Prédica: 1 Pedro 2.1-10
Autor: Sérgio Sauer
Data Litúrgica: 6º. Domingo após Trindade
Data da Prédica:22/071990
Proclamar Libertação – Volume: XV
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
trouxeste a chave? (Drummond)
l — Introdução à carta
A la carta de Pedro não entra em questões levantadas por uma comunidade particular, como fazem as cartas paulinas, nem mostra uma intimidade com os seus leitores. Por outro lado, devemos notar que a sua saudação não é a de uma epístola católica, a ser lida aos cristãos de qualquer parte do mundo. Ela não é um tratado teológico ou ético, mas está direcionada a um grupo específico de pessoas e trabalha com uma situação especial.
Como a própria carta afirma, os destinatários são os eleitos que são estrangeiros na Dispersão (1.1). A dúvida está se estas pessoas eram de origem judaico-cristã ou gentílico-cristã. Apesar da ampla argumentação vétero-testamentária (o próprio texto de 2.1-10, por exemplo), a referência ao passado pré-cristão dos destinatários como de ignorância (1.14), assim como a afirmação de que as mulheres se tornaram filhas de Sara (3.6), indica que os leitores eram de origem gentílico-cristã. Em todos os casos, a realidade destes que estão dispersos é marcada pela perseguição. São caluniados (2a12-15), levados aos tribunais (3.14ss), provados com tribulações (4,12ss), criticados por não participar da conduta pagã (4.3ss), etc. Diante disso, o objetivo da carta é consolar e animar para que permaneçam firmes, mesmo diante do sofrimento. As exortações são afirmadas com cada situação de sofrimento dos cristãos e fundamentadas pela referência ao exemplo de Cristo (2.18-25 ;3.18-22), ao qual é necessário seguir, para se alcançar, através de sofrimento, a glória (Lohse, p. 228). Apesar disso, o tom da carta não é melancólico, porque crer em Cristo significa regozijar-se com uma alegria inefável e gloriosa (1.8).
Importa notar ainda que a carta tem como uma de suas ideias principais a eleição de Deus. A carta procura explicitar o que é esta graça, da qual os leitores agora fazem parte através da conversão. Esta situação nova de conversão, graficamente descrita como uma transição das trevas para a luz (2.9), está alicerçada na eleição, misericórdia e chamado de Deus (1,2;2JO). Isto foi anunciado pelos profetas do AT (1.10ss), realizado pelo trabalho de Jesus (1.18ss) e pregado no Evangelho (1.22-25).
O autor afirma (1.13-2.3) que este Evangelho é a palavra que permanece para sempre. Ela transformou completamente a vida de seus leitores, trazendo o novo nascimento. O fundamento da fé e da esperança é a preciosa redenção pelo sangue de Cristo. Esta nova vida envolve uma ruptura com sua antiga forma de vida, e uma nova obediência a Deus, o que se expressa em santidade e amor fraternal. Para o povo da nova aliança, Cristo se tornou a pedra angular, mencionada no AT, uma fundação sólida para os crentes e uma pedra de tropeço para os descrentes (2.4-10). Os crentes são construídos sobre Cristo, tornando-se a nação santa, a qual, pela misericórdia de Deus, é a continuação do povo de Deus desde o AT.
II — Buscando entender o texto
O texto de l Pe 2.1-10 possui uma ruptura entre os vv. 3 e 4 (inclusive a Bíblia de Jerusalém abre a segunda parte com um novo título), porque nos três primeiros versos o tema está centrado numa orientação para um crescimento na fé e nos versos seguintes muda para uma argumentação vétero-testamentária da eleição de Jesus e dos cristãos por meio de uma linguagem de construção (templo). Neste sentido o texto não é novo, porque o próprio Jesus (Mt 21.42ss) se tinha comparado à pedra rejeitada (SI 118.22), que depois se tornou a pedra principal (Is 28.16).
Na perícope de 2.4-10 mesclam-se as imagens da comunidade cristã como sacerdócio templo. O texto afirma que ela é formada de pedras vivas que constroem-se num edifício espiritual e exorta a que dediquem-se a um sacerdócio santo.
Apesar da ruptura entre as duas partes do texto, marcada pela mudança de tema, a ênfase na palavra dá um fio vermelho ao todo da perícope. O texto 2.1-3 possui uma condenação às palavras malditas e uma exortação à busca de crescimento pela palavra. (O texto anterior (1.22-24) já afirma a importância da proclamação da palavra.) os versos seguintes (2.4-10) possuem outras imagens, mas mantêm a perspectiva da centralidade da palavra, especialmente quando constata (v. 6) que aquelas pessoas que tropeçam na pedra angular o fazem porque não crêem na palavra e os ouvintes são um povo santo para a proclamação (v. 9).
Importante notar também que o texto de 2.1-10 está em direta relação com o texto de Êx 19. O povo escolhido de outrora constitui-se junto ao Sinai, mas não pode aproximar-se dele (ÊX 19.12ss). Mas para l Pe o novo povo de Deus constitui-se junto a outra rocha, da qual deve achegar-se (v. 4). Da mesma maneira, aos sacrifícios que tinham selado a aliança antiga (ÊX 24.5-8) sobrepõem-se os sacrifícios espirituais (v. 5).
A partir destas observações gerais, vamos nos achegar mais ao texto, tentando entendê-lo verso por verso.
No v. l o verbo APOTHEMENOI (rejeitando) significa despir para indicar despir a roupa. A metáfora pode indicar a ideia do despir a roupa suja.
O v. l apresenta uma lista de vícios, o que era artifício didático comum no contexto helenista, bastante empregado pelos filósofos morais. Apesar da lista ser breve (l Pe 2.11ss a amplia) ela possui três vícios ligados palavra; mentira (DOLOS = engano, ludíbrio); hipocrisia, que vem do verbo HYPOKRINOMAI (= responder ou retrucar, que definia originalmente a representação dos artistas no palco) e maledicência, KATALALIA (= difamação).
No v. 2 a tradução/interpretação é polémica, porque aquilo que Almeida traduz por genuíno leite espiritual pode ser traduzido, segundo vários intérpretes, por o leite não adulterado da palavra. O grego traz o termo TO LOGIKON e pode ser traduzido por da palavra. Portanto, o genuíno (ADOLOS = puro, não adulterado) leite é o oposto dos vícios da fala/palavra do v. 1.
No v. 5 o termo grego que Almeida traduz por sois edificados pode ser imperativo ou indicativo, mas o contexto do verso parece indicar uma constatação e não uma ordem. Esta constatação traz consigo a responsabilidade de desenvolver um sacerdócio santo. Também os termos casa espiritual e sacrifício espiritual revelam uma oposição à importância do templo e da prática de sacrifícios da religião da antiga aliança, assim como o v. 9 vai afirmar o surgimento de um novo povo eleito.
O autor de l Pe, nesta perícope, dá uma nova dimensão aos conceitos de povo de Deus, prática da religião, sacerdócio e justifica tal interpretação usando algumas passagens do AT. Então, o uso de Is (28.16), assim como os demais textos, é feito para mostrar que a nova aliança não é uma contradição com a antiga, mas uma continuidade, realizada de forma nova, numa nova dimensão. Neste sentido, o termo grego KATAISXYNO pode ser traduzido por envergonhar (Almeida) ou confundir, com a ideia de que os crentes não serão confundidos diante da discussão com o judaísmo. A confusão fica para
aquelas pessoas que não crêem na palavra (v. 8) e conseqüentemente rejeitam a Jesus como a pedra preciosa.
No v. 8 Almeida traduz pedra de tropeço e rocha de ofensa, enquanto a Bíblia de Jerusalém traz pedra de tropeço e rocha que faz cair. O termo grego usado é SKANDALON (= escândalo), que não tem como primeiro sentido o de ofender, mas dementar, de conduzir ao pecado. Ainda no final do verso 8 a tradução literal seria “é para isto que foram estabelecidos, dando a ideia de que, rejeitando o evangelho, os judeus perderam as suas prerrogativas, agora transferidas para os cristãos (3.9). Disto não podemos, por outro lado, deduzir que o texto afirma uma rejeição escatológica (ver Rm 11.32; l Tm 2.4).
Ao contrário das pessoas que não crêem na palavra (v. 9), os cristãos são a raça eleita e a nação santa. Aqui os termos gregos GENOS e LAOS são sinónimos e indicam um agrupamento de gente com vida e descendência comuns. Este é o título com o qual o antigo povo de Israel era definido, mas agora é ampliado e, a partir de Jesus, transferido para os cristãos.
As pessoas que creram em Cristo se tornaram a negação da negação. Se antes os gentios não mereciam o nome de povo, mas eram classificados de pagãos, agora, através de Cristo, são o povo que alcançou a misericórdia divina, uma raça eleita e uma nação santa.
Ill — Meditando sobre a vida no texto
O texto de l Pe 2.1 ss claramente se dirige àquelas pessoas que foram atingidas pela bondade divina (v. 3), àquelas que conhecem a misericórdia de Deus (v. 10). Esta afirmação não está colocada como consequência, mas como mola propulsora, a qual leva os ouvintes a serem fiéis na fala (v. 2) e no ministério. (v. 4 e 5). As pessoas/ segundo o autor, sentindo-se agraciadas por Deus, constroem-se sobre o alicerce que é Cristo, para um ministério santo. A eleição bondosa de Deus passa a ter, em primeiro lugar, o sentido de fortalecimento e, em segundo lugar, coloca sobre estes agraciados a responsabili¬dade de serem sacerdotes para a proclamação da palavra.
Na certeza da experiência bondosa de Deus, l Pe exorta para que as pessoas eleitas abandonem as palavras malditas e enfatiza a necessidade de crescimento através do “leite não adulterado da palavra” e a prática de um sacerdócio. Wittgenstein disse certa vez que: Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo. Talvez possamos dizer que os limites da nossa fala demonstram os limites da nossa prática de fé.
A nossa pregação se dirige, certamente, para um público que se julga, e com razão, agraciado por Deus, mas que não possui os problemas de perseguição sofridos pelo público de l Pe. Por isso, a ênfase recai sobre a responsabilidade que temos como cristãos. A partir disso teríamos que nos perguntar:
Que estou fazendo se sou cristão?
Se Cristo deu-me o seu perdão?
Há muitos pobres sem lar, sem pão.
Há muitas vidas sem salvação.
Meu Cristo veio prá nos remir
O homem todo sem dividir.
Não só a alma do mal salvar,
Também o corpo ressuscitar.
Apesar de todas as dificuldades que enfrentam os ouvintes de l Pe, o consolo que vem pela certeza da misericórdia divina, não é posto de forma fechada e sem consequência. A realidade de nossas Igrejas e comunidades é justamente esta: estar aí para si mesmas, o consolo pelo consolo. O autor fala de um sacerdócio, que certamente não é para pastores que se apascentam a si mesmos”(Ez 34.8), mas para proclamar as excelências daquele que nos chamou das trevas para a verdadeira luz (v. 9). Não somos igreja para sermos igreja, não somos cristãos para sermos cristãos. Somos Igreja para sermos instrumentos na construção do reino de Deus. Enfrentamos todo tipo de injustiça: o povo brasileiro morre de fome nas favelas e nos acampamentos à beira da estrada porque o sistema injusto concentra as terras e riquezas nas mãos de poucos; nossas crianças morrem de fome e desnutrição porque o fundamental é o lucro e não as pessoas. Teologicamente definimos esta situação como o mundo em trevas, mas onde está a luz dos cristãos agraciados por Deus, que passaram das trevas para a verdadeira luz (v. 9)?
Costumo achar que o mundo é o que é porque os cristãos não são o que deveriam ser. Claro que isto pode parecer pretensioso demais, mas, apesar de sonhar, não chego a achar que os cristãos mudarão sozinhos o mundo. Por outro lado, está claro que raramente desenvolvemos o nosso sacerdócio santo neste mundo de tantas dores causadas pela injustiça, pelo desamor, pela ganância. Agora, se não sonhamos transformar o mundo, mas tão-somente auxiliar nesta transformação temos que nos lembrar de Neruda, poeta maravilhoso, quando disse:
Ay! si con sólo una gota de poesía o de amor pudiéramos aplacar la ira del mundo, pero eso solo pueden la lucha y el corazón resuelto.
IV — Bosquejos para uma prédica
Acredito que este texto pode dar origem a, pelos menos, dois tipos diferentes de prédicas. Uma poderia dar mais ênfase à centralidade da palavra, usando assim a primeira parte da perícope. A segunda opção, centrada na segunda parte do texto (v. 4 a 10), teria como ênfase a eleição de Jesus e do povo e a consequente bênção do tornar-se um povo eleito e a responsabilidade de agir como tal. Apesar de que isto não significa uma ruptura total dentro da perícope, como já argumentamos anteriormente.
Seja qual for a opção do caminho a seguir, não devemos nos esquecer que o ponto de partida está na experiência da bondade de Deus (v. 3) e na sua misericórdia (v. 10).
A partir disso, a prédica poderia tomar o seguinte caminho:
1. Introdução: afirmação da comunidade e dos ouvintes como povo eleito, raça santa.
2. Crítica aos problemas e falhas: procurar destacar onde a comunidade está falhando na fala ou na não-execução do sacerdócio.
3. Desafiar a comunidade para a necessidade de tomar consciência dos erros em relação à responsabilidade que temos como Igreja de Jesus Cristo neste mundo. Enfatizar que a experiência da bondade de Deus implica uma mudança de atitude (fala), ou uma postura profética como sacerdotes do Deus da justiça.
V — Subsídios para celebrar
1. Confissão de pecados: Deus, criador de todas as gentes e raças! O mundo está em trevas por causa da injustiça, da falta de paz, da fome, da miséria. Pedimos que tu nos perdoes porque muitas vezes assistimos a tudo isso indiferentes. Nós, que fomos agraciados pela tua bondade, não assumimos a nossa responsabilidade sacerdotal de lutar por um mundo mais justo e mais fraterno. Não lutamos para implantar sinais do teu reino de justiça entre nós. Diante da nossa confissão, pedimos: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Deus, estamos reunidos como pessoas que experimentaram a tua misericórdia. Ajuda-nos a entendermos o nosso papel neste mundo. Dá-nos forças e coragem para que possamos assumir a nossa tarefa de ser luz neste mundo de tantas falhas e injustiças. Fica conosco através de teu Espírito e nos conduze pelos teus caminhos. Em nome de Cristo. Amém.
3. Oração final: Pedir a Deus coragem e fé para continuar lutando; lembrar das dificuldades e injustiças do mundo; interceder para que a Igreja esteja aberta para ser instrumento do Reino na luta diária por justiça e paz; agradecer pela eleição de Deus.
VI — Bibliografia
– ENSLIN, M. S. First Letter of Peter. In: The Interpreter’s Dictionary of the Bible. Abingdon Press: Nashville. p. 758-766.
– LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento, São Leopoldo: Sinodal, p. 226-231.