Prédica: Isaías 54.7-10
Autor: Werner Kiefer
Data Litúrgica: Domingo Laetare
Data da Pregação: 25/03/1990
Proclamar Libertação – Volume: XV
l — Preliminares
Isaías: profeta aristocrático que viveu no século VIII a.C. e que, segundo a tradição, o rei Manassés teria mandado serrar ao meio e que os exegetas cortaram em três. . . (apud Wiener, p. 5). Desta afirmação tem-se como certo que no livro de Isaías, com seus 66 capítulos, há três obras que emergem de diferentes contextos e autores (comunidades). Os capítulos 40-55 são atribuídos a um profeta anônimo, é a 'Voz do que clama no deserto (Is 40.3), durante o exílio babilônico por volta de 540 a.C.
O exílio é uma prática política imposta pelo vencedor aos vencidos. 2 Rs 24 nos dá alguma referência das deportações para o cativeiro na Babilônia. No ano de 597 foi deportada a elite dominante de Jerusalém. Dez anos depois, o restante da cidade é empurrado para o cativeiro (2 Rs 25). Na Judéia permaneceram os pobres da terra, os quais foram favorecidos pelo poder babilônico.
Lá no cativeiro da Babilônia estão três grupos de pessoas diferentes:
a) o grupo palaciano, pessoas da corte, que foram levadas à prisão e posteriormente são libertas (2 Rs 25.27ss);
b) o grupo da lavoura, aqueles que na Judéia desempenhavam a função de ferreiros, artesãos e, agora, estão nas colónias agrícolas, onde devem produzir alimentos para os armazéns da Babilônia;
c) o grupo dos servos, onde está incluída a classe baixa de Jerusalém, produto da segunda deportação no ano de 587. Este grupo destaca-se por estar empenhado na elaboração do projeto da volta e reconstrução da nova Jerusalém. Neste grupo dos servos está o nosso profeta, chamado pelos exegetas de Deutero-Isaías, Isaías Júnior, Segundo Isaías, etc.
Na reflexão de Isaías Júnior ressaltam-se alguns aspectos que merecem ser sublinhados:
1. Na reflexão deste profeta Deus é o companheiro de diálogo com o seu povo. Este relacionamento acontece num clima de amor, de ternura para com os exilados (49.15). Deus é a mãe do povo (46.3), esposo (54.5).
2. O projeto do profeta é o da articulação da saída do cativeiro para a construção da nova Jerusalém. A força motivadora para o povo nascerá dos acontecimentos históricos nos quais Deus agiu por excelência. A ação de Deus no passado reacenderá a chama da fé no presente, de que Deus está com o povo e deseja a sua libertação. O acontecimento do êxodo é priorizado; a este, Israel deve a sua existência (Is 43.16-21). Mas agora acontecerá um novo êxodo, que será tão belo que se esquecerá o antigo. O caminho para Jerusalém será pelo norte, pelo deserto. As estepes serão transformadas em lugar de passagem com belas árvores e haverá fontes de água. O retomo será um acontecimento solene, uma marcha sob a proteção de Javé: (Is 41.17-20; 43.2; 44.27:20.2-3; 51.9-11).
3. Na reconstrução da Nova Jerusalém não se pensa mais no davidismo. Os servos é que irão governar. A nova cidade será uma tenda para os romeiros (Is 54.2). A estrutura do clã vai ser reerguida na cidade. Ali não existirá mais opressão, a cidade será edificada sobre a justiça (Is 54.14).
Concluindo, Isaías Júnior é reflexão exílica em tempos de crise, de experiência de estar abandonado por Deus e de subjugação ao poder babilônico que desconhece a própria fé em Javé. A ação de Deus no passado suscitará força e coragem para a libertação no presente. O fim do cativeiro está próximo. Ciro, o rei persa, será o instrumento de Javé que libertará o povo de Deus do cativeiro. Este rei será o justiceiro (Is 41.2-3); pastor do Senhor (Is 44.28). Os exilados serão perdoados. As vitórias dos persas lhes serão favoráveis. Assim como o exílio fora anunciado pelos profetas (Jeremias, Ezequiel); da mesma forma, é anunciado o seu término (Isaías Júnior). Isto também quer dizer que o exílio não foi um acidente histórico, mas consequência da idolatria reinante na Judéia, a cujo pecado Deus concedeu o seu perdão.
II – O texto
Is 54 é um convite à alegria. Deus que abandonara o seu povo está pronto para o regresso, onde a vida novamente será abundante. A esterilidade se transformará em fecundidade. As cinzas formarão brasas novamente em chamas.
O referido texto é promessa de salvação. A sua linguagem evoca a imagem do marido e mulher que se separaram e voltam a se amar apaixonada¬mente. O que acontece com a volta do esposo(a) que se arrepende, vai e busca a sua querida(o) e promete fidelidade eterna.
O v. 7 expressa o sentimento de abandono no exílio, solidão. Semelhante situação vivência! encontramos em Lm 5.20; Sl 43. Mas este abandono está no fim. Deus recolherá os exilados com compaixão, ternura. A mesma situação vivencial encontramos no v. 8.
Deus escondera o seu rosto num momento de cólera, 'indignação. Deus irrita-se com o seu povo, mas volta-se novamente a ele. Deus se redime pelo seu amor para com o povo. Algo semelhante ao amor de uma mãe/pai por seus filhos(as) (Is 22;49.14-16; Jr 31.20).
A redenção é iniciativa de Deus, dom divino. Assim como Deus abandonara o seu povo pelo pecado que cometera, toma a iniciativa para o perdão e a libertação. Redenção não quer ser somente o restabelecimento da paz entre ambos, mas também a implantação da justiça. A redenção acontece com o estabelecimento da aliança (v. 10), que significa comprometimento.
No v. 9 o profeta atesta a sua reflexão. Rebusca no povo a sua memória histórica, do Deus que intervém, que age, faz aliança e liberta. O profeta mostra a fidelidade de Deus ao seu povo através da sua história. Este agir de Deus no passado alimentará as esperanças no presente e iluminará a construção do projeto que objetiva a libertação do exílio e da nova Jerusalém. Deus terá a mesma fidelidade com os exilados que tivera com Noé. Faz o mesmo juramento, de que não mais se iraria, repreenderia o povo. Deus parece que chega a se humilhar de arrependimento frente ao seu povo.
O termo aliança recebe uma reflexão maior no v. 10. No pensamento dos exilados, a questão era saber se esta aliança não fora definitivamente rompida. Mas toda a mensagem de Deutero-Isaías vem responder que esse não é o caso: o Senhor ainda se interessa pela vida do seu povo e vem salvá-lo para sempre. (Wiener, p. 41)
A aliança vem rodeada de palavras que mostram a lealdade de Deus ao seu povo – pela amizade, relação de paz e realização plena da felicidade. Todavia, esta aliança é dom divino. Não significa que é só um receber, mas um comprometimento para com a ação.
O texto em análise aponta para uma situação vivência!, do sentimento de estar abandonado e esquecido por Deus. A sua linguagem já anterior ao texto nos mostra a enorme paixão de Deus para com o seu povo. O estabelecimento da aliança é o que recebe acento, como segundo passo da reflexão. Demonstra que Deus não está alheio à sua história. A análise da ação de Deus no passado faz renascer a esperança e a certeza da ação libertadora de Deus no presente.
Ill — Meditando a partir do texto
O texto em apreço aponta para duas questões básicas; a situação vivência! do exílio, donde vem a experiência de ser esquecido por Deus. Doutro lado, este sentimento de abandono é superado pela constatação da ação de Deus na história do povo de Israel. Disto se conclui a lealdade de Deus, o seu
profundo amor aos exilados. Estas duas questões devem ser aprofundadas, objetivando a pregação.
1. O exílio
A história oficial registra muitas vezes os fatos como se a prática do exílio fosse algo reservado a alguns personagens políticos. Porém, viver em exílio é ser oprimido, massacrado, é deixar de viver a vida como ela é em função do poder que visa a ganância. Assim sendo, ao falar do exílio temos que nos referir às nações indígenas, que são exiladas da sua terra-mãe, que estão cativas nas mãos da FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Além dos índios, constata-se que as mulheres, as crianças, os idosos e tantos outros são exilados do seu jeito de ser e de viver.
O exílio é o processo imposto e decorrente do sistema político que faz com que a grande maioria do povo sobreviva, deixe de ser cidadão para ser apenas habitante. Esta prática do exílio pode ser assim verificada nos migrantes que estão à procura de um pedaço de chão e de uma vida digna. Enfim, o exílio é produto do capitalismo selvagem que ama o lucro e maltrata o operariado, os colonos, os índios, os seringueiros, os idosos, as crianças. Seja por falta de salário justo, de reforma agrária, ou de escolas voltadas para a vida.
Há outro aspecto que merece ser destacado quanto à prática do exílio na sociedade em que vivemos. Tamanha opressão, medo, insegurança fazem com que a espontaneidade, a sinceridade deixem de ser virtudes humanas. O sofrimento vai se interiorizando e se acumulando no corpo, sufocando o próprio grito de dor. Carlos Mesters pode nos ajudar a sensibilizarmo-nos ainda mais para os milhões de latino-americanos que vivem sofrendo nos cativeiros da miséria.
Terezinha veio com o marido para a cidade. Adoeceu o seu filho. Estava sozinha. Chamou o cunhado e foram ao posto médico. Não foram atendidos. Procuraram o hospital, mas nada de ser atendido. Anoitece. Pegam o ônibus e voltam para casa. A criança piora. A mãe observa. O nené parece estar dormindo. O ônibus pára debaixo de uma lâmpada do poste de luz da rua; a mãe olha para o nené e se assusta. A pobre criança, a que fora negado o atendimento médico, estava morrendo. A mãe assusta-se, quase dá um grito, em pânico: João, o nené está morrendo. Ele observa ligeiramente a situação e fala baixinho com sua cunhada: Quieta, mulher! Fique firme! Não deixe perceber nada! Senão a polícia prende a gente! Daí vamos presos. O medo e o sofrimento transforma¬ram Terezinha e João em duas estátuas. Não olham mais para a criança que vai morrendo nos braços da mãe. Esta aperta a criança contra o seio. Está gelada. O nené morreu, diz baixinho ao cunhado. Quieta Terezinha. Não deixe perceber nada, pelo amor de Deus!
No dia seguinte a criança foi sepultada, e a vida dos demais continuou como antes. Nada mudou. Apenas a dor e o sofrimento aumentaram, que nem puderam dar o seu grito de revolta pela morte da criança.
Depois de 2 anos Terezinha conta esta história a uma freira. Não contou antes por causa do medo. A gente é pobre, não sabe nada. A única coisa que sobra para nós neste mundo é sofrer. É só isso que a gente sabe (Mesters p 11-13).
2. O novo êxodo
Deus promete um novo êxodo. Ele será ainda mais belo do que o do Egito. Fará uma aliança, tomará iniciativa de marchar junto com o seu povo para a construção da nova Jerusalém. Estas palavras de ordem foram criando vida nos servos de Javé na Babilônia. Foi uma chuva que começa a cair em pleno deserto a regar plantas ressequidas e desfalecidas.
Certamente teremos facilidade em ver a quantidade dos cativeiros existentes em nosso meio. Porém, como e onde vemos o novo êxodo acontecer?
O texto de Is 54.7-10, a sua própria leitura, provoca esperança. Mostra a fidelidade de Deus ao seu povo. Deus não esqueceu dos seus servos. Para tanto, podemos aprender um pouco do jeito de Isaías em articular esta esperança. O seu jeito foi de recorrer à história do próprio povo, fazendo perceber que Deus age no decorrer desta. A lembrança do agir de Deus cria a esperança e a certeza de que Deus é por excelência Senhor e libertador no presente e no futuro.
O jeito de Isaías nos incentiva, como agentes de pastoral, a crer que o novo êxodo está ao nosso alcance. Deus derrama a força do seu Espírito para juntos percebermos que a ação de Deus acontece na história da humanidade. Este novo êxodo nascerá, assim, das experiências do povo de Deus, da organização, das fé e persistência em assumir a aliança que Deus nos oferece. O texto quer, assim, nos libertar da ideia de que o novo êxodo será projeto de um indivíduo — agente pastoral. Mas o novo nascerá da ação conjunta, da redescoberta da ação de Deus na história. Este fato suscitará a força renovadora da fé para a edificação do Reino de Deus, A comunhão do povo de Deus cria a fé nos corações e fortifica a comunidade para a marcha da realização plena do Reino de Deus.
Deus nos dá o toque inicial, demonstrando a comunhão pelas suas alianças com seu povo. A mesma aliança Deus nos faz no Sacramento do Santo Batismo e da Santa Ceia. Ali Deus sempre de novo procura nos animar, criando fé e coragem para a libertação conjunta dos cativeiros.
A celebração, o culto, deveria ser o momento onde a comunidade pudesse festejar o novo êxodo: nas organizações populares, na ação da comunidade junto aos empobrecidos, pelo despertamento de uma consciência critica, pelos encontros onde se podem desabafar as dores e as dificuldades. Creio que são alguns sinais que podem somar força para o Reino de Deus.
IV — Pensando na pregação
O texto destina-se para o domingo Laetare, que expressa alegria, regozijo. O texto vai ao encontro desta temática. A questão é ver a relação entre o texto e o significado do domingo eclesiástico para com a época da quaresma, porque geralmente se entende que quaresma ê silêncio, meditação voltada para o sofrimento de Jesus Cristo.
O novo êxodo é um acontecimento no qual Deus toma a iniciativa em realizá-lo. Esta amostra do seu desejo nos é dada no evento Jesus Cristo. O Filho de Deus é enviado ao mundo para proclamar libertação (Lc 4.16-21). Jesus Cristo entra nos cativeiros do mundo e ali é que começa o novo êxodo, dando sinais definitivos de que o novo não será somente uma experiência do passado. Cristo veio trazer a libertação para todos os cativeiros.
Por isso já na quaresma, a comunidade cristã é convidada a se alegrar. Somos convidados a não parar na Sexta-Feira Santa, porque o domingo de Páscoa já dá para enxergar. Geralmente, paramos na cruz e não conseguimos enxergar o túmulo vazio.
O referido texto pode ser um convite para a comunidade celebrar já o novo êxodo no cativeiro. A ação de Deus em Jesus Cristo nos dá certeza de que os rumos de Deus passam pelo cativeiro, pela cruz, mas não param ali. Deus vive com os servos no exílio, mas não se acomoda no sofrimento. Por isso podemos nos alegrar.
Apontar para o novo êxodo é uma forma de a comunidade começar a redescobrir sempre de novo a ação de Deus na história. Deus não está indiferente à miséria e à pobreza humana. Deus se solidariza com todos os cativeiros em seu Filho Jesus Cristo. Deus chega assim a cortar a sua aliança com o precioso sangue de seu próprio Filho na cruz.
A pregação a partir desse texto, certamente, nos confrontará com a velha realidade do mundo, dos cativeiros existentes, com o novo êxodo que Deus está realizando. Assim sendo, a pregação, entre outros objetivos, deverá libertar a comunidade da sua indiferença, da sua própria acomodação nos cativeiros. Deus não quer o cativeiro, o sofrimento para as suas criaturas. Mas quer que todos tenham vida, 'Vida em abundância (Jo 10.10).
V — Esquema para a prédica
1. Leitura do texto
2. Situação dos exilados no cativeiro — sentimento de rejeição.
— Citação de cativeiros existentes em nosso mundo. Exemplo: um migrante que perde a relação com a sua família e com a própria comunidade; caso da Terezinha, etc.
3. Deus está junto com o povo no cativeiro e quer realizar a libertação.
Deus não se acomoda e pára de agir por ali. A ação de Deus no passado resgatará a memória do povo de que Deus é libertador.
4. O acontecimento Jesus Cristo é sinal da presença definitiva do Reino de Deus. Por isso podemos nos alegrar já na quaresma. Desde que não esqueçamos a cruz.
VI — Subsídios litúrgicos
1.Intróito: Louvai ao Senhor vós todos os gentios, louvai-o todos os povos. Porque mui grande é a sua misericórdia para conosco, e a fidelidade do Senhor subsiste para sempre. Aleluia! (Sl 117)
2. Confissão de pecados: Ó Deus, estamos aqui reunidos porque cremos que de ti vem a força, a saúde, o amor, o consolo. Mas nós deixamos correr a nossa vida solta e de forma indiferente. Quando precisamos de ti, logo queremos negociar em troca favores que esperamos receber de ti, ó Deus. Nisto queremos ser cristãos, só olhando para nós. Deixamos que os outros se lasquem. Perdão, Senhor! Há tantas pessoas amarradas na pobreza do mundo, que vivem exiladas de uma vida digna. Tudo isso vemos, mas muito pouco estamos contribuindo para a libertação do teu povo. Perdoa, Senhor, o nosso comodismo, a nossa falta de fé, de que tu és um Deus libertador, o que nos demonstraste no povo de Israel e na vinda de teu Filho. Tem piedade de nós, Senhor!
3. Anúncio de graça: Não tema, porque eu sou contigo; não te assombres, porque eu sou teu Deus;eu te fortaleço, e te ajudo, e te sustento com a minha destra fiel. (Is 41.10)
4. Oração de coleta: Deus, te agradecemos pela comunhão com a tua palavra. Que a palavra possa nos transformar em novas criaturas pelo poder do Espírito. Amém.
5. Leitura bíblica: Jo 12.20-36
6. Assuntos para a oração final: a) Agradecer e louvar a Deus por não ser indiferente para conosco. Agradecer porque Deus quer libertar o seu povo. b) Interceder por aqueles que vivem nos cativeiros: os índios, os negros, os idosos, c) Pedir que o Senhor nos transforme em seus instrumentos. Que a comunidade possa, nos cativeiros, animar, prestar a sua solidariedade em busca da libertação. Pedir que Deus crie em nós a persistência, pela fé de não desanimar. Que Deus transforme as nossas relações económicas que geram os exílios. Amém. Pai Nosso. ..
VII — Bibliografia
– CEBI. Estudos sobre Isaias Júnior. 3a ed., São Paulo, Paulinas, 1983.
– MESTERS, Carlos. A missão do povo que sofre. Petrópolis, Vozes, 1981.
-SCHWANTES, Milton. Sofrimento e esperança no exílio. São Leopoldo/São Paulo: Sinodal/Paulinas, 1987.
– WIENER, C. O Dêutero-Isaias – O profeta do novo êxodo. (Cadernos Bíblicos 7). São Paulo, Paulinas, 1980.