Prédica: Apocalipse 3.1-6
Autor: Nestor Paulo Friedrich
Data Litúrgica: 3º Domingo de Advento
Data da Pregação: 17/12/1989
Proclamar Libertação – Volume: XV
I — Introdução
A literatura apocalíptica desenvolveu-se a partir do 29 século a.C., coincidindo com o período de dominação dos gregos e romanos, cujo sistema e organização econômica é caracterizado pelo modo de produção escravagista. O apocalipsismo é uma leitura deste sistema de dominação que, sob o imperador Domiciano, chegou aos extremos. A partir do ano de 27 a.C. aconteceram importantes reformas dentro do império romano, ou seja, houve uma profissionalização do exército, a criação de um sistema fiscal de arrecadação de impostos, a centralização do poder pelo imperador romano e um grande desenvolvimento comercial. Com estas reformas houve prosperidade; inúmeras cidades surgiam e o comércio florescia como nunca. Contudo, esta unidade do império, assentado sobre o poder das armas, não podia encobrir o jugo da dominação imposta pelos romanos.aos povos. Roma explorava as províncias mediante impiedosa tributação, adotando métodos frequentemente bárbaros (Brakemeier, p. 132). A absolutização do poder sob Domiciano dá-se em todos os sentidos, até na religião com o culto exclusivo ao imperador. Quanto mais absolutista um poder, tanto menos espaço há para o que é diferente. O Apocalipse de João é uma denúncia deste sistema absolutista que gera escravidão, pobreza e martírio do povo e a luxúria de uma minoria (cap. 18).
II — As sete Igrejas da Ásia Menor (contexto)
João faz referências a acontecimentos e situações históricas bem concretas! Geralmente trata-se de situações deploráveis (Land, p. 228). Esta situação de miséria, dificuldades, de falta de esperança, perseguição (1.9), prisões (2.10), martírios (2.13; 6.9-11), dificuldades de manter a fé (2.3-4), controle absoluto do Estado, do domínio do comércio e economia (cap. 13), a força da propaganda, o cansaço (2.2), não devem ser minimizados. Sardes está morta (3.1). É uma situação de desespero. Estas comunidades não têm nenhuma perspectiva. O império romano se impõe com força total. Agravante é que na província da Ásia Menor, o culto ao imperador era promovido com zelo especial. Este culto era uma questão de fidelidade política. O mesmo colidiu frontalmente com o cristianismo (Kümmel, p. 614-615).
Esmirna e Filadélfia são comunidades pobres, as únicas avaliadas positivamente. Na carta para Éfeso há indícios de trabalho duro, exaustivo (KÓPOS, v. 2). Nas promessas feitas para as igrejas de Êfeso e Pérgamo, árvore da vida (ver também 22.2) e maná escondido, transparecem problemas de comida. As cidades de Tiatira, Sardes e Laodicéia, pelas informações históricas, têm em comum um intenso comércio ligado à tinturaria e à tecelagem. Lídia, comerciante de púrpura, é de Tiatira (Atos 16.14). Em Sardes os cidadãos viviam principalmente do beneficiamento da lã. A arte de tingir a lã foi inventada em Sardes. Sardes também ocupa uma posição estrategicamente importante, pois lá está localizada uma rota comercial. .Que o comércio era intenso e que gerava riqueza fica claro na carta para Laodicéia. Palavras como comprar, ouro, colírio deixam transparecer isto (3.18). Esta intensa atividade econômica, contudo, trazia grandes dificuldades para os cristãos. O comércio era atividade exclusiva dos adoradores da besta. Só pode comprar ou vender aquele que tem a marca, o nome da besta, ou o número do seu nome (13.16). O absolutismo de Domiciano se estende até ao mundo do trabalho.
Temos, portanto, de um lado, o poder do dragão, que domina, persegue e exige adoração exclusiva, e, por outro lado, os cristãos que não vêem perspectivas, estão cansados e se perguntam até quando? (6.10). A dominação de Domiciano não deixou alternativa para os cristãos; ou trabalham e prestam culto ao imperador ou são perseguidos. O Apocalipse é uma mensagem para dentro desta realidade de morte, é um chamado à resistência, à luta para não ser absorvido pelo sistema.
III – O texto
V. l — Cristo se apresenta como aquele que tem os sete espíritos de Deus e as sete estrelas. Em cada carta é retomada uma destas características que, em 1.9-20, culminam com as palavras: Não temas! Aquele que fala é o que detém todo o poder e que já venceu os atuais perseguidores pela ressurreição na páscoa.
Ao contrário das outras cartas, esta inicia denunciando uma grave situação; a Igreja está morta, só tem aparência de viva. A expressão as tuas obras é de difícil solução; há apenas hipóteses. Nas outras cartas onde a palavra obras aparece, há uma referência, uma pista (2.2; 2.19; 3.8; 3.15-17). Em nosso texto, a única pista está no versículo 4. que fala em tingir as vestes. A palavra grega ERGA, além de obra, também tem a conotação de trabalho, ocupação. Penso que isto pode ser uma possibilidade em nosso texto, levando-se em conta a relevância que a manufatura de lã e o comércio tinham naquela região. Se isto é verdade, então os cristãos se encontram numa situação extremamente difícil. Ou adoram a besta e assumem a ideologia do império ou resistem. Apocalipse 18 dá uma ideia da importância do comércio. Ao falar da destruição de Babilônia, destaca a queda e destruição também do comércio (18.11-20).
Os cristãos de Sardes não tinham muitas alternativas. O sistema se impôs, e o curvar-se ao império é caracterizado como um tingir, manchar as vestiduras. Há uma perda de identidade; a vestidura já não é mais branca, é colorida (v. 4). Por isso a comunidade é dada como morta, já não lembra do que recebeu e ouviu (v. 3). Outros comentários vêem nas obras uma referência ao fato de a comunidade ter-se tornado ativista e superficial.
V. 2-3 – Em ambos os versículos a comunidade é chamada a ser vigilante, a redescobrir a sua verdadeira identidade. A palavra GREGOREIN, que significa vigiar, guardar, tem conotação militar. João chama esta comunidade para a luta, à resistência. É na comunidade que o primeiro passo no sentido de resistir ao dragão deve ser dado. Ela é o foco da resistência.
V. 4 – A palavra MOLYNEIN, geralmente é traduzida por manchar ou contaminar, mas também significa tingir. Esta era a especialidade de Sardes. A roupa tingida é contraposta à roupa branca. Há alguns que ainda não se contaminaram. Nem tudo está perdido em Sardes, há um pequeno grupo que não se deixou colorir. Há esperança, Deus vai vencer o dragão. É questão de tempo, por isto é importante vigiar, arrepender-se, exercitar a resistência junto com os irmãos na fé, na comunidade.
V. 5-6 — O NIKON, aquele que vencer a batalha (novamente linguagem com conotação militar) será inscrito no livro da vida, seu nome será confessado diante de Deus e dos anjos. Esta promessa mostra o quanto no projeto de Apocalipse a comunidade era importante. Aquele que vencer tem a promessa da vida, de ser parte do povo de Deus. A palavra final aponta para a responsabilidade do ouvinte.
IV — Meditação
A ação do dragão, do sistema romano, sobre as comunidades foi implacável, semelhante a um copo que é emborcado sobre uma vela acesa. Num primeiro instante a chama resiste, mas, na medida que o tempo passa, ela vai apagando até morrer. O copo e a vela caracterizam a situação vivida pelos cristãos na Ásia Menor. O sistema de dominação envolveu as comunidades e não houve lugar onde sua ação não fosse sentida. Humanamente falando, não havia outra alternativa a não ser acomodar-se sob o império do dragão. Domiciano quer escravos fiéis, escravos que lhe prestem culto. Este contexto das comunidades, também de Sardes, não deve ser minimizado. Aquelas comunidades carregam a sua cruz como fruto de sua oposição ao dragão.
Na carta à Igreja de Sardes não transparece uma proposta clara de luta ou transformação desta realidade como a gente talvez gostaria. Neste sentido o texto é bastante sóbrio, qualquer atitude leviana contra o dragão seria suicídio. A proposta que transparece em nosso texto se caracteriza por uma postura ativa de vigilância, de não se deixar tingir, colorir pelo sistema, e por fortalecimento da comunidade. Esta não deve perder a sua identidade, deve lembrar-se do que recebeu e ouviu (v. 3). Na comunidade o reinar de Deus deve ser reconhecido (Brakemeier, p. 99). Isto de forma alguma significa resignação ou entreguismo.
Ao fazermos a atualização do texto, deveríamos ter o cuidado de não entrarmos numa discussão moralista sobre obras ou atividades como festas e similares. Também o trabalho e a consequente submissão ao imperador não é mais uma realidade hoje, as relações são outras. Porém, tanto o sistema de Domiciano quanto o capitalista de hoje têm objetivos comuns; ambos querem subjugar, escravizar, sufocar. Sua ideologia é tão marcante que penetra no íntimo de nosso ser e molda nossa maneira de viver e conviver. Nos faz competir, o que impede a comunhão e a organização como forma de luta, resistência e transformação da sociedade. Isto destrói a comunidade cristã, transformando a Igreja em mera prestadora de serviços e não em instrumento a serviço de Deus no inundo. Três exemplos desta realidade:
1. No ano de 1980, assessores de Reagan elaboraram o documento de Santa Fé onde, dentre as muitas propostas para a América Latina, uma dizia que a política exterior dos EUA deve enfrentar a Teologia da Libertação (TL), porque as forças marxistas-leninistas utilizaram a Igreja como uma arma política contra a propriedade privada e o sistema capitalista de produção. Agora, sob o governo Bush, surge o documento Santa Fé II, intitulado Uma estratégia para a América Latina nos anos 90. Conforme o documento, a TL é encarada como uma doutrina política disfarçada de crença religiosa. A releitura feita pela TL seria uma ofensiva cultural marxista. Haveria uma verdadeira indústria da conscientização que deveria ser atacada com decisão pela administração Bush (Beto, p. 9). Domiciano deve ter dito a mesma coisa!
2. A linguagem usada em nossas comunidades é típica do mundo capitalista, dos negócios: sócio, pagamento, direito, pagar multa.
3. Vivemos a época que antecede o Natal e é aí que mais claramente percebemos o quanto o sistema capitalista já nos absorveu. Em todos os estudos bíblicos que dirigi nesta época sempre se levantava a questão de como nos deixamos levar pela onda consumista. A coisa é tão descarada que até o menino Jesus acaba sendo usado como garoto-propaganda.
Se, no tempo de João, a Igreja não tinha força para influir na história, ela, apesar de tudo isto, desempenhou o seu papel histórico. Ela venceu por sua vigilância e fé, na certeza de que o Deus que venceu a morte é também o Senhor da história e vencerá o dragão. Hoje, porém, a palavra de Deus pede da Igreja uma postura que vá além da resistência, que tenha uma postura transformadora. O Apocalipse não nos dá elementos para deixarmos o mundo largado a um destino cego. Deus é Senhor sobre este mundo. Se esta é a nossa confissão, nossa postura também não será de deixar tudo como está. Deus não quer a morte, quer a vida; e é na busca e luta pela vida, pela liberdade, que a Igreja encontra a sua verdadeira identidade. Esta é a identidade que a Igreja recebe de Cristo: ela é promotora de vida que brota da morte, da luta, do sofrimento. Ela vive da esperança da ressurreição, da certeza da presença do Deus vivo que diz: Não temas!
Proposta para uma reflexão em grupo e posterior elaboração de prédica:
A. Fazer a experiência da vela com o copo! Conversar com o grupo sobre o que viram.
B. Leitura do texto.
C. Reflexão a partir das seguintes perguntas:
1. O que sufoca e mata a vida das pessoas hoje? Qual é a origem, o copo que provoca isto?
2. Qual tem sido a nossa postura diante das forças que geram a morte?
3. Onde podemos buscar forças para reagir (v. 3)?
4. Cristo chama à vigilância, luta. Como isto acontece?
5. Como podemos entender o v. 6? O que ele diz para nós nesta época de Advento?
V — Bibliografia
– Atas do Curso Intensivo de Bíblia do CEBI.1989. Tema: Apocalipse (Assessores: M. Schwantes e C. Mesters).
– BETO, F. Santa Fé II: Bush e a América Latina. In: AGEN (Agência Ecumênica de Notícias) de 09 de fevereiro de 1989, São Paulo, 1989.
– BRAKEMEIER, G. Reino de Deus e Esperança Apocalíptica. São Leopoldo, 1984.
– FLORENZANO, M. B. O mundo antigo: economia e sociedade.7a ed. In: Tudo é História — 39. São Paulo, 1986.
– KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo, 1982.
-MESTERS, C. Esperança de um povo que luta. São Paulo, s. d.
– OLIVEIRA, C. R. História do Trabalho. In: Série Princípios. São Paulo, 1987.
– SAND, A. A questão do lugar vivencial dos textos apocalípticos do Novo Testamento. In: Apocalipsismo. São Leopoldo, 1983.
– RIENECKER, F./ROGERS, Chave Linguística do Novo Testamento Grego. São Paulo, 1988.
– SCHAEFER, D./STRECK, E. Meditações sobre Apocalipse 3.1-6. In: Proclamar Libertação vol. IX. São Leopoldo, 1983.