, um pretexto, uma simulação para a prática das esmolas, e sim, a razão e o objetivo último destas.
Dizíamos: nosso trecho trata da prática da justiça. Agora temos que precisar melhor: trata-se da justiça com relação a pobres. Os pobres, em verdade, não são citados nenhuma vez explicitamente dentro de Mt 6.1-4; não obstante, tudo gira em torno deles. Nosso futuro junto a Deus vai se decidir neles: recompensa dum lado; o vazio doutro. Há uma lógica nisto: quem quiser participar do reino de Deus terá os pobres por companhia de cada dia (Lc 6.20).
Ill — A prática da esmola ao tempo de Jesus
Tomando-se por base o que escrevem a esse respeito Strack/ Billerbeck (cf. v. IV. l, p. 536-558), convém distinguir entre duas formas de praticar esmola: uma era a forma organizada comunitariamente, em que cada judeu tinha por obrigação contribuir aos pobres semanalmente com uma quantia de dinheiro ou de produtos segundo a produção de suas rendas. Jesus refere-se aqui em Mt 6.1-4, mui provavelmente, a uma segunda forma de praticar esmola, qual seja, a privativa, em que cada um podia destinar pessoalmente parte do seu dinheiro aos necessitados.
Esta segunda forma podia ser praticada publicamente. Via de regra se procedia assim que a quantia de dinheiro a ser doado como esmola era anunciada publicamente à comunidade reunida, antes da sua entrega efetiva. Isto ocorria por ocasião dos cultos sinagogais aos sábados, ou mesmo em via pública por ocasião dos cultos de jejum; um terceiro lugar representavam as dependências das escolas, onde vez por outra se faziam as reuniões comunitárias. Tais compromissos, firmados em público, naturalmente projetavam os doadores frente aos demais. Concediam prestígio social, tanto junto aos pobres, como junto à comunidade. Aos doadores mais generosos eram concedidos os lugares junto aos escribas, o que representava uma honraria muito especial. O motivo da esmola era, nestes casos, vaidade pessoal e prestígio social. Temos muitas queixas dos rabinos: vaidade e prestígio social faziam muitas pessoas prometerem publicamente a doação de altas somas, promessa que posteriormente deixavam de cumprir!
A alternativa para este tipo de procedimento era a doação em secreto. Neste tipo de doação quem recebia não conhecia o doador, quem doava não tinha ideia do receptor. Mas, como viabilizar a prática da esmola em secreto? Havia, sobretudo, dois meios: (1) Doações maiores em dinheiro podiam ser dadas semanalmente via arrecadação comunitária para a caixa dos pobres; (2) porções maiores podiam também ser depositadas anonimamente no templo de Jerusalém, num lugar especialmente reservado para doações anónimas a pessoas desconhecidas.
Além da referência às práticas da esmola, fala o texto ainda de uma recompensa que se pode ou não receber junto a Deus. Quanto a isto Jesus expressa uma ideia muito difundida em seu tempo. Strack/Billerbeck (cf. v. IV J, p. 551-557) comentam em nada mais nada menos que 7(!) páginas os vários benefícios que trazia a prática de esmolas segundo o pensamento daquele tempo: concede riqueza e bem-estar, atendimento de orações, descendência masculina, expia pecados, liberta do inferno e dá participação no mundo por vir, entre outras coisas mais. Jesus não nega, propriamente, estas esperanças: reserva-as, porém, só para uma prática de esmolas bem determinada, a saber, aquela feita em secreto.
IV — A posição de Jesus
A posição de Jesus a respeito pode ser resumida em três frases:
1. Quando a ajuda ao pobre está em jogo, têm que acabar as questões pessoais relacionadas com prestígio e glorificação.
Uma ideia de como estas questões pessoais podiam adquirir importância na vida das pessoas, vemos através das atitudes dos escribas: gostam de andar com vestes talares e das saudações nas praças; e das primeiras cadeiras nas sinagogas. . . (Mc 12.38s; cf. Lc 20.46/Mt 23.5-7). Mais incisivo é o evangelista João quando nos apresenta a seguinte crítica de Jesus: Como podeis crer vós, os que aceitais glória um dos outros, e contudo não procurais a glória que vem do Deus único? Se o assunto é a busca de prestígio social, é sempre bom também lembrar uma possibilidade facilmente esquecida: Aquilo que é elevado entre os homens, é abominação diante de Deus (Lc 16.15).
Aqui em Mt 6.1-4 temos pressuposta uma situação semelhante: procura-se pelo errado — a glória própria — e deixa-se de alcançar o necessário: o indigente em sua aflição.
2. Quando a ajuda aos pobres está em jogo, tem que parar o calculismo: Não saiba a tua esquerda o que pratica a direita.
A interpretação desta última frase é controvertida. Alguns pesquisadores interpretam assim: com a frase Jesus quer dizer que a prática da esmola deve estar reservada ao conhecimento exclusivo do seu agente, não precisando ou devendo ninguém, nem o mais próximo parente, ser informado a respeito (cf. p. ex. Luz, p. 324). Outros já acham que as palavras encerram um sentido mais radical: o que Jesus quer no v. 3 é que aquele que pratica a esmola não acabe virando ele próprio uma estrelinha aos seus olhos (cf. p. ex. Eichholz, p. 108s). O v. 3, nesta última interpretação, não seria somente a mesma afirmação do v. 2 feita negativamente, antes procuraria mostrar que o problema que Jesus ataca pode (cf. o v. 2), embora não precise necessariamente, estar ligado à publicidade: é que eu posso ser uma pessoa reservada, acanhada de público e, não obstante, cultivar com esmola a pobres uma boa porção de vaidade e projeção pessoal dentro da minha cabeça. Af então o que a minha direita faz, minha esquerda vai registrar com muito cuidado, mesmo que não na frente das pessoas. Quando a esmola é em secreto, inclusive esta glorificação escondida e muito bem camuflada para fora, tende a desaparecer. Aí a direção da esmola determina tudo: o pobre, em suas necessidades grandes e urgentes, faz esquecer de todo o resto. O apóstolo Paulo deve ter sabido muito bem o que escrevia, quando afirmava: E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres. . . se não tiver amor, nada disso me aproveitará (l Co 13.3). Quem não tem amor quando distribui seus bens a pobres, fá-lo-á por amor próprio: o pobre dá ensejo a que eu calcute o que posso ganhar com ele. . .
Se a interpretação do v. 3 estiver correta, suas palavras contêm um apelo para uma paixão: a paixão pelos pobres. Ora, quem dá desta maneira, em verdade se dá. O v. 3 testemunha uma paixão pelos pobres que faz com que a gente se esqueça a si próprio, esqueça de tudo o que se pode ganhar às suas custas. A paixão pelos pobres torna-nos, de certa forma, cegos para nós próprios. Sentimo-nos irresistivelmente lembrados daqueles que, diante de Cristo, perguntam boquiabertos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? ou com sede e te demos de beber. . .? (Mt 25.37ss).
3. Deus recompensa todo o esforço pela justiça a pobres.
O que consta no v. 4 acerca da recompensa podemos ler também em outras passagens, a exemplo de Mc 9.41; 10.29, nas bem-aventuranças de Mt 5.3-12, etc. Numa outra passagem — Lc 17.7-10 — Jesus nos ensina a não entendermos a recompensa como dívida. A dupla referência ao apelativo Pai em nosso texto (vv. l e 4) mostra o que é a recompensa: uma expressão de amor e bondade paternas.
Mas, o apelo insistente do nosso texto para uma prática, um fazer correios, deixam entrever que a recompensa quer ser entendida também como sendo expressão do contentamento e agrado de Deus por aquilo que fazemos e pela maneira de fazê-lo. Para nós a promessa de recompensa tem, em vista disto, o papel de orientação, bússola: ela nos orienta na busca de uma piedade mais engajada na verdadeira vontade de Deus, a saber, a justiça para com os pequenos. A promessa por recompensa nos lembra: Deus não recompensa indiscriminadamente, havendo necessidade de corresponder a sua maneira de ser, por dentro e por fora: Pois ele se põe a direita do pobre, para dos seus juízes salvar a sua vida (SI 109.31).
V – Impulsos da literatura mais recente
Como estímulo para uma reflexão atual sobre a esmola, colocamos abaixo alguns pensamentos, mesmo que o espaço não permita comentá-los mais de perto.
1. Esmola, oração e jejum condensam o sentido da vida. Já não estamos perdidos neste mundo, nem podemos converter-nos no centro dos outros. A vida é um abrir-se aos demais (esmola), um manter-se no mistério de Deus (na oração) e ser capaz de ordenar e dirigir a nossa existência (jejum). Esmola, oração, jejum valem por si mesmos; são lugar de Deus na nossa vida, são a autêntica grandeza do humano. (Pikaza, p. 49.)
2. Aquilo que nos cabe como direito, jamais deve ser aceito como esmola. — Pensamento citado em programa de televisão.
3. O realismo dos cristãos fez com que eles não se voltassem de forma absoluta contra o uso do 'maldito dinheiro' (Lc 16.9), na medida em que este estava possibilitando a troca dentro da comunidade, o estabelecimento de uma comunhão de bens entre os cristãos. Os primeiros cristãos formaram pois um corpo muito coeso. Assim que, no entanto, dentro da história da igreja a unidade de referência deixou de ser a comunidade para se tornar o grupo dos organizadores, ou seja, o clero. . . tanto a moral como a doutrina passaram a dirigir-se paulatinamente aos corpos individuais. . . criando desta forma a famosa pastoral das massas que individualizava o pecado, a salvação, a moral, a pobreza. . . Foi assim que a prática cristã de comunhão de bens não resistiu à ação do tempo. . . Ela foi substituída pela prática da esmola. . . (Hoornaert, p. 220s).
4. É comovedor verificar o enorme esforço da Igreja em 'resolver' os problemas dos pobres. Entretanto, lhe escapava o que nós percebemos hoje: que toda aquela generosidade, afetiva e efetiva, reservava aos pobres apenas as 'migalhas' do produto social. . . Por isso, a história temos uma preocupação com os pobres e a justiça para eles, mas no fundo o que nos interessa mesmo é que nossa boa reputação teológica na frente das pessoas seja mantida. Mudamos o nosso discurso, sem nos mudarmos: mudamos por fora, sem nos converter por dentro. Simulamos com a teologia da libertação uma preocupação com pobres: no fundo estamos só preocupados com nossa cara, nosso visual de teólogos.
A hipocrisia, o teatro que se faz com o teologia da libertação vai até às bases do estudo de teologia, podendo determinar o que se escreve em exegeses, trabalhos semestrais, mesmo o que se coloca como opinião própria nos exames e trabalhos de conclusão. Nestes casos o raciocínio é frio e calculista: a defesa dos pobres dá boas notas e conceitos; POR ISSO é bom defendê-los. Aquilo que acontece junto ao estudantado naturalmente tem também o seu similar junto aos corpos docentes (pertenço a um deles): professores usam o pobre como conteúdo das mais diversas preleções e seminários, como proposta para tudo quanto é atividade. Em muitos destes casos, porém, o assunto na verdade é secundário: o primário é que as atividades ligadas ao docente sejam bem vistas, apreciadas e tenham boa aceitação. O professor não pensa primariamente em prestar um serviço ao assunto: o assunto é só pretexto para promover-se a si próprio. Palavras de um estudante de teologia: Estou saturado. Só se fala em pobres por aqui. Não tem outro assunto. Em todas as disciplinas é sempre a mesma coisa!
O calculismo dos teólogos não se encontra, contudo, restrito ao âmbito dos seminários e das escolas de teologia. Nós temos que reconhecer muito mais: teologia da libertação pode representar hoje em dia um ótimo negócio: defender os pobres em teologia pode nos abrir o acesso para diversificadas oportunidades que, de outra forma, jamais nos seriam oferecidas. Em jogo estão cursos, viagens, debates, conhecimento da realidade, etc. Achei preocupante a ótica a partir da qual um amigo meu aqui do Vale dos Sinos interpretou o fato quando me dizia meses atrás: Pena que não estudei teologia. Se eu imaginasse que defender os pobres pudesse dar tanta regalia, não teria feito o que fiz pra ter ganhando essa ninharia. Na Alemanha Ocidental, onde pude passar o 2°. semestre de 1987, a conversa que tive com um estudante de teologia foi na mesma direção: Se estiveres mal de dinheiro, disse-me ele, não tem problema; é só te ofereceres para dar uma palestra sobre hermenêutica libertadora, teologia da libertação ou coisa parecida, que o pessoal daqui paga bem por isto. Foi também na Alemanha que fiquei sabendo de alguns teólogos da libertação da IECLB que, da Igreja até o fim da Idade Média é a história do Pobre Lázaro e do Bom Rico.
Hoje em dia a partilha na forma da esmola continua a ter seu valor. Contudo, a esmola hoje, se quer se apresentar desvinculada de todo conteúdo assistencialista e paternalista, deve tomar uma forma distinta: será uma 'esmola política'. Trata-se de dar do seu tempo e de seu poder social a serviço dos pobres. Talvez seja deixar de lado um emprego mais rentável e assumir um outro onde se pode fazer mais pela causa da justiça. É renunciar ao próprio tempo livre para se dedicar à militância político-social em favor dos oprimidos. É não ceder aos favores, privilégios e venalidades que visam encobrir a convivência com a injustiça. É distribuir as próprias riquezas intelectuais num trabalho popular. É enfim solidarizar-se com a luta dos oprimidos, pagando por isso em toda linha, política e economicamente.
Assim se recupera o sentido originário e rico da esmola — palavra pela qual com muita justeza os Setenta traduziram sedaga — justiça. . . Recuperando, pois, o sentido e o espírito primitivo da esmola, deveríamos dizer que a maior esmola aos pobres hoje é fazer-lhes justiça. . . (Pixley/Boff, p. 210 e 176.)
VI — Meditação
As poucas citações alistadas no item anterior mostram que não é fácil falar de esmola hoje em dia. Alguns teólogos acham que a proposta de Jesus é meramente reformista, pelo que a prática da esmola não tem mais serventia alguma. Outros opinam mais diferenciadamente: defendem a prática da esmola, embora procurem redefini-la e adequá-la para dentro de novas formas e estratégias, que correspondam à nova situação em que vivemos. Gostaríamos de nos enquadrar neste segundo grupo.
Decisivo para esta opção foi a observação de que eleemosyne= esmola é, em textos do AT bem como em pronunciamentos de rabinos contemporâneos a Jesus, uma maneira de realizar justiça a pobres. A expressão grega do nosso texto, praticar esmola, é tradução literal da expressão hebraica asah zedakah = fazer justiça (cf. Strack/ Billerbeck, v. I, p. 388; v. IV.l, p. 536). Na prática da esmola é, portanto, a prática da justiça que está em jogo para Jesus (cf. o v. 1)! Por essa razão, dizer que o assunto hoje é irrelevante, equivaleria quase a desconsiderar a importância da justiça.
O que devemos conceder, no entanto, é que o termo que temos no português para traduzir eleemosyne não é feliz; é evidente que esmola não mais é termo adequado para definir uma prática de justiça. Na raiz do termo eleemosyne está a palavra eleos, comumente traduzida por misericórida (cf., p. ex., Mt 9.13: Misericórdia é que eu quero, e não sacrifício!). Uma tradução que observasse essa raiz do termo grego não ficaria mais apropriada para hoje? Poderíamos, no caso, falar em praticar misericórdia, ou praticar compaixão. Mas também outras expressões entram em cogitação. O dicionário do Aurélio caracteriza esmola como representando auxílio, amparo, socorro, benefício. A gente poderia pensar em expressões que utilizassem também estes termos. Lembremo-nos: a esmola representa uma ação de justiça para Jesus: é esse o sentido que temos que preservar, mesmo que mudemos os vocábulos em nossa própria tradução do texto.
Uma última observação convém levar em conta, quando se trata de meditar Mt 6.1-4 para dentro de nossa realidade: é praticamente consenso entre os exegetas que eleemosyne, dentro do NT, é usado com exclusividade no sentido de um auxílio relacionado com economia, sendo este dirigido a pobres (cf. Lc 11.41; 12.33; At 3.2s,10; 9.36; 10.2,4,31; 24.17; cf. Bultmann, p. 482s).
Colocadas estas questões iniciais, cabe-nos agora meditar sobre como em nosso meio se abusa de pobres para benefício próprio, como em cima deles a direita calcula o que a esquerda deve ou não fazer.
1. Iniciemos com a própria casa, com nossa religião, igreja e teologia. Temos a firme convicção de que a forma de praticarmos esmola como teólogos esteja intimamente relacionada com a teologia que pregamos e defendemos, e não tanto com o dinheiro que nos sobra — se sobra — no fim de cada mês.
A teologia pode estar a serviço da justiça aos pobres. Sobretudo a teologia da libertação é veiculada atualmente com este propósito maior. Mas, o que está acontecendo com os teólogos? Estou cansado de ouvir pessoas me dizerem mais ou menos o seguinte: Fulano(a) está irreconhecível. Seu discurso teológico está totalmente mudado. Não entendo: ele(a) mesmo não mudou nada! Pessoas mudam o discurso, mas não mudam a si próprias; está acontecendo a hipocrisia do v. 2: representantes aqui em terras nossas, nunca foram identificados expressamente como tais!? É fácil vender uma imagem teológica, sobretudo entre gente que não nos conhece, que não vê em secreto, isto, evidentemente, não só fora do Brasil. Mas, com que intenções agimos desta forma? Para sermos glorificados por terceiros, diria o nosso texto. Como quer que seja: com nossa teologia vendemos uma imagem; resta saber o uso que fazemos disto. . .
2. Passemos agora para uma reflexão mais a nível eclesial, de comunidades e instituições da igreja. O desejo de ser visto/glorificado representa um problema também neste âmbito?
Mt 6.1-4 leva à pergunta: que imagem vendemos como IECLB? Como queremos que as pessoas nos vejam? E, sobretudo: como queremos que as pessoas vejam nossa relação com os pobres? A questão é se a imagem que vendemos para fora também corresponde àquela que Deus vê em secreto. A fachada material que muitas vezes ostentamos em prédios, carros, etc. parece desmentir, à primeira vista, o discurso do dia-dia. A composição sociológica da grande maioria dos membros de nossas comunidades igualmente está em relação de tensão com palavras de prédicas e outras, às quais com tanto entusiasmo seguidamente recorremos. Um só exemplo pelo 13.05, dia da abolição da escravatura, quê está a nossa frente: quantos negros/as participam da comunhão universal dentro de nossa comunidade? Este único exemplo comprova: vendemos com facilidade uma imagem em discursos, mas temos enorme dificuldade de encarná-la na prática.
Não precisamos, porém, olhar só para fora. Olhemos também para dentro, para as relações existentes entre nós mesmos em nossa igreja. A IECLB está madura para praticar esmolas em suas próprias fileiras? Há coisas negadas à maioria, às quais só uns poucos escolhidos têm acesso? Prática de esmola seria neste caso viabilizar novamente a justiça entre os/as colegas, em razão de desníveis, privilégios e oportunidades flagrantemente desiguais e, portanto, discriminatórias. Também dentro da igreja a gente pode estar disposto a conceder migalhas pra um ou outro, sem querer arcar com o ónus de uma partilha mais justa do grande bolo. A mão direita que dá policia muito bem a esquerda, quanto ao que esta última não deve perder. . . Aliás, desníveis existem também entre pastores/as e empregados/as ou funcionários/as das comunidades e instituições eclesiásticas. Praticar esmola seria aqui deixar que se cumpra Is 40.4: Todo o vale será aterrado, e nivelados todos os montes e outeiros. . . A profecia do nivelamento questiona os desníveis entre nós.
Falar em igreja e comunidades é, no entanto, falar também concretamente dos seus membros. Ehrat (p. 282s) já fez importantes observações quanto à atualidade de Mt 6.ï-4 para pessoas que vivem nas comunidades. Gostaríamos de complementar suas colocações conside¬rando ainda o seguinte:
A coisa que nos parece ser de maior importância junto aos membros das comunidades é fazê-los entender que, de acordo com Jesus, a prática da esmola quer representar um ato de justiça (zedakah) para com os pobres. Isto é o essencial. A justiça vira o juiz das nossas esmolas. É isso que precisa ficar claro: é pouco, mas pode ser explosivo.
Entendido o que é essencial, os sintomas ficam, automaticamente, mais transparentes. Tomemos o caso daqueles membros de nossas comunidades, sempre generosos nas suas dádivas em dinheiro. Como a justiça é nosso critério, a quantidade de dinheiro ofertada ainda não representa nada. Nós sabemos: a generosidade nas ofertas pode ser um ato genuíno de desprendimento e partilha de bens. Pode, mas não precisa sê-lo. A generosidade para fora pode muito bem representar um calculismo frio por dentro: a gente larga bastante dinheiro na frente da igreja e sociedade; em troca disto a igreja e sociedade nos deixam em paz quando o dinheiro entra nos nossos bolsos; não se pergunta se o dinheiro é limpo ou sujo, se vem de exploração ou trabalho honesto. Com generosidade é muito fácil comprar sociedade e igreja, inclusive comprar o pobre, pois este último, uma vez aceitando esmolas, dificilmente terá coragem para reclamar direitos mais tarde. . . Neste aspecto o v. 3 reproduz uma questão muito atual.
Mas, e o que dizer daqueles membros que nem mesmo recursos para partilhar com outro têm? Mt 6.1-4 é também mensagem para os pobres? Acho que sim. A prática da esmola pelo pobre não é feita com dinheiro. Mas ele tem vários outros meios de dar uma contribuição para que haja mais justiça: sua participação em movimentos populares, organizações de bairro, sindicatos e na militância em partidos comprometidos dão prova disto. Essa é a esmola que o pobre pode dar: não dinheiro, mas tempo, dedicação, compromisso. Se ele não fizer assim vai fazer diferente: vai esperar pelas eleições, vender o seu voto e depois. . , receber o troco amargo de costume. Ou então vai permitir que dentro das comunidades ele continue marginalizado e explorado pelo preço de batismos, santa ceias, cultos bonitos de natal, etc.
3. Por último, cabe ver Mt 6.1-4 em sua relação com a sociedade maior, dentro da qual vivemos.
A primeira coisa que nos chama atenção aqui é o apelativo usado por Jesus: hipócritas! Este termo designa o ator. Ele apresenta nos palcos um personagem que o autor da peça propõe. Os hipócritas representam para outros.
Na sociedade brasileira, que papel assumimos nós com relação aos pobres? Ou melhor: quem deixamos ser o autor do papel que assumimos? Estamos assumindo o papel que Deus nos prescreveu? Ou somos meros atores e papagaios de um programa a exemplo do tudo pelo social de Sarney, escrito por autores que são verdadeiros mestres na arte de representar na frente das pessoas? A situação do povo mostra: o tudo pelo social é mentira, é pre-texto: dá-se algumas migalhas com a mão direita (l litro de leite, etc.), para que a esquerda possa continuar a encher os seus bolsos. Não é exatamente assim que também se apresentam os grandes programas de ajuda para o desenvolvimento, na forma de créditos bilionários, implantação de indústrias, etc.? Todos eles mostram-se ao público com a intenção de libertar-nos da pobreza. Na verdade — o que já foi exautivamente comprovado — não entram dólares, marcos ou iens neste Brasil, que não retornem duplicados para as mãos dos seus doadores. É essa a esmola que se pratica ao Brasil: a esmola da in-justiça. Estes, diz Jesus, já receberam a sua recompensa. É uma recompensa bilionária, mas sem futuro no reino de Deus.
Um outro assunto que poderia ter muito a ver com teatro/hipocrisia na frente das pessoas seria a realização de eleições municipais no final deste ano. Se estas eleições ocorrerem, o Brasil todo será um enorme palco onde frente às pessoas se proporá justiça aos pobres, ou se usará os mesmos e a defesa dos seus direitos como pre-texto para uma vitória segura nas urnas. Mt 6.1-4 viraria então uma interpelação de Jesus para cada candidato: Tua esmola seja em secreto; e o teu Pai que vê em secreto te recompensará. . .
VII – Prédica
Procurei dar vários subsídios na meditação, assim que o/a pregador(a) possa receber vários impulsos. Pessoalmente proporia os seguintes passos:
1. A esmola não caducou ainda?
Problematização do termo (=esmola) e da sua prática usual. Relacionar esmola com justiça e pobreza.
2. O pobre não é só saco de pauladas: dá também prestigio social, reconhecimento público e muitas outras coisas: é só a gente saber usá-lo direitinho. . .
Aqui trabalhar a oposição frente às pessoas x em secreto. Mostrar o negócio que dá para fazer com pobres em igreja e sociedade. Problematizar o visual, as fachadas das instituições e pessoas em igreja e sociedade.
3. A recompensa que vem de Deus: quer premiar a esmola da justiça.
VIII – Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Pois misericórdia quero e não sacrifício; e o conhecimento de Deus mais do que holocausto. (Os 6.6.)
2. Confissão de pecados: Pedimos-te perdão neste dia, Senhor, pela enorme pobreza existente em nosso país. Perdoa-nos que o número de pobres aumenta cada vez mais, e que a miséria fica cada vez pior. Essa situação é culpa nossa: deixamos o pobre sozinho em suas lutas: não o amparamos com o que sabemos, aprendemos e temos. Perdoa também as esmolas que damos a pobres: elas não são parte do que temos, mas resto do que não queremos mais. Não as damos para ajudar a outros, mas-para que estes deixem de incomodar-nos.
Senhor, existem pobres em nosso meio. Perdoa-nos essa injustiça. Tem piedade de nós, Senhor.
3. Oração de coleta: Tua palavra é vida, Senhor. Pedimos-te: Faze que ela dê vida a nosso povo, vida com muita fartura e alegria, vida gostosa e bonita. Pedimos especialmente por aqueles que têm vida dura, amarga, difícil: que tua palavra tenha poder para transformar esta situação, para converter-nos. Amém.
4. Oração final: A 1a parte desta oração deveria estar ligada intimamente com aspectos do texto ressaltados na prédica. Seu conteúdo variará, portanto, de comunidade para comunidade. Intercederia, a seguir, por coisas ligadas à temática, mas que eventualmente não tenham podido ser exploradas ainda: por justiça salarial, valorização do trabalho, por uma ordem económica em que a renda seja partilhada, não acumulada; por direitos que os pobres já têm em legislação, mas que ainda lhes são concedidos unicamente como favor.
IX — Bibliografia
– BREIT, H. Mt 6.1-4. In:. Calver Predighilfen. Stuttgart, 1968, v. 7.
– BULTMANN, R. Artigo ELEOS, etc. In: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Stuttgart, 1935, v. 2.
– EHRAT, M. B. Mateus 6.1-4. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, 1982, v. 8.
– EICHHOLZ, G. Auslegung der Bergpredigt. 2. ed. Neukirchen, 1970.
– GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Matthäus. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. 4. ed. Berlin, 1975, v. 1.
– HOORNAERT, E. A memória do povo cristão. Petrópolis, 1986.
– LUZ, U. Das Evangelium nach Matthäáus (Mt 1-7). In: Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament. Zürich, 1985, v. 1/1.
– MARQUARD, F. – W. Mt 6.1-4. In: Göttinger Predigtmeditationen. Göttingen, 29(3), 1975.
– PIXLEY, J. & BOFF, C. Opção pelos pobres. 2 ed., Petrópolis, 1987
– STRACK, H. L. & BILLERBECK, P. Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch. 7. ed. München, 1978, v. 1,2 e 4/1.
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– PIKAZA, A teologia de Mateus. São Paulo, 1978.