Prédica: 2 Coríntios 8.9
Autor: Ulrico Sperb
Data Litúrgica: Dia de Natal
Data da Pregação: 25/12/1989
Proclamar Libertação – Volume: XV
Porque vocês conhecem a graça de nosso Senhor Jesus Cristo: por causa de vocês ele se fez pobre, mesmo sendo rico, para que vocês se tornassem ricos através da sua pobreza.
– Para fazer grandes coisas, não é preciso estar acima das pessoas, é necessário estar com elas. (Montesquieu)
– Quem possui o supérfluo, possui bens de outrem. (Agostinho)
– Sabedlo, soberanos y vassalos,
próceres y mendigos:
nadie tendrá derecho a lo supérfluo
mientras alguien carezca
de lo estricto
(Saibam-no, soberanos e vassalos,
próceres e mendigos:
ninguém terá direito ao supérfluo
enquanto alguém careça
do estrito.) . (Salvador Díaz Mirón)
– Se Cristo é a riqueza dos pobres, por que não é a pobreza dos ricos, para ser a irmandade de todos? (Pedro Casaldáliga)
– Somente na pobreza é possível haver solidariedade, na riqueza, quando muito, há cumplicidade.
l — O início do culto
— O canto Ó vinde fiéis (Adeste fïdeles – HPD n? 17) é bom para o começo do Culto de Natal.
— Após o canto o oficiante pode conclamar a todos para uma alegre saudação natalina. Todos se levantam e saúdam as pessoas ao seu redor.
— Leitura do Salmo 72.1-19 em responsório (pode ser lido o texto do Salmo da Bíblia na Linguagem de Hoje).
— Canto Surgem anjos proclamando (HPD n9 20).
— A História de Natal conforme a nossa época:
Naqueles dias o governo decidiu fomentar o crescimento industrial, chamando toda população para as cidades. Este processo de industrialização aconteceu quando o hemisfério ocidental era dominado pelos norte-americanos. E surgiu um grande êxodo rural, uma migração sem precedentes. Todos iam para as cidades industriais à procura de emprego.
Também José saiu do Nordeste, de uma cidade do sertão, e foi para o Sul, para uma cidade da Grande São Paulo, porque ouvira falar que lá havia parentes seus. Nesta cidade tentaria uma nova vida, juntamente com sua esposa Maria que estava grávida. Estando eles ali, aconteceu que chegou a hora do parto. E ela deu à luz o seu primeiro filho, enrolou-o com estopa e o deitou numa carcaça de pneu de uma borracharia, porque não havia lugar para eles na maternidade.
Havia naquele mesmo bairro lixeiros e varredores de rua que faziam seu serviço durante a noite. E uma pessoa bem vestida chegou perto deles e todos ficaram desconfiados. A pessoa, porém, lhes disse:
— Não se assustem! Eu tenho uma coisa interessante para lhes contar. Ê uma coisa até bem feliz! Ê que hoje à noite nasceu uma criança ali na borracharia do Maneca. Vocês podem vê-la enrolada com estopa e deitada numa carcaça de pneu. Mesmo assim ela parece muito feliz e saudável.
E, de repente, apareceram mais pessoas, voltando de uma festa e comentando em voz alta:
— Deus seja louvado que esta criança sobreviveu! Uma criança assim é um sinal de esperança para a humanidade!
Quando as pessoas dobraram a esquina, os lixeiros e as varredoras disseram:
– Vamos ave a borracharia ver o que aconteceu, aquilo que Deus é pra ter feito! Foram correndo e acharam Maria e José e a criança deitada na carcaça de pneu. E vendo-o, divulgaram o que lhes haviam falado a respeito deste menino. Todos os que ouviram o que os lixeiros e as varredoras diziam, ficaram muito admirados. Maria, porém, estava lembrando tudo e pensava bastante naquelas coisas.
Então os lixeiros e as varredoras voltaram ao serviço, cantando alegremente por causa do que tinham visto. E tudo era justamente como a pessoa havia falado.
– Canto Cantai, cristãos, a Deus louvai (HPD n9 14).
II — A prédica
l. Algumas observações exegéticas
Nenhuma riqueza do mundo pode ser comparada com a riqueza, da qual Jesus abdicou para nos salvar.
Cristo tornou-se pobre, ou seja, tornou-se humano e abdicou de sua riqueza divina, para enriquecer as pessoas com as dádivas divinas da salvação (Fp 2.6ss). Com isto a pobreza se torna o marco da missão de Cristo. Ela culmina no sacrifício na cruz. Isto é a graça!
Aquele que torna os outros ricos é o exemplo divino para a ação da comunidade junto aos co-írmãos (vide o contexto). Se a pobreza de Cristo enriquece os coríntios, assim também os ricos coríntios (vers. 7) devem dar e repartir com amor sincero como o de Jesus, para que haja igualdade (vers. 13b). Desta forma a ação de Cristo tem continuidade na ação dos coríntios. O nosso amor só pode ser sincero se fluir do amor de Cristo.
Já no Antigo Testamento Deus é definido como o protetor dos pobres (Ex 22.26; 23.10s; SI 82; 132.15; Ez 22.29; Sf 3.12).
Os pobres foram os prediletos do coração de Cristo. Ele não quis nascer rico por opção. Não quis por preferência. Não quis para facilitar-nos a olhar os pobres com os olhos do Pai celeste, com o coração do Filho celeste, com o espírito do celeste Espírito. Esta preferência de Cristo pelos pobres é tão profunda, que ele leva à identificação além de sua peregrinação histórica. Invade com ela toda a história até nossos dias e também o futuro (Mt 25.3146). A predileção inquestionável, o amor insuportável de Cristo pelos pobres está na cruz.
Os profetas de Deus lutaram com veemência contra a riqueza oriunda da exploração dos pobres. Isto já constatamos no Antigo Testamento: Is 10.Is; Jr 5.4s e 25-31; Ez 22.25-29; Am 2.6ss; 3.10s; 5.7-12; Mq 2.1ss; 3.9ss.
A riqueza divina não pode ser confundida com a riqueza humana. A divina significa a plenitude, a totalidade de vida. A humana significa a escravidão ao deus dinheiro. Quando entramos no Evangelho, procurando o que sentia o coração de Cristo pelos ricos, podemos exclamar: Pobres ricos! Cristo é a advertência do Pai para os ricos. Lucas 6.20-23: Bem-aventurados vós os pobres. . . Lc 6.24-26: Mas ai de vós os ricos!. .. Rico é alguém cujo coração está tão entupido de dinheiro, de apego ao dinheiro, que nem Deus tem chance de entrar. Jesus jamais se identificou com os ricos. Mesmo assim Cristo abriu o coração do Pai celeste para os ricos de coração aberto (Lc 19.1-10). O rico que se despojava de sua riqueza tinha acesso ao Cristo.
Os pobres são os favoritos do Pai e do seu Cristo. Como pessoas e como povo empobrecido, como multidão. Para os ricos a salvação chega apenas por via individual, não por grupos.
Em 2 Co 8.9 o Apóstolo Paulo define a graça de Cristo. Quando queremos transformar alguma coisa, procuramos pessoas influentes, ricas e poderosas. Quando Deus quis salvar o mundo, escolheu pobres, escravos, prostitutas e outros marginalizados. Ao assumir a condição de miserável, Cristo tornou possível a vida total. Vida que ninguém, nem rico, nem pobre pode ter sem ele. Por isso:
— Os ricos precisam viver de um modo mais simples, para que os pobres possam simplesmente viver. (Charles Birch)
Na sua pobreza Cristo é rico em enriquecer nossa vida.
2. Algumas observações realísticas
Todas as religiões e filosofias concordam em que a felicidade não reside nos bens materiais e nas riquezas; contudo é exatamente disto que os comerciais nos meios de comunicação querem nos convencer. Um padrão de vida cada vez mais opulento é o deus do ocidente neste século vinte, e os publicitários são seus profetas.
Os oprimidos são gerados aos milhões no útero da injustiça instituciona¬lizada, no ventre da sociedade iniquamente organizada. A ganância pelo lucro fácil e rápido gera fome, pobreza e miséria. O dinheiro que se tornou patrão nos dita todas as nossas extravagâncias, todas as nossas fraquezas, todos os nossos abusos.
Alguns exemplos para ilustrar e explicar:
— Escrevo esta meditação durante a época de Advento de 1988. A discussão é sobre o aumento (não reajuste) do salário mínimo. Todos (inclusive Jair Meneguelli da CUT) comentam que um aumento substancial dos trabalhado¬res seria catastrófico para a economia. Ninguém fala na diminuição dos lucros dos patrões e dos bancos.
— Em certos lugares da África milhares de pessoas não têm sequer um filtro de água, enquanto que alguns ricos enchem os radiadores de seu automóveis com água mineral, importada da Europa, com o pretexto de mantê-los limpos.
– Conforme a FAO, os alimentos perdidos cada ano nos Estados Unidos correspondem a uma quantidade capaz de alimentar 50 milhões de pessoas. Enquanto isto morrem 40 mil crianças por dia de fome ou de doenças relacionadas com a fome.
— O cereal gasto nos Estados Unidos para engordar o gado daria para alimentar 1,3 bilhões de pessoas.
— Um ano tem 31 milhões e 536 mil segundos. Em cada um destes segundos morre uma pessoa direta ou indiretamente por causa da fome. A causa direta é a total falta de alimentos. As causas indiretas são a subnutrição crónica e as doenças oriundas da ausência de uma alimentação normal. A pobreza sempre vem acompanhada de fatores nocivos à saúde. Este holocausto supera a todas as crueldades cometidas em gerações anteriores. Por que se fala tão pouco dele e tanto dos outros?
3. Algumas observações proféticas
O índice que mede o progresso de um país é o PNB (Produto Nacional Bruto). O historiador Toynbee sugere que deveria ser o IBEP (índice de Bem-Estar Popular).
Se todos aqueles que entulham inutilmente os suntuosos edifícios cheios de gabinetes, fossem reempregados em tarefas realmente úteis para a coletividade, haveria um crescimento económico e um progresso social enorme.
Citando o programa do governo, Julius Nyerere, da Yansânia, diz: Não é o dinheiro, é o povo que está na base do desenvolvimento. O dinheiro, as riquezas que ele representa, são a consequência e não a base do desenvolvimento. As quatro bases do desenvolvimento são: o povo, a terra, uma política justa e um bom governo.
No Natal celebramos com alegria a vinda de nosso Salvador Jesus Cristo. Dizemos que ele veio para nos salvar de nossos pecados. Ideologicamente reduzimos estes pecados a um plano pessoal, sem mencionar sua dimensão social. Afinal de contas, milhões de pessoas morrem de fome por vontade de Deus ou por causa do pecado humano?
Deus se despojou de toda sua riqueza divina, assumiu a condição da pior pobreza humana. Através desta humilhação total de Jesus Cristo, nos é dada a possibilidade de uma vida riquíssima, repleta de sentido, cheia de felicidade. No entanto, apesar de toda nossa ciência e tecnologia, a vida está ficando cada vez mais difícil, perigosa, triste e estragada.
Natal é a grata notícia de que não e' mais preciso fazer sacrifícios para agradar a Deus. No entanto milhões de vidas são sacrificadas ao deus Mamon. Pior ainda: há o sério risco de todo planeta ser sacrificado ao deus Progresso. Uma prédica de Natal não precisa ser trágica e pessimista. Mas também não pode ser positivista e alienante, sob o risco de errar o objetivo que Deus visou com o Natal.
4. Algumas observações evangélicas
Em Jesus Cristo Deus se tornou miserável, para que a miséria humana possa ser superada. Natal significa a esperança de que diminua o índice de mortalidade por causa da fome. Quantas vidas nós podemos salvar daqui para frente? Que passos concretos podemos tomar? Uma das partes mais tristes da história do Natal é a matança das crianças, ordenada por Herodes. Quem são os Herodes de hoje? Para anunciarmos o Evangelho também é preciso denunciar os inimigos do Evangelho.
Os cristãos esperam pela segunda vinda de Jesus Cristo. Quem sabe se ele já não veio, mas foi abortado ou morreu de fome?
Pastores (lixeiros e varredoras) tiveram suas vidas enriquecidas com a visita que fizeram à estrebaria (borracharia). Nosso encontro com o Cristo significa uma chance para tornar nossa vida rica, cheia, repleta de sentido. Voltar-lhe as costas é o mesmo que permanecer no estado miserável deste mundo, pior ainda, é contribuir para a diminuição da qualidade de vida no planeta terra (que é, pelo menos por enquanto, o único ambiente que oferece condições para vivermos). A graça de Deus se mostra na humanidade. A vida só tem graça, quando vivida em simplicidade (não necessidade!).
Jesus se despojou de toda sua riqueza divina, para nos salvar de toda nossa pobreza humana. O rico se torna pobre, para que o pobre se torne rico! Temos que decidir se vamos brincar de Natal ou viver realmente o Natal! Quando Maria deu à luz ao Filho de Deus, toda vida foi divinizada. Isto é por demais valioso para que seja gasto e perdido em futilidades e mediocridades. Neste Natal somos desafiados a redimensionarmos nossa vida a partir dos acontecimentos de Belém há quase dois mil anos. Algumas palavras evangélicas que o texto sugere: solidariedade, repartir, compartilhar, renúncia, esperança, participação. . .
A graça de nosso Senhor Jesus Cristo é tão grande que também neste Natal, nesta última década do século vinte, ele nos quer envolver com sua humildade solidária.
– Canto Seu nome é maravilhoso (HPD n9 235).
III – O final do culto
(Todos se dão as mãos para a oração comunitária.)
Oficiante: Jesus, Cristo pobre, Senhor dos humildes e sofridos! Neste Natal te dizemos nosso muito obrigado porque nos buscas e nos procuras no meio de nossa vida enrolada.
Comunidade: Abre os nossos corações para ti e para os teus!
Oficiante: Há tanta miséria neste mundo que nem sabemos por onde começar a te dizer e a trabalhar. Não precisarias procurar muito para nascer humilde e miserável. Por isso te pedimos por coragem para não calar e por vontade de mudar.
Comunidade: Abre os nossos corações para ti e para os teus!
Oficiante: De uma maneira especial estamos preocupados com as seguintes situações (mencionar fatos locais, regionais, nacionais e mun¬diais).
Comunidade: Abre os nossos corações para ti e para os teus!
Oficiante: O teu Natal, Jesus, foi humilhante, para que os nossos natais pudessem ser alegres e felizes. Pedimos por tua paz e teu amor neste Natal para todas as pessoas, para nossos queridos perto ou longe e para nós.
Comunidade: Abre os nossos corações para ti e para os teus!
Oficiante: Jesus, nosso Cristo! Nossos desejos, nossos fracassos, nossas fraquezas e nossas virtudes colocamos aos pés da manjedoura e da cruz e te pedimos:
Comunidade: Abre os nossos corações para ti e para os teus!
Oficiante: Cristo e Senhor! Tudo que temos a dizer ao teu e nosso Pai
reunimos na tua oração:
Todos: Pai nosso.. .
(A bênção é de Pedro Casaldáliga)
Oficiante:
Dá-nos a tua Paz!
Dá-nos, Senhor, aquela Paz estranha
que brota em plena luta como uma flor de fogo;
que rompe em plena noite
como um canto escondido;
que chega em plena morte
como o beijo esperado.
Dá-nos a Paz dos que caminham sempre,
nus de toda vantagem,
vestidos pelo vento da esperança.
Aquela Paz dos pobres,
vencedores do medo.
Aquela Paz dos livres,
amarrados à vida.
A Paz que se partilha na igualdade,
como a água e a Hóstia.
Aquela Paz do Reino,
que vem vindo,
inviável e certo.
Dá-nos a Paz, a outra Paz, a tua,
Tu que és nossa Paz!
(O Culto ainda pode e deve ser enriquecido com mais conteúdos litúrgicos.)
IV — Bibliografia
– MOHANA, J. Pobres e ricos perante Cristo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1982 (um brasileiro).
– TÉVOÉDJRÉ, A. A pobreza, riqueza dos povos. Petrópolis: Editora Vozes, 1981 (um africano).
– SIDER, R. J. Cristãos ricos em tempos de fome. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984 (um norte-americano).
– WOLF, G. 2 Coríntios 8.1-15. In: Proclamar Libertação. Vol. XIII. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1987, p. 18ss.
– CASALDÁLIGA, P. Na procura do Reino. São Paulo: Editora FTD, 1988.