Prédica: 2 Coríntios 5.1-10
Autor: Osmar Zizemer
Data Litúrgica: Penúltimo Domingo do Ano Eclesiástico
Data da Pregação: 18/11/1990
Proclamar Libertação – Volume: XV
l — Texto e contexto
A perícope proposta para este penúltimo domingo do ano da igreja também já foi proposta para o l? domingo após o Natal. Mas pela temática nela tratada — morte, ressurreição, juízo, esperança de eternidade — parece que ela se coaduna melhor com esta época de fim de ano eclesiástico.
O nosso texto é, com certeza, um dos mais controvertidos de todo o corpus paulinum. Para convencer-se disto basta consultar os comentários, as meditações e os auxílios homiléticos que se ocupam com este texto: Ainda hoje os pesquisadores chegam a resultados bem divergentes entre si no detalhe. Tendo isto em conta, temos de assinalar já de início, que não temos a pretensão de analisar este texto exegeticamente em todos os seus detalhes e aspectos. Somos levados a esta decisão tanto pelo reduzido espaço aqui à nossa disposição, como pela controvérsia na pesquisa que já assinalamos acima. Vamos nos restringir, portanto, a alguns aspectos centrais deste texto, guiados pela pergunta pela predicabilidade do mesmo.
Nossa perícope faz parte de uma discussão maior, que o apóstolo Paulo trava com a comunidade de Corinto, por ele próprio fundada, em tomo da prática do evangelho na mesma e de algumas questões centrais da fé cristã (ex.: a teologia da cruz (l Co 2.1ss); a Santa Ceia (l Co 11.17ss); a ressurreição dos mortos (l Co 15); o apostolado de Paulo (2 Co 1-7); etc.). Ele vê a pureza do evangelho e a unidade da comunidade ameaçadas e a sua própria credibilidade apostólica posta em xeque por seus adversários infiltrados na comunidade. Eles difundem uma doutrina, e em consequência uma prática, cuja procedência e cujos contornos exatos são controvertidos na pesquisa. Em todos os casos, boa parte dos pesquisadores a caracterizam como doutrina de procedência judaica (ou judaico-cristã) com características de gnose helenística.
Dentro da unidade maior em que Paulo defende o seu apostolado na Segunda Epístola aos Coríntios (2 Co 2.14-7.4), o apóstolo inicia argumentando no capítulo 4:
4.1-6 —Não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor, e nós como vosso (scil. os coríntios) servidor por amor de Cristo,
7-12 – levando os sinais de Sua morte em nosso corpo
13-18 – na firme fé (convicção, certeza) da glória vindoura e eterna.
5.1-10 – Nós temos certeza da morada eterna junto ao Pai;
11-21 —Por isso exercemos —no temor de Deus —, como enviados de Cristo, com zelo o ministério apostólico da reconciliação.
Em nossa perícope Paulo, portanto, formula quase que uma espécie de confissão de fé, na qual esmiúça e concretiza a sua fé em relação à sua esperança pela vinda da glória futura, de que falara anteriormente (4.13-18). Logo a seguir, depois de nossa perícope, ele afirma que é devido a esta sua esperança que ele exerce com zelo e dedicação (5.11) o seu ministério apostólico de reconciliação (5.18-20). Nossa perícope, portanto, é uma espécie de aposto dentro da linha de argumentação de Paulo acerca de sua atuação apostólica. Aposto este, no qual ele explicita o conteúdo da esperança escatológica dos cristãos e chama a atenção para as consequências éticas que advêm desta esperança.
II — Estrutura do texto
V. 1-5 -Por outorga de Deus, através da doação de seu Espírito Santo (V. 5) nós cristãos cremos (= sabemos!) que com a morte Deus nos leva para uma nova realidade, uma nova vida.
V.l — A vida neste mundo, determinada pela morte, não tem seu fim na mesma, mas desemboca em nova existência criada por Deus.
V.2-4 – A fé nisto (saber!) desperta em nós o desejo, o anseio de ser revestidos desta nova existência que nos espera, para que o mortal seja absorvido pela vida.
V.5 — Sabemos que nós participamos deste processo porque Deus no-lo garantiu com a dádiva de seu Santo Espírito.
V.6-10 – Por ora ainda não está ao nosso alcance imediato esta nova realidade da vida. Mas pela fé já a antecipamos, e nela assumimos os critérios de vida que Cristo viveu, pois sabemos que devemos prestar contas de nossos atos perante Ele.
V.6-8 – O Espírito Santo nos deixa animados, mesmo vivendo por ora ainda no crer e não no ver! V. 9 — Este crer nos compromete a levar uma vida agradável a Cristo, pela imitação. V. 10 — Este compromisso de vida tem em vista o julgamento de todos os que crêem por Cristo segundo as suas obras.
III — Observações exegético-teológicas
V. l — Paulo inicia a presente perícope com uma afirmação categórica: Sabemos (OIDAMEN). Este saber aqui não tem um sentido meramente cognitivo. Ele tem um sentido mais amplo, no sentido de crer, confiar, estar absolutamente certo. O apóstolo, portanto, nem cogita da possibilidade da inveracidade e irrealidade daquilo que ele diz que sabemos. Trata-se, portanto, no conteúdo deste saber de algo que absolutamente não é controvertido entre ele e os seus leitores. O conteúdo deste saber é ponto pacífico.
Paulo contrapõe aqui a casa terrestre deste tabernáculo ao edifício da parte de Deus, casa não feita por mãos, eterno nos céus. Com a primeira expressão ele designa aquilo que traz em si a morte e a transitoriedade. Há exegetas que aqui pensam apenas no corpo humano mortal (cf. Rm 8.11; 2 Co 5.8) no sentido individual. E de fato o V. 8 de nossa perícope parece sublinhar esta compreensão. Mas a expressão KATALYTHE = desfazer-se, ser desfeito, ser desmontado (passivum divinum?) também poderia referir-se não só à morte individual, mas também a transformação geral da criação na parusia, na vinda do Reino (l Co 15.51ss). Com a segunda expressão (= edifício da parte de Deus) Paulo designa a nova corporalidade (seja individual ou comunitária) que Deus coloca à nossa disposição. Esta nova realidade corporal não carrega em si a morte e a transitoriedade.
Este versículo deixa em aberto a pergunta pelo momento em que sabemos que acontecerá a passagem do desmontar esta barraca terrena e o assumir, o ter o edifício da parte de Deus. Pensa Paulo no momento da morte individual, ou na transformação na parusia?
V. 2ss – A ideia do edifício da parte de Deus Paulo também pode expressar com a ideia de uma veste celestial, com a qual aspiramos ser revestidos. Paulo fala dela quase como que de um sobretudo, que é vestido por cima da veste terrestre. E neste ser revestido com esta veste celeste da parte de Deus, ela por assim dizer consome a “veste terrestre com suas características de morte e transitoriedade. Trata-se de uma ideia incomum. Mas é importante atentar bem para o que Paulo diz aqui: Ele não fala de um despir a veste terrestre, de morte e passageira, para então vestir a veste celeste. Pelo contrário, ele acentua que não queremos ser despidos, mas revestidos, para que o mortal seja absorvido pela vida! Não há a ideia de um corpo mortal, corruptível e passageiro — e portanto desprezível —, que deva ser despido da alma imortal (expressão que não está aqui expressis verbis!), que, uma vez despida deste corpo mortal seja por Deus revestida da veste celestial (corpo da ressurreição!)
Por que Paulo faz esta diferença sutil (ou nem tão sutil assim)? Parece-me que BULTMANN tem razão quando aqui sente uma polémica de Paulo contra a gnose com sua valorização unilateral da fagulha divina dentro de cada ser humano (= alma imortal), e a consequente desvalorização, sim, desprezo da corporalidade com as suas necessidades. Paulo estaria, portanto, com a sua argumentação valorizando a corporalidade, seja ela a corporalidade mortal e passageira, seja ela a da ressurreição.
Paulo continua a sua argumentação dizendo que, devido a este saber do edifício da parte de Deus, ou da habitação celestial, gememos (V. 4), ou aspiramos (V. 2) por ser revestidos desta habitação celestial. Em ambas as oportunidades (V. 2 e V.4) o apóstolo usa o mesmo termo (STENAZEIN), o que lamentavelmente não se mostra nas traduções correntes! Embora ele aqui não faça uma ligação clara com o gemer de toda a criação pela redenção, como em Rm 8.22s, não se pode interpretar este gemer como lamento da alma imortal aprisionada no cárcere do corpo mortal e perecível! Este gemer tem de ser compreendido no contexto de Rm 8.22s. O gemer aqui, assim como o sofrimento e a angústia (BARUMENOI – V. 4 e V. 8) são sinais deste mundo e existência ainda não perfeitos, ainda marcados pela não-vida, mas a caminho da perfeição (não aperfeiçoamento!) dada por Deus.
V. 6ss – Paulo não propõe uma fuga desta casa terrestre, nem um lamento contínuo e desesperado nesta prisão. Pelo contrário: Ele constata que, por causa deste saber, cristãos sempre podem ter bom ânimo (V. 6) e plena confiança (V. 8) (de novo usa-se o mesmo termo em ambos os versículos! – THARRUMEN) – por andarem na fé (PISTIS) e não no que vêem (V. 7) (= esta casa terrestre, marcada pela provisoriedade e pela morte). Porém este ter bom ânimo, ter plena confiança, este andar pela fé e não pelo que vemos — que anseia pela corporalidade, em que a morte é absorvida pela vida (V. 4) e pela comunhão plena com o Senhor (V. 6.8) — não é um estado de espírito (pensamento positivo!) sonhador e alienante e alienado das coisas que acontecem a seu redor! É, muito antes, um viver comprometido e engajado nesta casa terrestre, procurando ser agradável ao Senhor (V. 9). E este ser agradável (EUARESTOS – conf. Rm 12.1) não é, igualmente não é, um termo sentimental, mas sim um termo ético (conf. o comentário de Bultmann, ad locum), que implica na imitação de Cristo na promoção da justiça e da vida plena, estabelecendo sinais do Reino.
A esperança pela vinda do Reino de Deus, pela nova vinda de Cristo para o julgamento de todos conforme o bem ou o mal que tiverem feito (V. 10), pela vida eterna, pelo ser revestido da habitação celestial, enfim, a esperança dos cristãos justamente não toma secundária a nossa vida presente, mas afia a percepção do cristão para a sua responsabilidade do discipulado no aqui e agora!
IV — Escopo
A fé cristã em Deus, que revestirá e absorverá esta nossa existência transitória, marcada pelo sofrimento e pela morte, em via e comunhão eterna com Ele, nos dá firmeza e responsabilidade para:
a) ter consciência da transitoriedade nossa e deste mundo;
b) suportar a dor, a injustiça, o sofrimento e a não-vida, que temos de enfrentar no mundo que nos cerca;
c) assumir uma atuação de discípulos de Cristo que refuta neste mundo a esperança da vida eterna e mostre sinais,'primícias da vida plena aqui e agora.
V — E a prédica
A prédica deve acontecer sempre de acordo com o diálogo que a comunidade ouvinte, a partir de sua realidade, pode estabelecer com o texto. Por isto cada pregador deve, em última instância, decidir responsavelmente como ele tentará fazer este texto dialogar com a sua comunidade ouvinte.
Eu penso que este texto dialoga com o ouvinte sobre dois temas simultaneamente:
eterna.
– a concepção cristã, bíblica do sofrimento, morte, ressurreição e vida
– as consequências desta esperança para a sua vida aqui e agora.
Proponho que o pregador exponha estes dois temas à sua comunidade de acordo com as afirmações que Paulo faz no texto. Janela de entrada poderia ser a pergunta por aquela frase do Credo Apostólico: Creio. .. na ressurreição dos mortos, e na vida eterna.
VI — Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados: Senhor nosso Deus e Pai! Tu nos abriste o caminho para a vida eterna através da vida, morte e ressurreição de teu Filho Jesus Cristo. Através da dádiva do teu Espírito Santo pela Palavra e pelos Sacramentos nos dás o penhor desta vida nova, que provém de ti. No entanto te confessamos que temos sido falhos em viver e tensão entre a esperança que tu nos dás, e a desesperança que esta vida e o mundo nos impõem, e a responsabilidade concreta que tu esperas de nós. Ou temos vivido como se tudo dependesse de nós; como se toda a realidade estivesse encerrada neste mundo concreto que nos cerca. E então nos portamos como se fôssemos donos do mundo e de nós mesmos; esquecemos dos nossos, dos teus pequeninos irmãos. Ou temos vivido como se tudo dependesse só de ti — ficando com os olhos pregados no céu, esquecendo-nos de seguir os passos de teu Filho amado pela terra em que nos colocaste. Senhor, perdoa-nos os nossos pecados de ação e de omissão. Tem piedade de nós, Senhor!
Oração de coleta: Deus, Pai, Filho e Espírito Santo! Cá estamos reunidos em culto para te louvar, agradecer e pedir. Para nos expor a teu Evangelho. Dá-nos a certeza da tua presença entre nós. Atua vigorosamente em cada um de nós com a tua Palavra; inquieta-nos e faze-nos aptos a perceber a tua vontade para conosco, com os teus filhos e com o teu mundo. Em nome de Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. Amém.
Assuntos para intercessão final:
Agradecimento: — pela Palavra que nos chama à fé no Ressurreto;
— pela esperança que Ele nos abre de um horizonte de vida que não se limita a este mundo,
— pela confiança no perdão dos pecados, no amor de Deus, que supera os limites e barreiras da vida e da morte;
Pedidos: — pelo dom do Espírito Santo, que nos dá e reforça a nossa fé;
— pela paciência de suportar o que nos aflige na vida diária (concretizar);
— pela força para nos enfronhar, devido à nossa esperança na ressurreição e na Nova Vida junto ao Pai, de corpo e alma na imitação de Cristo (concretizar propostas específicas de atua¬ção na comunidade).
VII — Bibliografia
– BULTMANN, Rudolf. Der zweite Brief an die Korinther, KEK, Göttinger, 1976.
– LIETZMANN, Hans. An die Korinther I/II, HNT 9, 5a ed. revisada, Tübingen, 1969.
– WENDLAND, Heinz Dietrich. Die Briefe an die Korinther, NTD 7, Göttinger, 1968.
– WINDISCH, Hans. Der zweite Korintherbrief, KEK, 9a ed., Göttingen, 1924.
– D1NKLER, Erich. 2. Korinther 5.1-10, in: Göttinger Predigtmeditationen 59 (1970), p. 438-444.
– GIERUS, Friedrich. 2 Coríntios 5.1-10, in: Proclamar Libertação IX, S. Leopoldo, 1983, p. 295-300.
– KLAAS, Walter. 2. Korinther 5.1-9, in: Herr, tue meine Lippen auf 4, Wuppertal/Barmen, 5a ed. 1965, p. 66-73.
– MERKEL, Friedmann. 2. Korinther 5.1-10, in: Göttinger Predigtmeditationen 59 (1970), p. 444-449.
– SCHRAGE, Wolfgang. 2. Korinther 5.1-10, in: Göttinger Predigtmeditationen, 30 (1976), p. 437-446.
– TRAUB, Hellmut. 2. Korinther 5.1-10, in: Hören und Fragen (ed. Falkenroth/Held), Neukirchen-Vluyn, 1976, p. 234-238.
– VOIGT, Gottfried. Die lebendigen Steine, Göttingen, 1983, p. 436-442.