l — Contextos: Instituto Universidade Popular — UNIPOP
O povo trabalhador, por decisão tácita do sistema, não pode e não deve ter acesso democrático e dialógico à informação e à formação universal, aos reconhecimentos científicos e ao debate de temas que compõem a moderna sociedade. Não é uma proibição da lei. Mas a própria existência dentro da sociedade capitalista brasileira impõe ao trabalhador e aos seus filhos essa deficiência crónica, através da ideologização da concepção distorcida de que o trabalhador precisa trabalhar e não estudar.
É a demonstração inequívoca da falência do sistema educacional brasileiro. Um sistema gerado pela concepção elitista de educação que favorece que o filho do rico, através da política de privatização do ensino, frequente as escolas particulares de bom nível, pagas a peso de ouro e que destina aos filhos de trabalhadores a escola mal instalada, mal aparelhada, distante, suja e burocratizada da rede pública. (Lula, in: Vários, p. 59)
Ao mesmo tempo em que o sistema educacional escolar público entra em concordata, não apenas por suas instalações físicas e por causa de seu custo financeiro, mas principalmente por causa de seu conteúdo programático anti-povo, anti-democrático, alienante e deseducador, os meios de comunicação de massas (MCM) são as alternativas educacionais que ocupam o espaço da educação do povo trabalhador. O sistema sabe muito bem como usar esses meios de maneira eficientíssima para educar através de um processo de formação desmobilizante e acomodativo, de concepção positivista, no sentido de passar a ideologia do desenvolvimento e do otimismo, da ordem e do progresso, enquanto que cresce o subdesenvolvimento, a miséria e a fome e se instala a desordem e a morte. O trabalhador é desmotivado pelo sistema educacional oficial, particular e dos MCM a se organizar e lutar por uma nova sociedade.
A repressão à organização de classe acontece a nível de consciência, de modo sutil — a doce repressão segundo Dermi Azevedo — mas tanto mais cruel e desumanizadora.
Dentro dessa problemática se situa a concepção de que é necessário que o povo trabalhador conquiste o espaço necessário para que possa colocar seu saber, para que possa debater e coordenar eficientemente sua organização e para que tenha acesso aos conhecimentos científicos que possam facilitar e viabilizar sua organização e aparelhar e instrumen¬talizar sua luta.
As entidades organizativas do movimento sindical e popular de Belém criaram para tal o Instituto Universidade Popular — UNIPOP. Seu objetivo principal é o de possibilitar, em especial às lideranças intermediárias, emergentes dos movimentos sociais progressistas, a formação e a capacitação eficientes para que possam dar conta de seus propósitos organizativos, através do resgate do conhecimento científico aplicado dialeticamente às necessidades dos movimentos.
No entanto, o homem não é apenas formado pelo conhecimento científico. Há todo um espectro de forças que atuam em sua existência e formam sua consciência. Por isso não será apenas o conhecimento científico que atuará nesta formação. Toda sua práxis deverá ser levada em conta, analisada, debatida, confrontada com o coletivo e fomentada através de atividade de formação.
É dentro desse espectro, pluriforme, amplo e existencial, que se coloca a fé cristã. Ela assume, em princípio as mais diversas formas, desde a teologia da libertação até o pentecostalismo, desde a crendice até a proposta das igrejas históricas, desde a concepção eclesiástica até à religião popular. A diversidade de concepções ainda aumenta quando a pessoa participa como militante de algum movimento, onde encontrará visões de mundo críticas, céticas e até opostas àquilo que lhe diz sua fé. É preciso que este nível de formação seja equacionado para que não se corra o risco de ter descuidado de algo fundamental na existência do povo trabalhador.
A UNIPOP, de maneira sui generis entre as instâncias de formação de lideranças, inclui em seu organograma a concepção de que é necessário debater, estudar e aprofundar as questões levantadas por aqueles que norteiam sua vida pela fé cristã, do ponto de vista do povo sofrido, e perguntar por sua participação na construção da nova sociedade. Por isto existe, incorporado à UNIPOP, um núcleo de Estudos Ecumênicos, que tem por meta processar essa área de formação, integradamente com os outros aspectos formativos oferecidos pela UNIPOP.
II — Conceitos
1. Ecumenismo
Segundo Júlio de Santa Ana, o ecumenismo é a superação do escândalo da separação. Sua participação em seminários e palestras na UNIPOP deixou claro que essa superação não requer apenas o esforço de agrupamentos dentro das Igrejas, mas que é necessário muito mais. A separação fundamentalmente escandalosa é a separação dos seres humanos em classes sociais. Essa separação é construída pelo sistema social capitalista, que tem na relação injusta de capital e trabalho sua consequência mais nefasta e que mantém esta situação através de uma superestrutura ideológica, da qual fazem parte as religiões, entre elas a cristã. A religião cristã foi transformada em instrumento de manutenção de uma sociedade, cujo resultado mais importante é a separação dos seres humanos em classes, com a consequente subordinação de uma classe à outra e a constante luta de uma contra a outra.
É daí que surgem também as separações e divisões das Igrejas, como consequência secundária. Essas divisões têm sua origem no escândalo fundamental da interpretação do evangelho a favor dos que detêm o poder.
O povo oprimido nunca concordou com isto. Jesus Cristo foi a expressão máxima dessa discordância e desse conflito. Na sua miséria e no seu desespero o povo trabalhador sempre achou formas de solidarie-dade mútua, bem como formas de sublimação de sua dor. A religião joga, a nível de massas, papel fundamental neste processo. O povo encontra convívio num mesmo nível quando Deus entra no jogo da vida. Não interessa se é mediado pela Igreja Católica, alguma igreja evangélica, pelo espiritismo ou pela umbanda. A dor, a luta e a miséria une a todos num mesmo sentimento de necessidade de sobrevivência. Lá acontece um ecumenismo básico. As separações oficiais são subvertidas, desobedecidas, os limites são derrubados.
No entanto, esse sentimento de solidariedade individual, que não conhece fronteiras eclesiásticas, apesar de básico, ainda não é automaticamente ativo na defesa e na conquista de direitos para a classe trabalhadora, num sentido organizado e sistematizado. Por isto a fé ingénua é constantemente manipulada pelos que estão no poder, no sentido de fazer com que a massa do povo assuma uma posição, solidária, sim, em relação ao indivíduo, mas também fatalista por um lado e otimista por outro em relação à sociedade e às forças que a compõem. Fatalista, pois crê nada poder nem dever mudar estrutural e politicamente; otimista por crer que Deus, na eternidade, quando chegar seu Reino, dará o pagamento justo por um comportamento ordeiro e submisso aos poderes deste mundo. Este pensamento alienado e a consequente posição quietista, porém existencial, perpassa a base popular de todas as igrejas.
Quando o trabalhador, que sempre se confrontou com este tipo de fé, se insere no movimento coletivo de sua classe, seja em comunidade, seja em sindicatos, seja no partido, a fé cristã, quando não mais trabalhada, entra em contradição com sua atuação. Chega o momento da necessi¬dade de optar, pois o trabalhador não sabe como coordenar fé e militância revolucionária. É nesse momento que a reflexão, o aprofundamento e o redimensionamento da fé cristã se torna necessário, através de um trabalho participativo, democrático, de formação ecumênica.
Nesse sentido a UNTPOP, através do Núcleo de Estudos Ecumênicos (NEE) se propõe a ajudar a enfrentar o problema de sobrevivência colocado para o povo trabalhador brasileiro e assim a superar o escândalo de todas as separações. A Coordenadora do NEE, Pa. Rosa Marga Rothe coloca, na apresentação do Núcleo, esses aspectos programáticos:
Nos debates em torno da criação da UNIPOP, floresceu também a preocupação com o subdesenvolvimento teológico de nosso povo. Como atender as necessidades de preparo de grande parcela de agentes que atuam no meio popular, movidos por sua fé cristã? Como capacitar aqueles que já trabalham nas comunidades cristãs, mas que sentem necessidade de buscar subsídios bíblicos, aprofundar a reflexão teológica para fazerem frente aos múltiplos desafios? Como somar as iniciativas e os esforços isolados e dispersos dos cristãos? Como evitar que tantos jovens acabam abandonando suas comunidades religiosas diante da aparente impossibilidade de combinar ali a responsabilidade pela transformação da sociedade com a vivência da fé?
É neste sentido que se entende ecumenismo. A capacitação da classe trabalhadora de, também através da fé cristã, intervir no processo de exploração e separação capitalista com a proposta ampla e pluralista de uma nova sociedade.
2. Formação
A práxis determina a metodologia e o conteúdo programático das atividades de formação da UNIPOP. Ambos devem estar em constante relacionamento dialético com a experiência e o conhecimento empírico das lideranças do movimento, renovando-se, ampliando-se e adaptando-se às necessidades diárias das lutas da classe trabalhadora. O conhecimento científico deverá ser resgatado pela e para a classe trabalhadora, e colocado a serviço da transformação da sociedade.
Esta tese contém uma intenção fundamentalmente correta, pois a educação e a formação a nível de conhecimento científico foi constantemente negada à classe trabalhadora durante a história do Brasil. A ciência, no entanto, tem uma contribuição essencial a dar na construção diuturna de uma sociedade onde o povo possa usufruir de seus reconhecimentos, em especial na área das ciências políticas, econômicas e culturais, no presente estágio. Entende-se também, que este saber não está apenas nas mãos dos que hoje detêm o poder no Brasil e no mundo, mas caracteriza e principalmente se faz esteio deste poder. Saber, portanto, é poder. Poder que deverá passar para as mãos dos trabalhadores. Isto é consenso: A formação política, econômica e cultural do trabalhador o capacitará e o instrumentalizará melhor para assumir o poder.
Mas há ainda concepções, especialmente quanto à metodologia a ser aplicada, que não são tão consensuais. Uma diz que a prática imediata deve estabelecer os parâmetros para a elaboração do programa de formação e que o imediato decide o conteúdo, o método e as técnicas. Num processo dialético práxis-teoria-práxis o tráfego entre o conhecimento empírico e a abstração teórica leva a novos reconhecimentos, que transformam a práxis.
A outra concepção parte do princípio de que as lideranças a serem capacitadas deverão ter um conhecimento básico do cabedal científico elaborado e conquistado pela humanidade durante toda a sua existência. Reside nisto o conhecimento universal e amplo, para se contextualizar a luta dentro do que já foi reconhecido e conquistado.
Se ambas têm suas razões, têm também suas limitações. Na UNIPOP o debate em torno das concepções metodológicas de formação não são estáticas e nem abstraías, mas estão colocadas dentro da prática de cursos que mostram concretamente a eficiência e os limites de um e de outro.
Dentro deste debate está colocada a formação teológica ecumênica e é dentro dela que deverão surgir novos conhecimentos de como fazer uma teologia libertadora ecuménica, popular e moderna para a Amazônia.
3. Lideranças
A experiência que é hegemónica em paróquias, grupos de base, grupo de estudos bíblicos é que as atividades desenvolvidas dependem demais de padres e pastores. Sofre-se muito quando um destes líderes é transferido ou afastado ou assassinado. O trabalho em inúmeros casos retrocede e chega a parar. Não se formam lideranças capazes de continuar o que foi iniciado.
No movimento popular ainda acontece o mesmo. A UDR sabe que eliminando, matando o líder do movimento o abalo é grande. E quando a poeira das manifestações se assenta, muitas vezes sobra apenas a lembrança do mártir. Os assassinos não chegam nem ao julgamento, muito menos à necessária condenação. Veja-se os casos de Paulo Fonteles, João Batista e Chico Mendes. Não bastam os grandes debates nacionais e internacionais em torno de seus trabalhos. Eles devem levar ao acirramento em torno do preparo de mais e mais líderes que levam adiante, com mais garra ainda, o que foi conquistado pelos que foram eliminados.
Neste sentido é preciso que as lideranças emergentes destes movimentos e de outros recebam formação e capacitação para a luta. O conhecimento científico e a arte do enfrentamento são fundamentais para a formação.
No entanto, através do estudo de teologia, do conhecimento da religião chega-se à alma de um povo que hoje, neste campo, anda à deriva e ao sabor dos ventos pentecostais ou reacionários do anti-ecumenismo da maioria das igrejas que atuam na Amazônia.
Individualmente, algumas igrejas já agem neste sentido, em especial a católica. Mas está cabendo agora a ela, juntamente com as igrejas evangélicas, numa abordagem ecuménica, a tarefa de formação popular de lideranças, através do NEE da UNIPOP. O público-alvo são as lideranças dos movimentos e das igrejas progressistas que deverão ser multiplicadoras da vivência da justiça, do amor e do ecumenismo de Deus nas baixadas da Amazônia.
Ill — Discussão: Marxismo e fé cristã
A proposta de ecumenismo na UNIPOP não se restringe à participação de algumas igrejas. Não é apenas um envolvimento eclesiástico que a caracteriza. Mas ela avança para além, para dentro de outras visões do mundo. Pois, as lideranças dos movimentos, mesmo as que emergem de algumas comunidades eclesiásticas, em grande parte não são mais ligadas às igrejas e muitas também se declaram marxistas, posicionando-se criticamente frente à concepção cristã do homem e do mundo.
Neste curto espaço não há possibilidade de definir melhor o que isto significa em sua amplitude. Quem milita no movimento sabe que há várias correntes políticas de concepções diversas que perfazem o total das forças de esquerda no Brasil. Mesmo não podendo entrar em detalhes, é necessário que seja colocado o fato de que há um debate cada vez mais claro em torno das ações unitárias de cristãos e marxistas.
Sem dúvida, há muito mais aspectos consensuais entre o cristão libertador e o marxista revolucionário moderno da América Latina do que dissensões. Isto faz com que o convívio no planejamento público da organização na base se torna possível, pois é necessário.
Mas não há dúvida também de que as visões de mundo do homem e da sociedade divergem em pontos cruciais como p. ex. a esperança escatológica, a ação de Deus na história, a concepção de um Reino, a intencionalidade da criação do mundo por um lado e a visão materialista da história, a tomada da história pelos trabalhadores, a revolução e a sociedade comunista por outro lado, só para citar alguns pontos.
Na prática estabelece-se uma contradição entre o caminho das Igrejas, que não fazem distinção de classes quanto ao atendimento às pessoas, e o caminho da revolução através da luta da classe trabalhadora para conquistar o poder.
Pode até ser que essas diferenças não sejam essenciais nem fundamentais. A teologia tem dado passos grandes na direção de diminuir essas diferenças. Os marxistas de hoje, modernos, internacionalistas e pluralistas igualmente não desconhecem a necessidade de levar a sério um aspecto básico do povo trabalhador, que é sua fé cristã. Mas há muitos preconceitos sectarizantes de ambos os lados a serem eliminados, até se chegar ao cerne da questão, que é prioritária a ambos: a criação de uma nova sociedade. Mas qual: o Reino de Deus ou a sociedade comunista?
O ecumenismo enfrenta este debate. É necessário e urgente que ele seja feito. A capacitação e formação de lideranças exige que se encontrem caminhos conjuntos, através do respeito mútuo, do qual depende, em muito, a criação do novo, que dará condições de vida, finalmente, aos povos brasileiros sofridos e dizimados.
O NEE é um fórum onde este debate se acende.
IV — O novo: Ecumenismo como modernidade
Tudo que é sólido desmancha no ar, analisam Marx e Engels no Manifesto Comunista, quando descrevem a burguesia capitalista que constrói e derruba o que construiu, para novamente construir e novamente derrubar, fazendo com isto avançar a história e criando um mundo à sua imagem e semelhança (Manifesto Marx/Engels, p. 12).
Tudo que é sólido — das roupas sobre nossos corpos, aos teares e fábricas que tecem, aos homens e mulheres que operam as máquinas, às casas e aos bairros onde vivem os trabalhadores, às firmas e corporações que os exploram, às vilas e cidades, regiões inteiras e até mesmo às nações que as envolvem — tudo isso é feito para ser desfeito amanhã, despedaçado ou esfarrapado, pulverizado ou dissolvido, a fim de que possa ser reciclado ou substituído na semana seguinte e todo o processo possa seguir adiante, sempre adiante, talvez para sempre, sob formas cada vez mais lucrativas. (Berman, p. 97)
Neste processo, que faz parte do espírito da modernidade, não apenas as fábricas e os produtos, as construções e as pessoas vão sendo substituídos constantemente por outros, satisfazendo necessidades ou criando novas, mas também os valores humanos mais fundamentais, en¬tendidos como eternos, são colocados em cheque. A burguesia faz da dignidade pessoal um simples valor de troca, substitui as numerosas liberdades conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liber¬dade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal (Marx/Engels, p. 11).
O moderno é o novo que sempre se renova. A renovação burguesa não se preocupa com as relações pessoais e sociais, apenas com as econômicas, com o lucro. Ela destrói e acaba se autodestruindo, para se autoreconstruir de maneira mais eficaz e contundente. A modernidade, no entanto, como impulso para o novo, não é descoberta da burguesia. Ela existe, como procura pela perfeição em todas as fases da história humana. Para os luteranos deveria ser de grande importância analisar Lutero e os reformadores à luz da modernidade. Eles colocaram em cheque e destruíram a Igreja Católica de seu tempo. Ela teve que se auto-reformar para enfrentar a crise em que foi colocada. Questionaram profundamente os valores fundamentais da sociedade da época, feriram o sagrado, o que até aí era sólido. O véu do dogma intocável da intermediação da verdade divina através da hierarquia eclesiástica foi rasgado e com isto os reformadores colocaram os fundamentos de uma nova democracia, que deveria perpassar também as igrejas.
Mas não há poucos que analisam que, pelo outro lado da medalha, abriram-se possibilidades de sectarismos e inúmeros cismas, de novas separações, que perfazem também o moderno das reformas. Colocaram uma bomba-relógio no sistema feudal. O capitalismo foi um fruto econômico desta procura pelo novo. Se um dia ele foi a redenção, hoje anda de mãos dadas com as lutas de classes, com as separações, com a injustiça, com a exploração pelos juros e pelas dívidas. E por isso que ele está sendo assediado cada vez mais pela modernidade da grande luta universal pela democracia verdadeira, pelo socialismo, pela procura por uma sociedade sem injustiças e sem explorações desumanizantes.
Se na época dos reformadores a necessidade foi a separação para a criação do novo, a exigência da modernidade de hoje é a unificação dos trabalhadores, separados entre si por crenças e por concepções diversas, e por isso enfraquecidos e dominados. O movimento ecumênico, a nível de igrejas, tem caminhado no sentido de procurar por ações comuns entre elas, que até aí agiam totalmente separadas. Mas dentro deste movimento tem-se evidenciado sempre de novo que o ecumenismo, como exigência da vida do povo cristão ou não, não acontece em princípio a nível de igrejas, mas, num momento anterior, a nível da classe social. E é neste nível que ele continua tendo sua vitalidade. As Igrejas que permanecem no esforço e no diálogo ecumênico sabem que o ecumenismo só prevalecerá a nível eclesiástico se for fomentado e sistematizado a nível de classe social. E neste sentido quem tem mostrado mais necessidade de união para a sobrevivência é a classe trabalhadora. É preciso reconhecer hoje, portanto, que o ecumenismo e a luta da classe trabalhadora andam inseparável e modernamente juntos.
A modernidade do ecumenismo reside, pois, no fato de ser ele um elo fundamental na luta da classe trabalhadora por uma sociedade nova. A sociedade capitalista, que gera a miséria de todos os matizes, com todas as suas consequências materialistas, espirituais e culturais, precisa ser substituída por uma sociedade justa onde não reine mais o capitalismo que equivale à procura do lucro, de um lucro sempre renovado, da rentabilidade' (Weber, p. 4).
Esta modernidade exige o enfrentamento. As forças que querem o novo, o humano, o vital não poderão estar fora do caminho da modernidade, mas esta deverá passar por dentro delas e de seus movimentos inovadores. As igrejas que se afastam desse processo dialético, que lhes é jogado no colo pelo próprio povo, agarrando-se a sua estrutura ou a compreensões mitológicas, fixas de Deus, não são ecuménicas e não participam da modernidade, apesar das aparências. O caminho para além das contradições teria de ser procurado através da modernidade, não fora dela, sabia Marx. (Berman, p. 125.)
A modernidade, assim entendida e assim pretendida, não deverá passar portanto pelos países desenvolvidos e seus programas econômicos e políticos oficiais, nem pelas propostas dos grandes conglomerados industriais e comerciais. Eles são uma proposta tida como moderna, mas já fadada ao desaparecimento. A modernidade do ecumenismo, da luta da classe trabalhadora passa pela organização do bairro, pela CEB, pelos grupos de estudo bíblico, pelas organizações populares e sindicais, pelas igrejas ecumênicas, pelas organizações de formação popular, pelo partido dos trabalhadores.
Jesus nos apresenta este espírito de modernidade de uma maneira insofismavelmente clara em suas ações, como p. ex. nos episódios da entrada em Jerusalém: Se os discípulos calarem, as pedras clamarão (Lc 19.40). Eis um testemunho da inevitabilidade da derrocada de um sistema mundial, universal, corrupto pela desumanidade. A purificação do templo, a cura de cegos e coxos — párias sociais — excita a indignação daqueles que até aí eram os guardiães do espírito moderno e avançado, os sacerdotes e escribas. Jesus refere-se ao modernismo do Antigo Testamento: Da boca de pequeninos e crianças de peito tiraste perfeito louvor (Mt 21.16). A história da figueira (Mt 21.18ss.), evidencia de maneira drástica a posição de Jesus diante do infrutífero, diante do que não tem sentido.
Uma nova proposta de vida se alevanta, que precisa ser abafada e finalmente sacrificada na cruz pela prepotência das forças que lutam para manter o que usurparam. Mas o poder da conquista do imprescindível à sobrevivência humana é mais forte. A ressurreição de Cristo para dentro do hoje é o testemunho mais material, moderno e transcendente que conhecemos deste poder.
Sobre este testemunho baseia-se o esforço ecumênico dentro da classe trabalhadora. Um esforço que não permanece apenas na área religiosa, mas que se mescla e se liga aos vários processos e momentos da sociedade, à política, à cultura, à ciência, formando uma trama que é a base da construção da própria sociedade sem classes e sem injustiças: a sociedade socialista.
A tal ponto acontece isto, já agora, que os representantes da classe burguesa, conservadora, procuram, com muito dinheiro, reconstruir a Confederação Evangélica do Brasil, como entidade de combate ao ecumenismo e organizar o programa Lumen 2000 para tentar manter o povo numa ilusão religiosa, que evitaria a transformação necessária. O ecumenismo é um poderoso instrumento da modernidade.
V— Práxis: Experiências realizadas
No decorrer dos últimos anos as atividades ecuménicas ocasionais entre duas ou mais Igrejas foram muito animadoras e evoluíram para contatos mais abrangentes. A UNIPOP passou a incluir os ecumênicos entre seus parceiros de diálogo. Atualmente o Núcleo de Estudos Ecumênicos é composto de luteranos, episcopais, metodistas, batistas, presbiterianos e católicos que se reúnem semanalmente para estudar, debater e programar. As duas primeiras realizações, um curso de quatro semanas em 87 e um seminário sobre o tema Igreja e Estado, nos deixaram muito animados. Foi algo inédito aqui e um passo muito importante. A grande questão que nos é colocada é como fazer teologia hoje no movimento popular e sindical na Amazônia. (Rothe).
Neste sentido passou-se a organizar o trabalho ecumênico no ano de 1988 e pudemos contar para tanto com uma equipe, formada pelas igrejas acima já citadas, que mais e mais procurou se integrar e formar um coletivo.
As atividades de 88 foram as seguintes:
Dermi Azevedo, da Agência Ecuménica de Notícias (AGEN) abriu os trabalhos em março com uma palestra sobre Violência Ideológica e que foi seguida de imediato por um seminário que tinha por assunto a relação Igreja e Estado.
Mais adiante pôde-se ter a grata possibilidade da presença de João Dias de Araújo, do ITEBA, de Salvador e do prof. Heraldo Maués da UFPa. Os temas tratados por eles foram: Teologia com o povo e Catolicismo popular e controle eclesiástico.
Júlio de Santa Ana participou e dirigiu um seminário com o tema Ecumenismo e Libertação.
Tudo isto, além de serem programações abertas ao público interessado, serviu especialmente como preparo para um curso de teologia bíblica popular, que se estendeu de agosto a novembro de 88.
Vários cultos ecumênicos reuniram o povo em ocasiões como as festividades do dia da abolição da escravatura, ou como protesto contra o fechamento da Santa Casa, depois de quase 400 anos de funcionamento.
Foi organizado, depois editado em 1989 pelo Núcleo de Editoração, um livro ecumênico de cantos que serve entre outras coisas, como início de debate sobre a questão da espiritualidade no movimento popular de Belém.
Para o Natal foi organizado, juntamente com o Núcleo de Cultura da UNIPOP e várias igrejas, em criação coletiva, uma apresentação natalina, que teve grande sucesso e foi reapresentada várias vezes em vários locais.
Para o ano de 89 está programado um seminário sobre as eleições presidenciais, com posterior preparo de uma cartilha. No espaço de tempo anterior, está se realizando um curso de formação para monitores.
Perpassa tudo isto uma constante preocupação e um constante debate sobre a integração da teologia no movimento popular. Pois nem sempre é levado a sério o trabalho teológico, quando se trata de organizar o povo. Este é o desafio mais sério, mas também o mais promissor, para as lideranças dos movimentos.
VI — Bibliografia
– AZEVEDO, D. Violência Ideológica. Mimeo. UNIPOP: 1988.
– BERMAN, M. Tudo Que é Sólido Desmancha no Ar: A Aventura da Modernidade. 6; reimpressão. Companhia das Letras, Editora Schwarcz Ltda., 1988.
– MADURO, O. Religião e Luta de Classes. Petrópolis: Vozes, 1981.
– MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto Comunista. 6: ed. São Paulo: Nova Stella Editorial, 1985.
– ROTHE, R. M. Apresentação do Núcleo de Estudos Ecumênicos e Relatório do NEE. Mimeo. UNIPOP: 1988.
– VÁRIOS. A Educação como Ato Político Partidário. São Paulo: Cortez Editora, 1988.
– WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 3: ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1983.