Prédica: Filipenses 3.12-13
Autor: Martin Dreher
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/1990
Proclamar Libertação – Volume: XV
l — Sugestão de tradução
V. 12: Por isso, amados meus,
— como sempre fostes obedientes —
não só como quando venho,
porém ainda muito mais agora, quando estou distante,
com temor e tremor
agi de acordo com a vossa própria salvação,
V. 13: pois é Deus quem efetua em vós
tanto o querer quanto o realizar para a (sua) boa vontade.
II — O texto e seu contexto
À semelhança de outras cartas, temos de 1.27-2.18, após a parte temática, na qual Paulo relata sua situação, passagem contendo exortações e admoestações, relacionadas com a conduta dos leitores da carta. Qual a sua finalidade? Paulo quer fortalecer a comunidade que busca ter uma conduta compatível com a dádiva contida na salvação que veio a nós em Cristo. A comunidade está sendo ameaçada de fora (1.27), há discórdias em seu seio (2.2). Mesmo assim, a comunidade não causa preocupação ao apóstolo. Confia nela, pois sabe que até aqui testemunhou sua fé. Quer fortalecê-la em suas atitudes. Paulo fala da luta conjunta em prol do evangelho (Barth) (1.27-30), apresenta exortação à concórdia e ao desprendimento na conduta (idem) (2.1-4), lembrando o centro da fé, Jesus Cristo e sua obra, seu caminho e sua conduta, seu rebaixamento, seu martírio (2.5-11). A confissão do que aconteceu em Cristo leva a novas exortações (2.12-18), entre as quais se encontram as palavras de nosso texto. A pregação vai ter que considerar esse contexto: a exortação brota da pregação do que aconteceu em Cristo.
III – O texto
V. 12: A formulação por isso é conclusão do que foi dito em 2.5-11 e reporta-se às exortações de 1.27-2.4. Em Jesus Cristo temos a manifestação da obediência divina, que provoca a virada da salvação. Quando Deus se rebaixa, abre-se perspectiva de vida e é possibilitada a obediência cristã. Pertencentes à salvação que se tornou realidade em Cristo, os filipenses são chamados a viver de acordo com o que segue.
Como é vivida a obediência no discipulado ao obediente? Segundo o texto, a obediência é vivida quando os filipenses vivem de acordo com a sua própria salvação, em temor e tremor. A formulação de Almeida e de outras traduções: desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor, provoca uma série de perguntas de ordem dogmática. Não estaria a formulação contrariando a doutrina paulina da justificação? Seria pelagiana, ou semipelagiana? Estaria querendo, caso tomarmos o dito no v. 13 (pois é Deus que efetua em vós tanto o querer quanto o realizar…), dizer: Deus age, sem dúvida, mas vocês têm que dar a contribuição de vocês!!! ou: Esforcem-se que no final Deus vai fazer a parte dele! Seria, portanto, sinergismo o que Paulo está pregando. Teríamos aqui o Paulo de Filipenses apondo-se ao Paulo de Gálatas? Nossa passagem seria a fundamentação da justiça por obras.
V. 13: Uma avaliação do v. 13, porém, nos mostra a primazia deste sobre o anterior, Deus é quem efetua tudo. Por isso, deveis fazer tudo. Por isso, podeis fazer tudo. Porque Deus fez tudo, porque ele atuou na comunidade, é impossível que ela cruze os braços, seja negligente e acomodada. Aliás, por ter experimentado a graça, ela deve ficar numa intranquilidade benéfica (Barth), para não cair fora da graça, mas seguir no discipulado daquele que a agraciou. Isso é o que querem expressar as palavras temor e tremor: não dispomos de graça; podemos, antes, cair dela, sendo arrogantes ou acomodados. O temor faz parte da fé. (Tu, porém, mediante a fé estás firme. Não te ensoberbeças, mas teme. Rm 11.20). A graça de Deus não é algo natural, é dádiva. Por isso, a fé sabe que Deus tudo efetua em nós para a sua boa vontade. O fazermos a vontade de Deus é graça.
Traduzi, no V. 12, o verbo KATERGAZOMAI por agi de acordo com, por julgá-lo mais aproximado daquilo que o verbo quer expressar. O desenvolvimentismo contido na tradução de Almeida (desenvolvei), o sinergis¬mo da tradução de Taizé, da Bíblia Vozes e da Bíblia na Linguagem de Hoje (!!!) (trabalhai para a vossa salvação ou para completarem a salvação de vocês) é tomado da Vulgata (operamini – Taizé e Vozes) ou não tem similares (Bíblia na Linguagem de Hoje). Comblin reproduz as intenções do verbo e de Paulo ao traduzir: continuem agindo de acordo com a salvação que é sua. Alio-me a ele.
Paulo conclama, pois, a comunidade a seguir no discipulado 'do Jesus obediente, que se esvaziou, assumindo a condição humana, — e a, em fé, agir para a realização da boa vontade de Deus. Deus é quem conduzirá a comunidade em seu agir.
Qual é essa boa vontade? Aqui é necessário que lembremos a situação de martírio, na qual se encontra a comunidade e que é iluminada pelo salmo que precedeu nosso texto, no qual se falou da vida e da morte de Jesus Cristo. Esse salmo é o salmo do cumprimento da boa vontade (EUDOKIA) de Deus no martírio de Cristo. A comunidade é chamada a, no discipulado obediente, viver a vontade de Deus expressa no martírio de Cristo. Usando palavras de Lutero, a comunidade é chamada a se tornar um Cristo para os outros, assim como Jesus se tornou um Cristo para a comunidade.
IV — O texto e o dia de sua pregação
O texto foi escolhido para ser pregado no Dia da Reforma. Agora, comemorar a data como dia da autojustificação da Igreja da Reforma é o que de mais errado pode acontecer. Diante dos acontecimentos da história da Igreja e daquilo que aconteceu na Reforma, só podemos comemorar a data com temor e tremor. A Reforma não pode ser entendida a partir de Lutero! Esse é um dos principais erros de muitas biografias de Lutero: A fé dos cristãos luteranos não pode ser deduzida de Lutero. Lutero só tem valor para nós, enquanto aponta para o centro, para o evangelho de Jesus Cristo. É aí que surge a nova obediência. Dia da Reforma tem que ser comemorado, quando estou distante (não apontando nem para Paulo, nem para Lutero!), com temor e tremor. Quem quer salvação não olhe para Lutero, mas para Cristo, no qual vivemos e morremos, agimos e atuamos.
V — Para meditar
No pedestal do retábulo fixado sobre o altar da igreja da cidade de Wittenberg há uma pintura de Lucas Cranach Pai, na qual se vê Lutero, à direita, no púlpito, à esquerda a comunidade e, no centro, o Cristo crucificado. Lutero aponta para Cristo com o dedo indicador. A comunidade fixa seus olhos no Crucificado. Temos aqui toda a atenção voltada para o centro da Reforma luterana.
No centro da vida crista está o Crucificado. Paulo não o sabe diferente; em nada diferente foi o acento da Reforma. O hino de Lutero, cristãos, alegres jubilai, mais do que uma autobiografia, aponta para esse centro, ao reproduzir as palavras de Paulo em Fp 2.5-11. A décima estrofe tira algumas consequências da mensagem de Filipenses, quando diz:
Tudo o que fiz e que ensinei
também o faze e ensina!
Farei crescer a minha grei
por minha luz divina.
A luz dos homens é falaz,
enganadora é sua paz.
Confia em mim somente!
Was ich getan hab und gelehrt,
das sollst du tun und lehren,
damit das Reich Gotts werd gemehrt
zu Lob und seinen Ehren;
und hüt dich vor der Menschen Satz,
davon verdirbt der edle Schatz;
das lass ich dir zu Letze.
Infelizmente, na tradução não se observou que, no original alemão, Lutero, no terceiro verso, escreve: para que o Reino de Deus aumente para o seu louvor e glória. A tradução portuguesa troca o Reino pela Igreja, o que não deixa de ser problemático. Através da ação e do ensino cristãos, no discipulado do Crucificado, o Reino é aumentado, segundo Lutero.
Feita essa observação necessária, quero lembrar que assim como a décima estrofe tira consequências do evento crístico, assim também o faz Paulo em nosso texto. Nosso texto não pode ser pregado sem que tenhamos em nossos ouvidos o hino de Fp 2.5-11. O por isso inicial o está a exigir. A décima estrofe do hino de Lutero não pode ser cantada sem as anteriores. Em Fp 2.5, Paulo exorta a comunidade tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus e lembra-a de que não vive para si, nem a partir de si mesma, mas em Cristo. Ele ê quem a envolve, quem a suporta, ela o respira, todo o seu pensar e agir é determinado por ele. Nela não podem existir discórdia e discussões, pois está em Cristo (Fp 2.1-4). É necessário que o que nele aconteceu sirva de exemplo para a comunidade. Não procurou os seus interesses, esvaziou e assumiu a forma de escravo. Em humilhação extrema, humilhou-se até a morte na cruz (v. 6-8). Nesse âmbito de Cristo, a comunidade está convidada a se mover. Paulo até chega a dizer que ela sempre se moveu nesse âmbito (como sempre, fostes obedientes,, v. 12). Na comunidade de Filipos há obediência de Cristo (v. 8). Não é um louvor qualquer que está sendo feito, pois a comunidade é comunidade em situação de martírio. Sabe, também, que pode cair de Cristo, mas tem muita confiança por se saber participante da graça (1.7).
E é então que vem a admoestação: Com temor e tremor agi de acendo com a vossa própria salvação. Comunidade que vive a partir do centro, a pai In de Jesus Cristo, age no mundo, sabendo que sua atuação depende única e exclusivamente da atuação de Deus. Essa dependência: agir por causa de Cristo – agir dependendo da ação de Deus, livra de falsos ativismos e liberta para a ação de Deus, reconhecendo o senhorio de Deus. Uma das acusações feitas a Lutero logo nos primórdios do movimento reformatório foi a de que a doutrina da justificação imobilizaria o cristão. O justificado seria levado ao quietismo. Em resposta, Lutero elaborou, em 1520, o Sermão das Boas Obras. Aqui e em outras obras (p. ex. Da Liberdade Cristã) vai afirmar que não são as boas obras que fazem o bom cristão, mas que o bom cristão faz boas obras. Voltando-se contra a teologia medieval que punha o alvo da ética cristã no céu, Lutero vai colocar o alvo da ética crista' na terra. Antes, o cristão desesperado esforçava-se para conquistar os céus através de seu agir. Agora — descoberto o centro do evangelho, o qual nos anuncia que Deus se esvaziou em Cristo, vindo ao nosso encontro e assumindo nosso lugar para que nós tivéssemos tudo o que é dele, enquanto que ele assumia nossa culpa (troca maravilhosa!) — o alvo da ética se inverte: é a terra o alvo de nossa ação. Temos o céu dado de presente em Cristo. Seguindo o Cristo obediente que vem à terra, o cristão se volta para a terra, buscando preservar a boa criação de Deus.
Existe uma palavra apócrifa .de Lutero, segundo a qual o reformador teria dito que, se soubesse que o fim dos tempos viria amanhã, pagaria hoje suas dívidas e plantaria uma macieira. A palavra é peculiar e não encontra muita ressonância em nossos dias, pois parece representar duas atividades sem sentido: pagar dívidas e plantar árvores. Para Lutero, porém, deixar de agir assim é entregar, na antevéspera da consumação dos tempos, a boa criação de Deus ao diabo. É deixar de lado o mandato cristão, é deixar de lado o alvo da ética cristã: a preservação da criação divina, para o que ele foi chamado em Cristo. Ë mais: é negar o que Deus fez por nós em Cristo (Fp 2.5-11). Comunidade cristã, porém, age de acordo com a sua salvação. Agindo de acordo com a sua salvação, a comunidade luta implacavelmente contra Satanás, que não quer permitir que o Reino de Deus venha. Quem traz o Reino é Deus, quem luta com Satanás é o cristão.
Como é, no entanto, que se dá a ação cristã a partir do que Deus fez em Cristo? Ela se dá com temor e tremor. Que significa isso? Nada mais, nada menos que o grito de Lutero: Deixai Deus ser Deus!, nada mais, nada menos que o l? mandamento. Lembro que na explicação do 19 mandamento, Lutero vai dizer: Devemos temer e amar a Deus e confiar nele acima de todas as coisas. O cristão que age com temor e tremor sabe do que Deus fez em Cristo: sabe que a sua salvação já está feita! O cristão que age com temor e tremor sabe de sua vocação: preservar a boa criação de Deus, lutando contra Satanás (leia-se Fp 2.14ss)! O cristão que age com temor e tremor sabe que em sua salvação, em seu agir é carregado pelo amor de Deus, no qual pode confiar.
VI —Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus, nestes dias rememoramos a reforma de tua Igreja. Ouvimos o anúncio de teu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo: O tempo está cumprido, o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no evangelho! Permite que ao comemorarmos, encontremos caminho para esse arrependimento, para que reconheçamos e confessemos onde erramos, onde nos omitimos em relação a tua obra da unidade cristã. Abre os nossos olhos, mostra-nos novos rumos e aceita nossa confissão penitente, a fim de que possamos transformar-nos em mensageiros de teu evangelho. Perdoa-nos nossa culpa. Amém.
2. Oração de coleta: Todo-poderoso, eterno Deus, nós te pedimos: Sê com teu Espírito Santo entre nós. Desperta nossos corações para que recebamos tua palavra. Desperta nossas consciências para que ouçamos tua vontade. Faze de nós pessoas que anunciam tua glória e que levam teu nome ao mundo. Amém.
3. Oração final: Pai e Senhor, teu mundo tem muitas rachaduras e feridas. Tu nô-lo deste intacto; nós seres humanos não entendemos tua incumbência e, agora, sentimos as consequências das guerras, dos medos e solidões, os desnorteamentos e desesperos. O mundo tem muitas rachaduras e feridas, e em todos os lugares seres humanos buscam por esperança, pão e amor, aqui em nosso país e fora, em outros continentes.
Permite que tua Igreja seja mensageira de auxilio às crianças com disfunções, às vítimas da sociedade industrial, aos solitários, idosos e doentes, aos sem-paz e aos que estão em perigo, aos famintos e esperançosos. Permite que também em nossa comunidade surjam novas forças e ideias, para que nós mesmos possamos participar, nos ofereçamos, encontremos caminhos para a diaconia e apoiemos suas obras. Senhor, nós te pedimos pelo teu Espírito Santo, por intermédio de Jesus Cristo, teu Filho, ao qual seguimos. Amém.
VII – Bibliografia
– BARTH, G. A Carta aos Filipenses. São Leopoldo, 1983.
– COMBLIN, J. Epistola aos Filipenses. Petrópolis, 1985.
– LOHMEYER, E. Der Brief an die Philipper. In: Kritisch-Exegetischer Kommentar über das Neue Testament. 13. ed. Göttingen, 1964.