Prédica: Apocalipse 15.2-4
Autor: Vítor Westhelle
Data Litúrgica: Domingo Cantate
Data da Pregação: 13/05/1990
Proclamar Libertação – Volume: XV
Perto está
E árduo de compreender este Deus.
Mas onde cresce o perigo
Cresce também o que é libertador.
(Patmos de F. Hülderlin)
l — Sobre o gênero e o livro
Visões, imagens, símbolos e metáforas são a matéria das narrativas apocalípticas. O apocalipsismo assume grande importância como forma narrativa da literatura judaica a partir do exílio babilónico, sobretudo no período intertestamentário. Surgiu como resposta a uma crise pela qual passava o profetismo. Suas promessas, vaticínios, juízos e advertências eram lidos tendo como referência as evidências históricas. Frente a estas evidências, frente aos dados que flutuavam na superfície da história, a narrativa profética não achava amiúde correspondência ou corroboração. Em Jeremias, um profeta que assumiu sua vocação como uma sina, esta crise já se anuncia. A aparência dos fatos não confirma o profeta. Então, quando a esperança da libertação e da reconstrução pós-exílica é frustrada e o povo de Israel encara o significado da perda da autonomia nacional, são questionados os ditos proféticos e até mesmo a própria soberania de Deus.
O novo desafio estava colocado. Agora era preciso insistir que, por detrás da máscara das aparências, havia um núcleo histórico que aparecia travestido na superfície dos fatos. A verdade acha-se na profundidade, não na superfície. Isto era preciso revelar. A isto propõe-se o apocalipsismo: revelar a face oculta da história, seu núcleo essencial, para que os que sabem ver vejam quem realmente tem o mando da história. Para este objetivo presta-se o estilo carnavalesco (i. é, que inverte valores e aparências) da narrativa apocalíptica. O propósito é reafirmar o povo em sua fé, assegurar-lhe que a saudade que sente dos eventos libertadores não é nostalgia e sim esperança concreta.
Em uma época de repressão, dominação e decorrente insegurança, a narrativa apocalíptica revela para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir a essência submersa da realidade. Ê preciso mergulhar. Mas isto é tarefa para iniciados, para quem foi batizado na dimensão mais profunda da realidade. Aí se encontra a genialidade do apocalipsismo e o seu enigma. Só quem vive a fé na prática da esperança e luta contra as aparentes evidências possui a chave que lhe permite acesso ao caleidoscópio de imagens e símbolos que aí proliferam. Só a partir da fé de quem está imerso nas lutas da esperança contra todas as esperanças é possível discernir o sentido dos enigmas. Quem flutua e se deixa levar pela espumosa superfície da história nada discerne.
Assim também é o Apocalipse de João, o visionário de Patmos. João de Patmos não só se apropria com estilo e grandeza da narrativa apocalíptica como também lhe dá um cunho propriamente cristão. Cristo é o Cordeiro que por seu sangue já redimiu os seus. Mas esta redenção, assim como a própria glória do crucificado, está oculta sob o seu oposto. João atualiza o significado da cruz no sofrimento da Igreja de seu tempo. Ele escreve sob o reinado de Domiciano, imperador romano de 81-96. Domiciano tem o seu nome associado a uma perseguição bastante sofisticada às comunidades cristãs do final do primeiro século. Teve o cuidado de não permitir que os cristãos fossem vistos como mártires e vítimas de uma perseguição impopular. Apenas nos últimos anos de seu governo (93-96) começou a perder as rédeas da situação. Chegou a mandar executar seu primo Flávio, em 95, sob a acusação de ser este irreligioso (ateu!). Na tradição primitiva, Flávio era lembrado como um cristão. A acusação de ateísmo não era estranha aos cristãos. Por sua fé no Deus-humano que venceu o mundo recusavam-se a aclamar Domiciano Senhor e Deus como ele exigia. Tampouco veneravam estátuas e efígies do imperador, que eram alinhadas com representações dos deuses do Olimpo. A forma mais corrente de perseguição era a marginalização económica e social dos que resistiam à divinização de sua autoridade. A eficácia de sua perseguição era garantida por um exército, no qual gozava de popularidade. Não era para menos, Domiciano havia aumentado os soldos de seus guerreiros em 1/3.
Nesta situação viviam as comunidades a quem João dirige seu livro. Externamente, sofriam a pressão e perseguição de um império bestial que, no entanto, parecia simpático e adornado gozando de respeito e admiração (cap. 13!). Internamente, as comunidades viviam a crise de continuidade. Os apóstolos estavam morrendo. A geração que esperava viver o juízo já desaparecia sem assisti-lo. As comunidades perseveravam, mas também já se perguntavam se Deus não havia mudado as regras do jogo, se havia suspendido as promessas.
Aí entra João, demonstrando que as promessas são válidas, mas para verificá-las é preciso abandonar a superficialidade das aparências e mergulhar no sentido profundo da história onde se revelará que a falta de sentido aparente é, na essência, a verdade verdadeira.
II — Sobre o texto e a mensagem
O livro de Apocalipse pode ser dividido em três partes principais. A primeira (caps. 1-3) contém as sete cartas às comunidades. A segunda (caps. 4-11) encerra a promessa do Reino. A terceira parte do livro (caps. 12-22) apresenta o julgamento dos seguidores do dragão, sua besta e o profeta da besta. Nesta última parte encontra-se nosso texto. Seu contexto mais imediato (caps. 15-16) descreve a visão de sete anjos com sete taças contendo as pragas derradeiras que consumarão o juízo e a ira de Deus. O capítulo 15 abre com o anúncio das pragas: Vi também outro sinal grande e maravilhoso no céu: sete anjos com sete pragas, as derradeiras, pois com estas a ira de Deus estará consumada. Então, em uma ruptura notável, a cena muda, e entra o nosso texto:
2 — Vi também como que um mar de vidro misturado com fogo; e os que venceram a besta, a sua imagem e o número de seu nome, postavam-se sobre o mar de vidro e tinham as cítaras de Deus,
3 – cantando o cântico de Moisés, o servo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo:
Grandes e maravilhosas são as tuas obras, ó Senhor Deus Todo-Poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó rei das nações!
4 – Senhor, quem não temeria e não glorificaria o teu nome, pois só tu és santo? Portanto, todas as nações virão e prostrar-se-ão diante de ti, pois teus atos justos se tornaram manifestos.
A cena é simples. Os que venceram a besta, sua imagem e o número de seu nome.(cf. cap. 13) estão perante o trono de Deus. Fazem música com cítaras divinas e cantam. Quem são estes que venceram a besta? A visão de João tem como destinatário o povo cristão reunido em comunidades, um povo de perseguidos que nesta situação persevera. Perseverar significa não se submeter ao poder da besta, quer dizer, do império com os seus ídolos. Perseverança e perseguição são dois lados da mesma moeda. Não há saída mágica. Evitar a perseguição é não perseverar. Ou se aceita o domínio da besta e se incorre em idolatria, ou se segue o Cristo e os valores do Reino (justiça, paz e alegria: Rm 14.17), o que resulta em oposição ao império que encarna a besta.
Para João, o juízo passa por aí. Exige opção. Esta opção é de uma. só vez opção religiosa e opção política. João mesmo sofrera na carne (1.9) as consequências desta opção e, por isto, estava autorizado para revelar que ser perseguido por Cristo não é um evento simplesmente religioso, de quem faz uma opção cúltica diferente. Uma perseguição por Cristo não é nem mesmo uma perseguição a um indivíduo e seus atos. Uma perseguição por Cristo é uma perseguição a pessoas enquanto vivem em comunidades onde já estão presentes os valores do Reino. Perseguição religiosa é a justificação ideológica decorrente do confronto de valores sociais e políticos contraditórios. João nem mesmo escrevia a indivíduos, mas a igrejas, a comunidades que, pela sua maneira de verter o evangelho em vida, eram de fato uma ameaça ao império e sua lógica. O visionário de Patmos quer deixar claro que os fiéis não estão sendo perseguidos por um erro tático, mas por um compromisso fundamental com o evangelho e a vida.
No cristianismo não há mártires de causa própria, não há heróis ou quixotes. Há, sim, perseguidos e martirizados porque representam uma comuni¬dade que já busca e já vive em antecipação o novo que os impérios, de então e de agora, não podem admitir. Não há mártires de causa própria. Há perseguidos e martirizados por causa da vida que o povo organizado busca e já aperitiva, e pela denúncia e rejeição dos poderes e estruturas que se opõem a esta busca.
A este povo perseverante apesar — e, às vezes, vacilante por causa — das tribulações João dirige a palavra com o propósito de alentá-lo na fé. A visão apresentada não é uma projeção futura do destino dos que perseveravam, mas é, sobretudo, um mergulho na realidade profunda do que representa a perseverança. Para explicar isto, eis a imagem: um mar como que de vidro mesclado com fogo. Mar e fogo representam dois elementos da natureza que simbolicamente se-, opõem por seu poder e força e que, mesclados, são símbolos de um poder irresistível em qualquer sentido. O mar é o que engole, cala, subsume, coopta e faz resignar. É o elemento ambiental da besta, seu habitat (l3.1). O fogo é o que consome, é o símbolo da própria tribulação e a forma como a autoridade da besta se manifesta (13.13). Quem persevera, no entanto, não é tragado pelo mar, nem consumido pelo fogo. Permanece sereno, firme sobre o fogo e o mar (isto lembra a caminhada de Jesus sobre o mar, Mc 6.45-52). A esta serenidade refere-se a expressão como que de vidro.
A ideia da serenidade é reforçada pela ação do povo vitorioso. Os que estavam sobre o mar e o fogo tocavam citaras (instrumento que sugere uma base estável para sua execução) e cantavam. Cantavam as maravilhas das obras e a justeza dos caminhos de Deus. Isto tudo sem que esperassem primeiro acabar o fogo e desaparecer o mar. Cantar em meio a inseguranças e tribulações é possível para quem, além das aparências, confia nas obras e nos caminhos de Deus. Paradoxalmente a celebração é possível em cima da luta e do sofrimento. Na resignação e no submetimento tem-se apenas o ópio do ritualismo.
Os cânticos anunciados são o de Moisés e o do Cordeiro. Mas no texto não consta o cântico como o de Moisés (= Miriã, Êx 15.1-21). Aparece apenas um novo cântico, o do Cordeiro. A referência ao cântico de vitória de ÊX 15 planteia intencionalmente o contexto em que também o novo canto é entoado, , anuncia que o novo canto é também um canto de libertação que descreve a vitória do povo de Deus sobre aqueles que o dominam e oprimem. Se outrora se cantava a fidelidade de Deus em guiar o seu povo para a terra da liberdade, agora se canta o poder do sangue do Cordeiro, que manifesta e realiza junto ao povo maravilhosas e inesperadas obras, desvendando caminhos novos.
Há também diferenças entre os dois cantos que são notáveis. O cântico de Êx 15 entende-se como um cântico de ínterim, de deserto, entre o passado que atesta a vitória sobre o Egito e o futuro que vislumbra a terra prometida. Em suma, é um cântico entre Egito e Canaã, entre a terra da escravidão e a terra da liberdade. O novo cântico está no presente. O ínterim não é temporal, mas existencial. O deserto não é o meio geográfico entre o Egito e Canaã. A imagem é a do envidraçado mar mesclado com fogo que está entre o trono (reinado) de Deus e a vida ameaçada e perseguida das comunidades. A libertação começa no meio da opressão. Já aí um cântico novo é cantado, pois quem crê e confia sabe com quem está Deus apesar de todas as aparências. Isto não significa, no entanto, que a dimensão futura desaparece. O futuro é anunciado não como o momento da vingança do povo, mas como o momento em que todas as gentes, não só o povo fiel, reconhecerão a Deus como único Deus, porque então seus atos justos romperão a superfície enganosa da história e se farão manifestos. Entrementes, celebrar é possível e preciso para quem com fé reconhece a atuação de Deus, apesar de tudo que está aí.
Ill — Sobre a atualização e celebração
O texto ê de fácil atualização para comunidades com uma fé militante, ainda que haja vacilação. Difícil é o texto para comunidades em que a celebração cúltica não passa de ritualismo. Lembremos alguns pontos que servem de referência para a correta utilização do texto:
1 — 0 texto pressupõe comunidades concretas que buscam viver a sua fé por graça e, assim, entram em conflito com os poderes da ordem vigente.
2 — 0 texto almeja encorajar, alentar a esperança e instruir o povo para que persevere, pois a história no seu sentido mais profundo não fugiu ao controle de Deus.
3 — A fé é que permite olhar através da máscara da aparente derrota e infâmia para a profundeza do poder de Deus.
4— O texto convida à celebração, apesar de toda a opressão, perseguição e martírio; aliás, até mesmo por causa de tudo que está aí, quem persevera não pode senão celebrar.
Assim, pode-se oferecer logo indicações práticas para a aplicação do texto.
1. Pode-se começar apresentando a realidade no seu nível aparente. A questão orientadora é esta: Por que os que buscam viver a fé concretamente na vida do dia-a-dia acabam sendo vítimas de perseguição, calúnia e morte, enquanto os ímpios e corruptos prosperam? Teria Deus abandonado os seus? Por que os que vivem por graça através da fé resistem às regras que dominam o jogo social, político e económico (prestígio, competição, recompensa, poder, etc.)? Por que os que resistem a estas regras só podem viver por graça através da fé?
2. Ë preciso mostrar que isto que está aí não é simplesmente de ordem social, política e económica mas é de caráter religioso: alicia, coopta, destrói a confiança e persegue os que têm olhos para ver e ouvidos para ouvir o poder atuante de Deus na profundeza da história, que autoriza os que perseveram a não se conformarem com este cosmos (i. é, a ordem aparente da realidade). Esta ordem é governada pela besta, cuja autoridade é exercida em nome do dragão. O dragão é o que combate a fonte da vida (i. é, a mulher, conforme cap. 12). A besta é o instrumento do dragão para combater os descendentes da fonte da vida. Besta é o nome que se dá a pessoas e sistemas que destroem a vida e tudo o que a ela pertence (terra, pão, equidade, saúde, participação, etc.). Pode-se traduzir besta por aquilo que incorpora concretamente os poderes da morte.
3. O povo que vence a besta celebra e canta um cântico novo porque esta vitória está no experimentar agora que todo poder aparente da besta é exercido por medo da verdade mais profunda e irresistível: Deus tem o controle último da história. É por desespero, por conhecer esta verdade que a besta precisa perseguir, encobrir e causar todo dano possível a esta verdade com toda ideologia e idolatria que pode manipular. Por isso, embora a vitória esteja assegurada, é preciso perseverar e resistir para que os danos da batalha não adiem o seu final.
4. Finalmente, é preciso abrir espaço celebrativo para que se possa reafirmar, consolar, animar e encorajar um povo para que, na fé militante, possa cantar a experiência das maravilhosas obras de Deus nos caminhos justos e verdadeiros em que a história libertadora se desenrola.
Cada um destes pontos pode e deve ser enriquecido por testemunhos e narrativas de experiências concretas conhecidas da comunidade.
IV — Subsídios litúrgicos.
1. Confissão dos pecados: (Sugere-se usar HPD 150 responsoriamente.)
Somos um povo, viemos de muitos lugares e nos fazemos comunidade. Trazemos nossas alegrias e nossas dores. Mas nossas faltas também nos acompanham. Carregamos no corpo as manchas o desamor. Temos permitido que o mal desenlace nossos braços. Peçamos a Deus perdão!
Comunidade: HPD 150.1.
Sob os poderes da escuridão e pela tentação do conformismo falhamos como pessoas e como povo chamado a viver o amor, a estender a mão e a ver nos perseguidos e sofridos o rosto irmão de Jesus. Peçamos a Cristo perdão!
Comunidade: HPD 150.2.
Faltou-nos perseverança, o descaso nos dominou, da fé ficamos órfãos; o Espírito da coragem e da luta soprou por outros lados e não soubemos entoar um cântico de libertação. Peçamos a Deus perdão!
Comunidade: HPD 150.3.
Em penitência roguemos a Deus:
Comunidade: HPD 150.4 (Se o hino não for usado, encerrar com: Tem piedade de nós, Senhor!)
2. Salmo e cântico: Salmo 98; HPD 260.
3. Oração de coleta: Tu nos reuniste, Senhor, para cantarmos as maravilhas de tuas obras e caminharmos pelas veredas de tua justiça. Nos deste ouvidos e olhos com os quais ouvimos e vemos que só tu és Deus. Consola, fortalece e ensina agora teu povo a cantar a claridade em meio a tanta escuridão. Vem, Senhor, estar conosco. Amém.
4. Evangelho: Mateus 21.14-17.
5. Oração final: Coletar entre a comunidade assuntos para intercessão em torno dos seguintes pontos: lembrança dos perseguidos por causa da fé; denúncia do sistema bestial que a fé de todos tenta; intercessão por alento, fé e coragem frente ao descaso e conformismo; louvor pelas maravilhas que Deus tem feito em nosso meio.
V — Bibliografia
– FRICK, R. Die Offenbaning des Johannes. Gelsenkirchen-Buer, 1965.
– LOHSE, R. Die Offenbaning des Johannes. NTD 11. Göttingen, 1971.
– MESTERS, C. Apocalipse, A Palavra na Vida 14, 1989, pp. 32-56.