Prédica: Isaías 52.7-10
Autor: Milton Schwantes
Data Litúrgica: 4º Domingo de Advento
Data da Pregação: 24/12/1989
Proclamar Libertação – Volume: XV
l — Situação
O exílio é a situação de Is 52.7-10. Nossa perícope é parte de Is 40-55, capítulos que nos habituamos a localizar no exílio babilônico. E nossos próprios versículos se tornam melhor compreensíveis se os lemos nesta perspectiva dos exilados: Jerusalém ainda está em ruínas (v. 9); Javé e seu povo estão retornando ao Sião (v. 8); e o v. 11 até chega a convocar para a saída da Babilônia: retirai-vos… saí. Portanto, o exílio babilônico é a situação de nossa perícope.
Vive-se a expectativa de um iminente retorno. Esta esperança naturalmente já era cultivada por aqueles que seguiram nas primeiras levas de deportados, em 597 a.C. (veja Jr 26-29). Mas naqueles primeiros tempos de exílio, os profetas não encorajavam tais expectativas de retorno imediato. Sugeriam antes uma acomodação às circunstâncias de uma vida longe da terra das promessas. Jeremias recomendava: Plantai pomares (Jr 28.5). Outra é a posição de nosso texto e dos capítulos que o circundam. Sua tese é a de que o exílio terminou; é findo seu tempo (Is 40.2). Agora importa retornar (52.11)e sair (55.12).
Acontece que o momento histórico de nosso texto não é mais o daquelas primeiras levas de deportados em 597 e 587, às quais Jeremias recomendava 'plantar pomares'. Encontramo-nos em novas circunstâncias. Nossa perícope talvez seja de 550 ou 545. O Império Babilônico, responsável pela destruição de Jerusalém e pela deportação de sua gente, declina e definha. Os persas avançam. Assenhoram-se de algumas áreas anteriormente subordinadas aos babilônios. Os persas implantam uma nova política em relação aos povos dominados. Prometem maior liberdade, em especial no campo religioso. Isso atrai o apoio de quem fora massacrado pelos babilônios. E os deportados de Jerusalém estão entre eles. Comemoram Ciro como novo Ungido (Is 45.1-7). Uma nova era está começando! Este é o ambiente de nossa perícope. Suas palavras respiram estes ares de mudança propiciados pelos persas. Estão cheias do entusiasmo pela volta iminente. Já antevêem a chegada a Jerusalém, uma cidade ainda em ruínas, mas já exultante e jubilosa pela chance de reconstrução.
II — Autoria
Não se poderá atribuir nossos versículos ao Isaías, filho de Amoz, profeta no 89 século. Isso é óbvio. Mas quem seria seu autor?
Costumeiramente, atribuímo-los a um autor anônimo que, em torno de 550, atuou junto aos exilados na Babilônia. Esta é a tese que certamente conta com a maior adesão. Há bons argumentos em seu favor. Não os anoto aqui porque podem ser encontrados em Introduções ao Antigo Testamento.
Designa-se o autor de Isaías 40-55 de Dêutero-Isaías. Neste caso, o autor anônimo destes capítulos teria sido uma só pessoa. Este aspecto da questão, hoje, está em debate. Não parece que se possa atribuir estes nossos capítulos a um só autor. Há muito já se sabe que os assim chamados Cânticos do Servo Sofredor (Is 42.1-2; 49.1-6; 50.4-9; 52-53) não se acomodam, em linguagem e conteúdo, ao restante dos capítulos. Igualmente é muito flagrante que os cânticos sobre o Sião, nos caps. 51, 52, 54, representam tradições próprias. Estas e outras observações mais nos levam a crer que os caps. 40-55 são uma obra coletiva, uma composição de diferentes manifestações proféticas entre os exilados na Babilônia. São uma espécie de 'compêndio' da profecia que se manifestou entre os deportados do 69 século.
Entre estes que compuseram os caps. 40-55, salmistas e cantores terão tido um papel de destaque. Acontece que ao longo destes capítulos a gente depara com diversas passagens hínicas, em muito semelhantes ao que conhecemos do saltério. Penso, por exemplo, em 40.9-10; 42.10-13; 44.23; 45.8, etc. Nossos próprios versículos (52.7-10), situam-se neste quadro da linguagem hínica.
Cabe lembrar que, em 597, também foram deportados sacerdotes (Ez 1.3) e outro pessoal do templo, como levitas e cantores (veja SI 137). Entre este 'clero menor' devemos procurar os autores de nossa perícope e de seu contexto literário maior (Is 40-55).
Ill — Estrutura
Nosso texto enfoca três momentos de uma cenário. Seu autor observa um cenário e se detém em três cenas específicas.
Inicialmente a atenção recai sobre o mensageiro. Seu principal anúncio é o do reinado de Deus:
Que formosos são sobre os montes os pés do que anuncia as boas novas: Faz ouvir a paz. Proclama boas novas.
Faz ouvir a libertação. Ele diz a Sião: Teu Deus reina! (v. 9)
Em seguida o enfoque muda. O foco é dirigido aos atalaias, aos que observam a chegada do mensageiro sobre os montes:
Eis o grito dos teus atalaias! Erguem a voz. Juntamente exultam. Pois, cara a cara vêem o retorno de Javé ao Sião. (v. 10)
Por fim, os olhos se dirigem às ruínas de Jerusalém. E aí se demoram, se detêm, insistindo em fundamentar (pois):
Regozijai-vos!
Juntas exultai, ruínas de Jerusalém! Pois, Javé consolou seu povo, redimiu Jerusalém, Javé desnudou seu santo braço
aos olhos de todas as nações. Todos os confins da terra verão a libertação de nosso Deus! (v. 11-12)
As três cenas, nas quais os olhos do profeta se detêm, formam uma sequência. O mensageiro traz uma nova notícia: Deus reina! Os atalaias captam esta novidade, transmitem-na adiante aos gritos. E ela, enfim, chega a seu destinatário, às ruínas. Mas não pára aí. Propaga-se aos confins da terra!
Em cada uma destas cenas, comunica-se algo novo sobre Deus. A afirmação primeira e básica é a de que Javé reina. A segunda é a de que ele está retornando (obviamente com seu povo) a Sião/Jerusalém. Na última cena, prevalecem amplamente as afirmações sobre Javé. Três são realçadas: Javé passa a ter atitude salvífica em relação a seu povo e a Jerusalém; Javé passa a intervir na história dos povos (no concreto através do ungido Ciro); a libertação passa a ser universal, até os confins da terra.
Enfim, nossa perícope tem uma estrutura bastante exata. Tão-somente anotei alguns aspectos. Vale a pena meditá-la, perscrutá-la. Trata-se de uma poesia bem feita e jeitosa.
IV — Conteúdos para a prédica
Nestes versículos transparece cuidado para apresentar um processo de comunicação. A perícope é pequena, mas o cuidado pela comunicação como que é redobrado. Cada instante é relevante. Ao mensageiro cabe o momento inicial. Mas igualmente importante são os atalaias. A novidade que o mensageiro tem a comunicar como que necessita dos gritos dos atalaias para se expandir, para chegar a seu alvo. E as próprias ruínas têm sua parte a realizar. Sem que elas se integrem, mensageiro e atalaia não chegariam a cumprir seu papel. A interação comunicativa entre mensageiro, atalaia e 'ruínas' constitui o todo, completa o processo de comunicação. Isso é importante para a própria prédica. O mensageiro, o pregador não a completa. Os 'atalaias' e as 'ruínas' também têm sua parte a dizer. Estes 'atalaias' e estas 'ruínas', estes que gritam para que o povo não adormeça em sua dor, estas ruínas humanas que teimam em não se entregar a seu destino fatalista participam de nossos sermões? têm voz em nossas prédicas? A perícope de hoje nos lembra que o mensageiro é importante, mas não pode ser o único a falar.
O alvo dessa perícope são as ruínas de Jerusalém, é este povo deportado, disperso, arrebentado, na Babilônia, em Judá e por aqui. Este texto como que nos provoca a olharmos para nossa situação, marcada por milhões e milhões de exilados em sua própria terra, deportados em seu próprio país. Nós e nosso povo vivemos na estrada. Ao visitar as pessoas aqui em Guarulhos, o assunto sempre de novo é a estrada. As pessoas ou estão chegando de alguma parte ou se estão mudando para outro lugar. Tá todo mundo rodando! me dizia alguém outro dia. E este rodar e migrar empobrece e arrebenta, destroça, esfacela, esmigalha as pessoas. Tritura-as por completo, alma e corpo, por dentro e por fora. As pessoas viram verdadeiras ruínas. O advento é festa para tais ruínas!
Para quem vive esta 'deportação' diária, este exílio cotidiano, anúncios de paz, boas novas, libertação, salvação fazem bem. Mensagens de consolo e de redenção dão abrigo. São termos importantes em nossa perícope. A gente poderia correr o risco de esvaziá-las, tornando-as bastante abstraías ou intimistas. Por isso é tão importante assentá-las e ancorá-las nas realidades da vida. Para aqueles deportados do 69 século a.C., palavras como paz e consolo continham realidades muito concretas. Implicavam em ter um lugar — no caso, Jerusalém e Judá — onde se pudesse viver, nascer, crescer, trabalhar e morrer. O exílio era e é uma vida sem lugar, sem chão, sem-teto e sem-terra. Implicava ter um abrigo político, uma cidade, um país, onde a gente pudesse decidir sobre a vida, sobre o que plantar, como festejar, como exercer o direito à política. Implicavam em ter um lugar onde adorar Deus, já que lá em terra estranha ficava difícil cantar, sacrificar, enfim, festejar. Sim, paz, consolo, redenção são 'coisas' assim concretas. Quando nós esquecemos de explicitar, no sermão, que as 'grandes' palavras religiosas têm conteúdos tão concretos, imediatos, específicos, prestamos um péssimo serviço ao povo de Deus, ajudamos a transformar atalaias em um vale de ossos. No advento, nossa perícope nos pode ajudar a ver o quanto Deus vem no concreto, de jeito encarnado, sobre as montanhas, com formosos pés (veja v. 7).
E é justamente Deus quem assim desnuda (v. 10), desvenda, revela a realidade. Sem Deus, a realidade não se desnuda, não aparecem as ruínas, nem afloram os atalaias que gritam pelo novo que vem.
Deus é rei! Por mais que Ciro seja, não chega aos pés de Deus, o Libertador. Foi muito importante que os exilados na Babilônia não se deixassem seduzir pelas promessinhas de Ciro de um pouco mais de liberdade aparente. Por mais que se tivessem alegrado com o populismo de Ciro, não deixaram de testemunhar o reinado, a soberania de Deus, daquele que desde a libertação no Egito consola e redime seu povo. Deus é rei, ainda que Jerusalém esteja em ruínas!
Ele retorna! Javé sofre o exílio e a deportação, a migração e a falta de terra e de teto com seu povo. Ele mesmo vai ao exílio. Acampa nas periferias. Mas, Javé volta. Regressa ao Sião, à morada digna, ao lugar que lhe corresponde. E esta volta não é um regresso solitário. Ë um regresso em companhia de seu povo. O v. 12 expressa-o de modo magistral: Javé irá diante de vós, e o Deus de Israel será a vossa retaguarda. O advento de Javé é também o advento do povo. Como haveríamos de proclamar o retorno de um sem o do outro? Como haveríamos de anunciar o fim do exílio de um sem preparar a vinda do outro? Que dicotomia estranha é esta que se tende a praticar entre cristãos!?
Nada às escondidas! Esta é uma das grandes temáticas dos caps. 40-55: A glória de Javé se manifestará e toda a carne a verá (40.5); todos os confins da terra verão a libertação do nosso Deus (52.10). Sim, o mensageiro dos pés formosos, os gritos dos atalaias e o reerguimento das ruínas — nada disso poderá ficar escondidinho. Isso agitará toda história, do início ao fim. Ë luz para os gentios (49.6). Acontece que na história ruínas não passam de ruínas, deportados são esquecidos, migrantes se danam nas favelas, gente esmigalhada perde-se no pó da estrada. Vive debalde, trabalha inútil e vãmente (49.4). É lixo. E lixo não vira luxo. Sempre fica lixo, assim apodrece, fede e desaparece. Mas Javé inverteu a história. Inverteu-a desde o começo. Ao criar, já nos fez do pó, do nada. Depois com múltiplos milagres resgatou do esquecimento aqueles hebreus escravizados pelo todo-poderoso faraó. Profetizou que o rebento e não o palácio dá fruto. Nasceu em plena miséria de Belém. Inverteu a história. Contou-a desde seu reverso. Javé conta a história a partir das ruínas. E isso não se pode fazer às escondidas. Causa tanto escândalo que se faz inesquecível! Se virarmos mensageiros sem pés formosos, se deixarmos de ser atalaias que agitam, então por certo é porque olhamos para palácios, poderes e afins, e não para ruínas, exilados, favelados e afins.
V — Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Que formosos são sobre os montes os pés do que anuncia as boas novas, que faz ouvir a paz, que anuncia cousas boas, que faz ouvir a salvação, que diz a Sião: O teu Deus reina! (Isaías 52.7)
2. Confissão de pecados: Deus, tu que és nossa esperança, tu que transformas nossa vida em novidade contínua, confessamos que nos falta a esperança. Nem cremos em novidades. Não cremos que seja possível superar a pobreza. Não cremos que todas as pessoas possam ter o que comer. Não cremos que tu vens a nós de jeito pobre e fraco, nascido em estrebaria. Sim, bondoso Deus, o pecado do desespero, e da falta de esperança domina nossas vidas. Tem piedade de nós, Senhor?
3. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus, alegramo-nos por esta reunião. Agradecemos-te poder estar neste encontro. Ajuda-nos a entender tua Palavra, a aplicá-la em nossa vida. Não queremos sair vazios desta reunião. Abre nossos corações, para que a Palavra Bíblica nos oriente em favor da prática do amor e da justiça. Por Jesus Cristo, nosso Senhor, que contigo e com o Espírito Santo vive e reina de eternidade a eternidade. Amém.
4. Leituras bíblicas: Filipenses 4.4-7; João 1.15-28.
5. Assuntos para a intercessão: Pelas reuniões e cultos da comunidade; pelos cultos de outras comunidades; pela preparação comunitária do natal; por um natal no qual não prevaleça o poder do dinheiro e do consumo; por um natal no qual os empobrecidos tenham chances; por um natal que não marginalize aqueles pobres pastores de ovelhas, destinatários da boa nova; pelos presos, para que não sejam ainda mais desumanizados; pelos doentes, para que tenham acesso à saúde, para que nosso sistema de saúde seja acessível a todos; pelos enlutados, para que encontrem pessoas que os apóiem e para que nós não esqueçamos de visitá-los; pelos países em guerra, para que cessem os tiros, para que cesse a fabricação de armas; pelo aumento de esperança em todos nós, a fim de crermos na nova criação que Deus realiza, em meio a nós, em favor de sua criação…
VI – Bibliografia
FOHRER, G. Jesaja 40-66. In: Zürcher Bibelkommentare. 2a ed. Zürich, 1986.
– KILPP, N. Introdução a Dêutero-Isaías. In: Proclamar Libertação. Vol. VIII. São Leopoldo, 1982, p. 16-22.
– SCHWANTES, M. Sofrimento c Esperança no Exílio – História e Teologia do povo de Deus no Século VI a.C. São Leopoldo, 1987.
– VOIGT, G. Meditação sobre Isaías 52.7-10. In: Homiletische Auslegung der Predigttcxte. Série VI. Göttingen, 1983,
– WESTERMANN, C. Das Buch Jesaja, Kapitel 40-66. In: Das Alte Testament Deutsch. Vol. 19. Göttingen, 1966.