Prédica: Isaías 52.13-53.12
Autor: João Artur Müller da Silva
Data Litúrgica: Sexta-Feira Santa
Data da Pregação: 13/04/1990
Proclamar Libertação – Volume: XV
I — Uma palavra inicial
Acusação. Julgamento. Condenação. Tortura. Morte. Por estas situações passa o caminho da Paixão de Jesus Cristo. Jerusalém, na Judéia, é a cidade que testemunha os fatos que culminaram com a morte de Jesus na cruz. Esta história é conhecida por muita gente. E hoje ainda é representada no cinema e no teatro. Ela nos faz pensar sobre nossas atitudes e maneiras de viver a fé cristã no dia-a-dia. Já é famosa a representação que se faz em Nova Jerusalém, em Pernambuco, da história da Paixão de Cristo. O nordeste brasileiro é o palco da reconstrução parcial da cidade de Jerusalém como era no tempo de Jesus. Nova Jerusalém, com seus setenta mil metros quadrados, é considerada o maior palco de teatro ao ar livre do mundo. A Paixão de Cristo é apresentada como um espetáculo. Comovente. Artístico. Cultural. Religioso. Mas, os caminhos da Paixão de Cristo não passam somente pelo palco de Nova Jerusalém. Os caminhos da Paixão de Cristo passam, principalmente, pelos lugares mais miseráveis deste nosso país, desta nossa América Latina sofrida e explorada. Onde há conflitos por mais vida, por respeito ao ser humano, por dignidade, por justiça, lá se encontra o palco da Paixão de Jesus Cristo.
O Quarto Canto do Servo de Deus, redigido pelo profeta Isaías, nos ajudará a preparar a prédica para a Sexta-feira Santa. É um texto difícil, forte e impregnado de um testemunho vigoroso, profético e evangélico.
II – O texto
Cada Bíblia oferece uma versão diferente acerca da mesma perícope. Fidelidade ao texto original e clareza redacional são elementos de orientação nas diferentes leituras. Inicialmente li Isaías em A Bíblia de Jerusalém (nova edição, revista), 1985. Depois, fui ler em A Bíblia Sagrada — Tradução na linguagem de hoje, 1988. E também tomei o tempo para ler em A Bíblia Sagrada — Traduzida por João Ferreira de Almeida, edição revista e corrigida, lançada pela Editora Vida, 1981. Durante a leitura de comentários bíblicos, encontrei uma versão da perícope que muito me agradou. Ela é mais dinâmica, atual e de fácil compreensão. Diante disso, tomo a liberdade de compartilhar com você, leitor(a), a versão de Isaías 52.11-13; 53,1-12 redigida por Carlos Mesters. No entanto, caso você não se agradar dela, recomendo, então, a leitura da versão que A Bíblia Sagrada — Tradução na linguagem de hoje — nos oferece. Para os(as) ouvintes da prédica o texto deve ser de fácil audição e compreensão. Recomendo que o texto de Isaías seja xerografado ou mimeografado para que o pessoal da comunidade possa acompanhar a leitura.
4º. Canto do Servo
Isaías 52.13-15; 53.1-12
52
13 — Eis o meu servo Ele vai ter êxito
Vai crescer e subir, e será glorificado.
14 — Assim como muitos ficaram
horrorizados ao vê-lo desfigurado
sem aparência de gente,
e sem um mínimo de condição humana,
15 — assim, muitos povos vão ficar assombrados, reis vão perder a fala, ao verem uma coisa que não dá nem para contar, ao presenciarem algo que nunca se viu acontecer
53
1 – Quem vai poder acreditar
na notícia que vamos transmitir?
A favor de quem vai ser revelada
a obra que o braço do Senhor realizou?
2 – Ele cresceu diante de Deus
Como uma destas plantas secas lá do sertão.
Não tinha graça, nem beleza
para a gente ficar olhando para ele.
Não era atraente para a gente poder gostar dele.
3 – Era desprezado,
ninguém gostava de tratar com ele.
Homem das dores, acostumado a sofrer
A gente desviava o rosto
para não vê-lo,
deixava-o de lado e não fazia caso dele.
4 — Mas eram nossas as dores
que ele carregava,
nossos os sofrimentos que ele suportava
E nós o considerávamos como um leproso,
ferido por Deus, humilhado por ele.
5 — Na realidade,
ele estava sendo castigado
por nossos crimes,
e esmagado por nossas faltas.
O castigo que nos traz a paz
caiu sobre ele
e nas suas chagas encontramos a nossa cura
6 — Todos nós andávamos desgarrados
como ovelhas
cada qual seguindo o seu caminho,
e o Senhor carregou sobre ele os crimes de todos nós
7 — Maltratado, ele resignou-se, não abria a boca.
Como um cordeiro que se deixa levar
ao matadouro,
como uma ovelha que se corta a lã,
assim ele ficava mudo,
e não abria a boca.
8 — Sem defesa e sem julgamento,
foi levado embora.
Não havia ninguém para defendê-lo.
Sim, ele foi arrancado do mundo
dos vivos,
foi ferido por causa dos crimes
do seu povo.
9 – Foi enterrado junto com os criminosos,
recebeu sepultura entre os malfeitores,
ele, que nunca cometeu crime algum
e que nunca disse uma só mentira
10- Oh, Senhor
Que o teu servo,
quebrado pelo sofrimento,
possa agradar-te
Aceita a sua vida
como sacrifício de expiação
Que ele possa ver os seus descendentes
e ter longa vida
Que o teu Projeto
se realize por meio dele
11 – Por ter pago como preço a sua própria vida,
ele verá os seus descendentes e terá vida plena.
E na medida em que for reconhecido como justo,
meu servo irá trazer a justiça para muitos,
pois tomou sobre si as faltas que eles cometeram.
12 — Vou dar a ele as multidões como herança,
e receberá os povos como prémio,
pois expôs a sua vida até a morte
e se deixou colocar entre os criminosos;
tomou sobre si os pecados de muitos
e intercedeu pelos culpados
(Versão cf. Carlos Mesters – A Missão do Povo que Sofre – Vozes/CEBI-1981)
l. Sobre a perícope
Isaías 52.13-15;53.1-12 insere-se no conjunto de textos atribuídos ao Dêutero-Isaías. Os escritos deste autor anónimo, também denominado de Isaías Júnior por Carlos Mesters, encontram-se em Is 40 até 55. A época de atuação deste profeta é o tempo do exílio (por volta de 540). Conforme os historiadores, o profeta Isaías viveu duzentos anos antes do exílio da Babilônia (por volta de 740). Uma comparação mais demorada poderá mostrar as diferenças no estilo dos dois profetas. A hipótese de que o autor dos capítulos 40 a 55 de Isaías tenha sido um discípulo do profeta Isaías não está descartada. Ele, o Dêutero-Isaías, ou Isaías Júnior, escreveu os quatro cânticos do Servo de Deus que se encontram nesta segunda parte do livro de Isaías (40-55).
A nossa perícope apresenta o 4º. Cântico do Servo de Deus. Ele tem características de um diálogo. Podemos identificar a seguinte estrutura:
52.13-15-O senhor fala.
53.1-6 – A comunidade dos exilados fala.
53.7-10 – O narrador fala.
53.11-12-O Senhor fala.
J. Steinmann sugere a seguinte estrutura:
52.13-O Senhor fala.
52.14-15-O profeta fala. 53.1-9 – As nações falam.
53.10-0 profeta fala.
53.11-12-O Senhor fala.
O tema central da perícope é o sofrimento do Servo de Deus. Esta perícope é uma das passagens mais árduas do Antigo Testamento (J. Steinmann). Esta complexidade não reside apenas na sua estrutura, mas também nos significados dos conceitos e na identificação dos personagens. Ê o que veremos a seguir.
2. Sobre os versículos
Se aceitamos a sugestão de estruturar o texto num diálogo, será inevitável refletir sobre perguntas, como:
a) Quem é o Servo?
b) Quem é o nós dos versículos 1-9?
c) Qual é a intenção desta perícope?
A palavra Servo e o verbo correspondente aparecem 23 vezes em Dêutero-Isaías. Em três oportunidades, servo se refere a escravo. As demais citações dizem respeito ao servo do Senhor. Normalmente é assim que servo é uma pessoa de prestígio, uma pessoa de destaque. Basta lembrar Moisés. No entanto, aqui no 4º. Canto, ele é uma pessoa junto de Deus, encarregado de uma importante missão. Mas, quem é ele? A hipótese de o servo ser o próprio profeta não tem argumentação sólida. Para os discípulos de Jesus este 4º. Canto representou a expressão viva e vigorosa do sacrifício expiatório de Jesus. Para Carlos Mesters, o Servo de Deus, aqui nesta perícope, é o povo sofredor. E apoia sua argumentação em passagens bíblicas como Is 41.8-9; 42.18-20; 43.10. Por estas trilhas abertas por Mesters, também vamos encontrar respostas para a outra preocupação: quem é o nós dos versículos 1-9. Ê o povo opressor. Aquele povo que atrapalhou o projeto de Deus em Jesus Cristo, mas que neste canto profético se converte. Para Carlos Mesters, a estrutura desta perícope é como uma escada com cinco degraus do processo de conversão:
1. Antes da conversão – Is 53.2-3
2. Início da conversão — Is 53.4-6
3. Aprofundamento da conversão — Is 53.7-9
4. A conversão se expressa — Is 53.10
5. Deus confirma a prece — Is 53.11-12
Para Mesters, os pobres se reconhecem em Jesus e encontram nele a chave para saber como devem realizar a sua missão como Servo de Deus.
Quando o povo se separa de Deus e segue seus próprios caminhos, brota a situação onde é necessário voltar a reorientar-se pela palavra do Senhor. Assim sendo, a intenção desta perícope é conduzir o povo de Deus, a comunidade cristã, a uma reflexão muito séria sobre sua situação, sua vida e sua participação no mundo como Servo de Deus. A Igreja de Deus quer ser a Serva de Deus, ou seja, quer atuar e servir ao Reino de Deus. Pode o 4º. Cântico do Servo de Deus ser cantado hoje pela Igreja?
Ill — Meditação
A escolha desta perícope para a prédica de Sexta-Feira Santa é apropriada para anunciar a vitória do Servo de Deus (Is 52.13-15). Este anúncio está carregado de coragem e ânimo para o povo sofredor, para a Igreja' perseguida, para a comunidade difamada por aqueles que acham que os cristãos não têm nada a ver com os problemas desta vida: sem-terra, sem-teto, sem-salário, sem-saúde, sem-emprego, sem-dignidade, sem-respeito, sem-direitos. Como diz Mesters: O quarto cântico é uma profecia. Fala do futuro que ainda não chegou, mas fala como se já tivesse chegado. Nele se descreve o resultado da missão do Servo, que deve orientar toda a sua luta, desde o primeiro passo.
Por isso, a Igreja, a comunidade cristã, é desafiada, na Sexta-Feira Santa, a se guiar pelo Servo de Deus, Jesus, se ela quiser ser também Servo de Deus neste mundo. Neste sentido, Jesus passa a ser o caminho por onde a comunidade deve se guiar. Jesus sofre a ação dos opressores do seu tempo, mas não se deixou influenciar por eles. Cabe ressaltar na Sexta-Feira Santa não só a violência e a prepotência dos opressores, mas a atitude de Jesus na cruz: perdão e confiança em Deus. Para Mesters, estas duas atitudes de Jesus na cruz são pistas para a comunidade cristã hoje. Pois, perdão é o único caminho viável e realista para a libertação de todos neste nosso mundo marcado pelo pecado.
E a confiança em Deus — abandonar-se nas mãos de Deus — é uma atitude de fé na vida, na liberdade, no amor. Ao invés de confiar na força, na violência, na fama e no prestígio, o cristão é levado a confiar em Deus, aquele que garante a vida, mesmo diante de um grande sofrimento.
Os cinco degraus do processo de conversão, sugeridos por Mesters, podem ajudar-nos na preparação da prédica. De forma bem resumida, comparti¬lho a reflexão de Mesters:
l – Antes da Conversão — Is 53.2-3.
Os ex-opressores desprezam o povo. Hoje: de um lado, os pobres e de
outro, os ricos; de um lado as favelas, de outro, os bairros luxuosos.
2- Início da Conversão — Is 53.4-6.
Os pobres, na realidade, são empobrecidos. Alguém está por detrás da máquina de fazer pobres! Ë o sistema social no qual estamos. E quando se começa a perceber que existe uma relação entre a riqueza de alguns poucos e a pobreza de uma maioria, então está iniciado o processo de mudança. Será que a gente se deu conta disso?
3 -Aprofundamento da Conversão — Is 53.7-9.
Os ricos — opressores — percebem a paciência do povo sofrido. E nem imaginam, nem têm consciência dos abusos sofridos pelos pobres. Pois nunca estiveram numa fila de INPS, nem dormiram amontoados num quarto qualquer.
4 – A Conversão se expressa — Is 53.10.
Assim como o soldado romano reconheceu a Jesus, assim os opressores reconhecem no povo sofrido o Cristo Libertador. E assim, brota a nova sociedade, sem opressor e oprimido. Uma sociedade de irmãos e irmãs. E esta sociedade é o projeto, o sonho de Deus para a humanidade. Onde isto está acontecendo?
5 – Deus confirma a prece — Is 53.11-12
Caberá aos opressores arrepender-se e confessa r sua culpa. E fica a pergunta: quando isto vai acontecer?
Bem, confesso que a meditação em torno deste 4º. Cântico do Servo de Deus ainda está incompleta. Penso que consegui apenas apresentar alguns estímulos e abrir uma pequena picada em direção à prédica de Sexta-Feira Santa. O assunto é muito amplo e o 4º. Cântico enfoca diferentes aspectos referentes ao Servo de Deus, ao povo e sua relação com o que aconteceu na Sexta-Feira Santa. Caberá, agora, ao pregador agregar seus pensamentos e estabelecer relações com a vida e atuação de sua comunidade. Penso também que caberá ao leitor decidir se vai usar a perícope toda, ou se vai aprofundar um aspecto do Cântico.
IV — Rumo à prédica
Sugiro que sejam considerados os seguintes passos na elaboração da prédica:
— Ambientação: falar brevemente dos fatos que culminaram com a condenação de Jesus à morte na cruz.
— Leitura do texto (cabe ao pregador escolher se vai ler o texto corrido ou com uma das estruturas apresentadas (veja II. 1. Sobre a perícope).
— Aprofundar o tema ou o aspecto escolhido.
— Convite à comunidade para a confissão de culpa e súplica por perdão.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, Deus da humanidade, nós te confessamos nossa culpa. Andamos por aí apenas preocupados com o nosso bem-estar. Não nos interessa como vai a maioria das pessoas em nosso país. Não nos sentimos responsáveis por sua situação de dor e sofrimento. E tampouco fazemos alguma coisa para mudar. Somos cheios de preconceitos para com os pobres. Dá-nos, Senhor, o teu perdão, para que voltemos ao caminho indicado por Jesus. Perdoa-nos para que possamos recomeçar uma vida nova, mais comprometida com teu Evangelho, com teu amor, com tua paz. Senhor, tem piedade de nós!
2. Oração de coleta: Senhor, nosso Pai, vem e reúne a nós todos nesta Sexta-Feira Santa. Não permitas que nós nos dispersemos por outros caminhos. Ensina-nos a confiar mais em ti do que nos outros e em nós mesmos. Abre os nossos olhos para o Evangelho e a vida ao nosso redor. Amém.
3. Oração final: Deverá considerar a época, os assuntos do momento, a vida da comunidade, a situação atual do Brasil. Encerrar com o Pai-Nosso.
VI — Bibliografia
– JESAJA – Bibelwoche 1963-1964 – Nachschriften von der Bibelwochenrüstzeit auf dem Hesselberg – editado por Amt für Gemeindedienst Nürnberg.
– MESTERS, C. A Missão do povo de Deus — Os cânticos do servo de Deus no livro do profeta Isaías. Ed. Vozes Ltda. – CEBI, Petrópolis, 1981.
– STEINMANN, J. O Livro da Consolação de Israel e os profetas da volta do exílio. Ed. Paulinas, 1976.
– WIENER, C. O Profeta do Novo Êxodo – O Deutero-Isaias. Ed. Paulinas, São Paulo, 1980.