l — Um pouco de história
Nos anos setenta houve uma ocupação de solo urbano em Canoas. E difícil precisar exatamente, quando essa articulação iniciou; mas 1976 foi o ano da entrada na terra. A ocupação passou a chamar-se Vila Santo Operário em homenagem ao operário assassinado num acidente de trabalho de torturadores. Todo o planejamento dessa ocupação foi feito a partir da Vila Cerne. As famílias de Da. Isaura, Da. Carmem e do Seu Ervino foram as enfrentantes. O frei António e sua irmã Matilde auxiliaram na organização.
Muito cedo essa ocupação tornou-se irreversível. O povo foi muito e a organização foi boa. Da noite pró dia germinavam, como que brotando do chão, dezenas de barracos ao lado dos que já estavam plantados firmemente. Havia comissões para coordenar as atividades: os terrenos eram demarcados, as ruas eram traçadas; em seu aspecto externo essa vila em nada perde para qualquer loteamento feito por engenheiro. Água e luz foram imperativos para a prefeitura; evidentemente precisaram ser conquistados, como tudo na periferia.
A luta continua. Entre os grupos organizados na vila encontra-se também a pastoral católica popular — organizada também em outras vilas com em torno de 30 comunidades de periferia —, francamente aberta para a participação de pessoas de outras igrejas. Vários são os seus serviços: saúde (encontros de reflexão e palestras), alimentação (grupos de pão, ticket do leite, refeições comunitárias), puericultura (pesagem e acompanhamento de crianças), pastoral (evangelho, celebrações). . . Entre eles está também o Clube de Mães.
O Clube de Mães reúne-se todas as terças-feiras à tarde, das 14:00 até às 17:00 horas. As reuniões começam com os diversos grupos refugos de tecido da indústria de confecção; outro grupo de 3 mães, acompanhadas de suas filhas adolescentes, está fazendo pintura em tecido, lenços, guardanapos, toalhas de enxugar louça; outro grupo de 5 mães está tricotando casaquinhos; num outro canto mais 2 mães, acompanhadas por outras duas aprendizes estão cortando e costurando roupa infantil. Outro grupo, geralmente o maior, em torno de 6-7 mães, está produzindo tapetes com tiras de tecido atravessadas com tesouras através de sacos plásticos; algumas das filhas mais velhas estão ocupando as crianças, numa criativa misturança de brincadeiras, rezas, danças da Xuxa, teatrinhos, versinhos. A produção tem dois destinos: partilha — muitas vezes engrossada pelas doações de roupa através da Caritas — e feirinha — uma maneira de fazer caixa para atender necessidades de material de reposição, alimentação. . .
Em torno de 16:00h interrompem essas atividades manuais. Forma-se um quadrado de bancos para realizar o evangelho ali mesmo no salão comunitário mal iluminado e mal arejado, tendo que disputar espaço auditivo com as crianças e, às vezes, até com cachorros que teimam em não entender a linguagem do pontapé. Uma das mães lê o evangelho previsto para o próximo domingo. Há somente alguns Novos Testamentos na Linguagem de Hoje, pois muitas mães não sabem ler. Em seguida o grupo procura compreender o texto, valendo-se de três momentos: 1) Tentam remontar o conteúdo do texto coletivamente; cada uma é desafiada a contar um pedacinho. 2) O que mais chamou a atenção ou o que as mães acharam bonito no texto. 3) O que quer dizer pra hoje. Como em todos os grupos, algumas se destacam nos comentários e a maioria permanece mais quieta, só raramente arriscando um palpite. Às vezes o evangelho está emoldurado por cantos.
Em seguida chega o momento das preces; ele se dá geralmente já ao redor da mesa, integrando todas as presentes numa grande roda, já solicitada impacientemente pelas crianças com fome no fim da tarde. A maioria participa aqui; também as crianças. Às vezes se retoma algum assunto do evangelho daquele dia; o tema central são os pedidos por saúde, secundados por preces mais gerais pela união e agradecimentos pela comida. Geralmente as preces são encerradas com Pai-Nosso, Ave Maria, ou algum outro refrão litúrgico.
O sopão comunitário — para algumas mães e crianças a primeira e provavelmente única refeição daquele dia — é simples mas gostoso e feito com muito carinho. Algumas vezes há variação: polenta com molho, cueca virada para acompanhar, pirão de feijão com arroz… os ingredientes em parte são conseguidos através de campanhas de arrecadação, em parte são conseguidos junto à prefeitura, em parte são adquiridos com o dinheirinho em caixa, e, quando todas as cordas rebentam, cada uma traz alguns ingredientes de casa. À medida que cada família vai ficando pronta, as mães vão se dispersando, voltando pra casa; algumas têm de encarar um marido irritado com sua ausência de casa; outras nem puderam vir por causa disso.
II — Observação Participante
Desde meados de 1987 estou uma terça-feira na Comunidade Divino Espírito Santo da Vila Cerne e na outra terça-feira na Comunidade N. S: da Luz na Vila Santo Operário. Me propus uma pesquisa para meu trabalho de tese de mestrado sobre leitura popular da Bíblia. Nessa pesquisa estou me orientando pelo método da observação participante. Trata-se de uma tentativa de equilibrar dinamicamente a observação e a participação; não estou lá somente para participar das atividades, pra não anular o pesquisador; também não estou lá somente para observar, sem me integrar à participação, para não tornar o grupo de mulheres mero objeto de pesquisa.
No início participei de muitas sessões, sem preocupar-me em segurar minhas observações por escrito; isso me possibilitou uma integração paulatina e mais livre; depois de mais ou menos 3 meses comecei a fazer algumas anotações do que observava durante as atividades: impressões, conversas — muitas delas contendo informações sobre o todo dos serviços — e sobretudo o desenrolar do que as mães chamam o evangelho, que é o momento de leitura e comentário de um trecho bíblico; completava essas anotações em seguida. Depois de mais algumas vezes procurei segurar alguns momentos de evangelho na íntegra, anotando freneticamente os comentários, assim como eram ditos; como isso comprometia a minha participação, intercalava terças-feiras de exclusiva participação; a partir de agosto de 88 fui preparando o terreno para começar a usar o gravador em outubro, intercalando novamente terças sem gravador.
Em todo o processo até agora é preciso ter consciência de que sou um homem em meio a um grupo de mulheres; muitas vezes tive a impressão de que, apesar das apresentações de início, incluindo os propósitos de minha presença ali, para muitas até hoje não está bem claro por que estou ali; por um lado é comum chamarem-me de frei ou irmão; por outro lado raramente chamam-me também de João, ou de pastor; significativas foram para mim as vezes em que tiveram liberdade de falar comigo criticamente em relação ao modo como freis e irmãs estavam conduzindo o trabalho. Na comunidade Divino Espírito Santo há muito deixou de haver participação regular de frei ou irmã; as mães não raro expressam seu sentimento de abandono; por isso provavelmente gostam de chamar-me de frei, também quando apareço lá com um de meus filhos. Já na comunidade N; S, da Luz há presença de uma irmã, às vezes duas e até três. Sinto que a liberdade e proximidade em relação a mim é menor. Naquela comunidade já fui convidado e visitei várias famílias em suas casas; nesta ainda não fui convidado e também não fiz visita.
Ao longo de todo esse tempo as observações resultaram em 8 enfoques que gostaria de partilhar com vocês, mesmo que de uma forma ainda bruta, do jeito que estão no momento. Trata-se de questões que foram surgindo e tomando corpo. No momento disponho de muitas atas e transcrições de fitas, das quais escolhi duas (uma de cada comunidade) para apresentar e comentar rapidamente, A partir desses enfoques estou elaborando ainda uma série de perguntas para entrevistar várias mães e confirmar ou desconfirmar algumas hipóteses presentes nesses enfoques; portanto os comentários ainda serão muito insuficientemente embasados, pois essa coleta de dados ainda está pela frente.
Ill — O evangelho na Comunidade Divino Espírito Santo
É dia 30 de agosto de 1988. Numa sala nos fundos da igreja Santa Cruz (o nome foi alterado por uma diretoria de classe média) reúne-se o Clube de Mães pobres que insiste em guardar a sua identidade com o nome de Divino Espírito Santo. Hoje vieram 14 mães rodeadas por 15 crianças de aproximadamente 2 a 12 anos de idade. Há muitas caras novas; faltam algumas mães; Lúcia, Elza, Isaura (aquela do início), que foi operada da vista. Zezé distribuiu alguns exemplares do NT na Linguagem de Hoje, e entregou a palavra a uma mãe, para que fizesse a leitura de Mc 8.31-36. Ela lê pausada e claramente o texto, terminando com: Palavras do Senhor! (lembrada por Zezé com o cotovelo), ao que o grupo todo respondeu com: graças a Deus!
Jesus começou a ensinar os discípulos, dizendo: —O Filho do Homem terá de sofrer muito. Será rejeitado pelos líderes judeus, pelos chefes dos sacerdotes e pelos professores da Lei. Será morto e, três dias depois, ressuscitará. Jesus dizia isso com toda clareza. Então Pedro o levou para um lado e começou a repreendê-lo. Jesus virou-se, olhou para os discípulos e também repreendeu Pedro, dizendo: — Saia da minha frente Satanás! Você está pensando como um ser humano pensa, e não como Deus pensa. Aí Jesus chamou a multidão e os discípulos, e disse: — Se alguém quer me seguir, esqueça os seus próprios interesses, carregue a sua cruz e me acompanhe. Porque quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa e por causa do evangelho, vai salvá-la. Que vantagem terá alguém se ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida?
Evinha: Deu pra entender o que ela leu? Quem sabe a gente montava a história do evangelho, cada uma contando pedacinho. . . Quem lembra do que Jesus estava falando?. . . Ninguém lembra o que Jesus estava falando prós discípulos?
Vera: Jesus disse que o Filho do Homem teria que sofrer muito.
Evinha: Jesus falava de sua própria morte; o Filho do Homem seria rejeitado pelos judeus, pelos chefes e sacerdotes, pelos entendidos da Lei. . .
Zezé: (lê) rejeitado pelos líderes judeus. . . me desculpem, mas eu sei ler pouco. . .
Evinha: Depois que Jesus terminou de falar, Pedro repreendeu Jesus. E daí, o que Jesus fez?
Zezé: (lê). . . Jesus disse com toda clareza. . .
Carmem: Jesus disse prá Pedro: Saia da minha frente, Satanás!
Evinha: Aí Jesus chamou quem?
Uma mãe: A multidão. . .
Evinha: A multidão e os discípulos. . . Que é que tinha que fazer, pra seguir Jesus?. . . Deve esquecer-se de si, carregar a sua cruz e acompanhar. Depois ele disse mais alguma coisa. . . Vamo lá, gente, falta mais um pedacinho, pra nóis termina. . . só um pedacinho… Jesus terminou, dizendo: (lê). . . quem perde a sua vida por minha causa e do evangelho, vai salvá-la.. . Qual é aparte que chama atenção?
Vera: Que vantagem terá alguém, se ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida?
Bárbara: (lê) … se alguém tiver vergonha de mim e do meu ensino, nessa época de incredulidade e maldade, então o Filho do Homem terá vergonha dele também, quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos. . . (é o v. 38 que não tinha entrado na leitura)
Zezé: Jesus dizia isso com toda clareza.
Evinha: Se alguém quer me seguir, deve esquecer-se de si mesmo, carregar a sua cruz e me acompanhar. . . Mais alguém, gente, uma partezinha que ficou gravada na cabeça?
Paulina: (aspirante a Irmã Clarissa preenchendo condição de ter um apostolado antes de ser admitida na ordem) Me chamou atenção aquela parte onde Jesus diz que perder a sua vida por minha causa é ganhá-la.
Carmem:. . . que vantagem se tem em ganhar um mundo e perder a sua vida.
Evinha: O que será que a gente entendeu dessa mensagem?
Bárbara: Essa parte que me chamou atenção (refere-se ao v. 38), dá bem pra hoje; nessa época de maldade a gente tem que ser curto e firme. (Conta uma experiência com um grupo que não quis convidá-la, por ela ser da igreja; mas ela foi e disse o que tinha que dizer, não se importando com gente que não gostou). Tem que falar, pisar fundo ali, ter força, não ter vergonha do que a gente faz e acredita, de vir no clube, de ser agente negro que nem eu sou.
Evinha: A gente encontra tudo isso de crítica pela frente. Aí me lembrei que pra seguir Ele, tem que esquecer um pouco de si. Às vezes tem que deixar a vida da gente em casa, na família, com marido, morrer um pouco, pra fazer trabalho como Jesus quer.
Carmem: E como aqui no clube; quando falta uma, a gente já sente falta; como a Da. Isaura que foi operada. . .
Evinha: Zezé, fala alguma coisa pra gente encerrar.
Zezé: A gente tem que ser franca pra todos. . . pró marido. . . e não ter vergonha do que a gente faz.
Evinha: Ne, Da. Jurema, que vantagem a gente tem. . . Não adianta ter uma vida cheia de riqueza, de boniteza, se a gente não segue Jesus. . .
Carmem: Quem não tem nada, tem muitos amigos. . .
Vera: Não tem nada que poderá pagar, para ter de novo a vida.
Paulina: Ali numa parte Jesus disse que os líderes não iam gostar do que ele tava dizendo. Tem mães que criticam o clube; tem políticos de governo que não querem que o povo se organize. Bárbara: Acho que deu, né?! Vamos fazer uma roda na mesa para as preces.
Zezé: Eu queria pedir pró meu filho aqui que está com dor de ouvi¬do, de puro nervoso que viu o amigo dele caindo da árvore. . . pra largar de ser arteiro e não trepar em árvore. . . rezemos ao Senhor:
Todos Senhor, escutai a nossa prece.
Carmem: Eu queria pedir pras mães que estão voltando ao clube, que iniciaram com nóis e agora estão junto com nóis de novo. . . rezemos
ao Senhor:
Paulina: Eu queria pedir pelo menino que caiu da árvore e quebrou o braço. . . rezemos ao Senhor: Todos: Senhor, escutai a nossa prece.
Carmem: Queria pedir pela Da. Isaura, que ela fique logo boa da operação no olho. . . rezemos ao Senhor: Todos Senhor, escutai a nossa prece!
Zezé: (desentendeu-se com sua filha que agora está em casa da mãe; diz que é mãe, e mesmo que ela fez aquilo, gosta dela) Eu queria pedir a bênção para todos meus 5 filhos, pois quero ser uma mãe boa. . . rezemos ao Senhor.
Todos Senhor escutai a nossa prece!
Ao redor da mesa rezamos ainda o Pai-Nosso, Ave Maria, e alguém terminou dizendo: Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! e todos responderam: Para sempre seja louvado! Todos fizeram o sinal da cruz.
Paulina veio falar comigo: Sou quase Irmã. Esteve nesse grupo pela primeira vez. Nesse dia tinha polenta com molho de ovo.
IV — O evangelho na Comunidade N. Sá. da Luz
É dia 16 de agosto de 1988. Cheguei às 15:40 horas, e as mães já estavam arrumando seus trabalhos, fechando a máquina de costu¬ra, para levá-la para outra sala, pois a capela já fora várias vezes arrombada, apesar das grades nas janelas e das trancas de ferro nas portas. As mães do acolchoado terminaram mais cedo, pois tinha acabado o pano de capa; frei Zelmar me disse que está em falta em vários lugares das comunidades; disse mais, que era necessário fazer novamente campanhas junto aos burgueses. Os burgueses dão, quando a gente pede, eles só não organizam; então a gente pede o que eles dão e organiza o povo. Outro dia numa campanha deu tanta farinha que deu para as mulheres fazer pão durante um mês. Sentamos nos quatro bancos dispostos em quadrado. O evangelho começou com um canto: Louvado sejas meu Senhor. . . Em seguida Marlei fez a leitura de Lucas 1.39-56, terminando com Palavras do Senhor, ao que todos responderam: Graças a Deus.
Alguns dias depois, Maria se aprontou e foi depressa para uma cidade que ficava na região montanhosa da Judéia. Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel. Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança se mexeu dentro dela. Então, cheia do poder do Espírito Santo, Isabel disse bem alto: — Você é a mais abençoada de todas as mulheres, e a criança que você vai ter é abençoada também. Quem sou eu, para que a mãe do meu Senhor venha me visitar?! Logo que ouvi você me cumprimentar, a criança ficou alegre e se mexeu dentro da minha barriga. Você é feliz porque acredita que vai acontecer o que o Senhor lhe disse. Então Maria disse: O meu coração louva ao Senhor. A minha alma está alegre por causa de Deus, o meu Salvador. Porque ele se lembrou de mim, sua humilde serva! De agora em diante todos vão me chamar de mulher abençoada, porque o Deus Poderoso fez grandes coisas por mim. O seu nome é santo, e ele mostra a sua bondade a todos os que o respeitam em todas as gerações. Levanta a sua mão poderosa e derrota os orgulhosos com todos os seus planos. Derruba dos seus tronos reis poderosos e põe os humildes em altas posições. Dá fartura aos que têm fome e manda os ricos embora com as mãos vazias. Ele cumpriu as promessas que fez aos nossos antepassados e ajudou o povo de Israel, seu servo. Lembrou-se de mostrar a sua bondade a Abraão e a todos os seus descendentes para sempre! Maria ficou mais ou menos três meses com Isabel e depois voltou para casa.
Regina: Deu para ouvir o evangelho, todos ouviram?
Rosa: O barulho foi bastante. . .
Irmã: Quem sabe as crianças sentam lá dentro na outra sala de novo!
Marlei: É pra ler de novo o evangelho?
Regina: (faz nova leitura) Nós podia agora montar a leitura, cada uma de nós dizer uma parte. . . Começa ali, onde Maria se aprontou, para ir para uma cidade da Judéia. . .
Rosa: Ela foi visitar Isabel. . .
Alzira: Isabel falou, que chegou a mais santa.
Irmã: Isabel se admirou de ser visitada pela mãe de seu Senhor; quem era ela, para receber aquela visita. . .
Regina: Qual é a parte que mais chama atenção?
Uma mãe: A criança sentiu o Espírito Santo. . .
Cecília: Como é que uma mãe tem coragem de tomar injeção, pra tirar uma criança?
Regina: Vamos ver primeiro o que chamou atenção; depois a gente vê pra hoje.
Alzira: Parte bonita é ela ser idosa e ficar grávida.
Regina: Também chama atenção aquela parte: derruba os poderosos e eleva os humildes, dá fartura aos que têm fome e manda os ricos embora de mãos vazias. . . Deus cumpre as promessas!
Cecília: Por isso é bom rezar todas as noites pró Espírito Santo.
Regina: O que quer dizer pra hoje? Que quer dizer essa visita?
Rosa: Maria visitou, pra ir ajudar.
Regina: Ninguém visita ninguém, aqui?
Rosa: Tem que visitar os doentes.
Cecília: Temos que nos visitar mais, ter mais união, pra Deus chegar no nosso coração.
Irmã: Nesse dia de hoje, vamos visitar só os doentes?
Alzira: Todas as visitas que tem amizade, se considera, pra ter mais paz e amor.
Rosa: As vezes a gente se sente sozinha, abandonada; não tava doente, mas sentia falta de visita.
Helena: Pessoas idosas. . .
Irmã: (impaciente) O que vamo fazer então com essas mães que não estão aqui?
Regina: Temo que ver onde elas andam.
Cecília: Irmã, eu podia dizer uma coisa pra senhora? (Conta o causo de uma mulher que deixou queimar o pão).
Irmã: Aquilo que vocês fazem aqui, não é pra Irmã que vocês fazem, é pra comunidade de vocês. Aquilo que vocês recebem aqui, dão um pouco prós outros.
Regina: Quem é que não tá vindo pró clube? (Começam a lembrar várias ausentes).
Helena: Elisa está faltando muito. Iara ficou de vir e não veio. . .
Irmã: Interessante saber, se elas foram para emprego ou tão doentes. . .
Helena: Ela foi no médico, faz mais de uma semana que ela está com dores.
Irmã: O que se poder fazer pra trazer essas mães de volta? Já faz muito tempo que Inês se afastou da igreja. Nós temos que visitar essa mãe. (São lembradas mais algumas ausentes).
Irmã: Olha, quantas mães pra visitar, ouviram?! Quem vai visitar a Célia. Por que as mães não se unem, para visitar?!
Helena: Eu já fiz visitas; convidei mães pra vir aqui no clube; algumas vêm, não gostam, vão embora. . . eu to ressabiada!
Irmã: Não precisa convidar, só visitar. . .
Alzira: Sendo pela parte da tarde, eu vou. . . Pra encerrar a parte do evangelho, vamos fazer um cantinho sobre a Maria; porque o canto é muito comprido (7 estrofes), vamos cantar só dois ou três versos.
Maria, mãe dos caminhantes, ensina-nos a caminhar.
Nós somos todos viandantes, mas é difícil sempre andar.
1. Fizeste longa caminhada, para servir a Isabel.
Sabendo-te de Deus morada, após teu sim a Gabriel,
2. Depois de dura caminhada, para a cidade de Belém,
não encontraste lá pousada; mandaram-te passar além. . .
Regina: A merenda tá ficando pouca; nós temos que ver como fazer. A partilha também tá pouca.
Sandra: De uma terça pra outra a gente pode trazer o que está faltando. Cada um traz um pouco.
Irmã: O mínimo é partilha, o ofertório, né?!
Uma mãe: O pouquinho de cada um dá bastante.
Outra mãe: Uma folha de couve, uma xícara de arroz. . .
Irmã: Um pedaço de cebola, ou de tomate. . . De repente a gente acha alguma coisa na horta comunitária. . . Quinta-feira tem a feirinha da Nossa Senhora. Tem celebração de encerramento do ano Mariano.
Regina: Também a limpeza do salão tá difícil; faltou água. . . Uma mãe: Quando é?
Irmã: Quem tá doente não venha, não queremos. (As mães ficam combinando quem vem e quando). É bom trazer um pouco de material, que aqui não tem.
(Aqui começou uma conversa paralela entre Cecília e Regina: depois a Irmã também entrou. Cecília reclamou que na missa de domingo, dia dos pais, ela queria dizer uns versos, e não deixaram. Regina disse que tinha que vir no sábado, quando se prepara a liturgia. Ela insistiu na reclamação e pediu pra dizer os versos; disse-os ali mesmo. A Irmã arrematou que tinha que vir no sábado, que depois não dava mais.)
Nos reunimos todos ao redor da mesa, com um sopão de verduras e farinha de mandioca. Houve oração comunitária, na qual só ocorreram intercessões a Deus e à Nossa Senhora por casos de doença, seguidas de Pai-Nosso e, três vezes, da invocação: Nossa Senhora da Luz!, à qual todos respondiam: Rogai por nós!
Irmã: Quem das mães podia cuidar da N. Sá. da Luz (mostrando para uma caixinha com porta de vidro, contendo uma imagem, que está na parte da frente da capela). . . Pode ser duas ou três; botar umas flor, uns pano. . . vocês combinem entre vocês, quem poderia fazer isso!
V — Algumas observações e enfoques
Nessa parte gostaria de compartilhar com vocês algumas observações feitas a partir daqueles 8 enfoques mencionados no início; apresento-os assim como estão no momento, com alguns exemplos de referência aos comentários das mães.
1. O roteiro das perguntas
Antes de tudo é preciso dizer que se pode observar uma tendência geral dos grupos de leitura popular: trazer o conteúdo do texto, ou aquilo que dele se entendeu, imediatamente para o hoje. Apesar de os passos de leitura estarem visceralmente adotados, acontece muitas vezes que alguém vai chutando logo uma atualização. Trata-se de um verdadeiro aperto, para soltar sua associação. Frei António interpreta como uma incapacidade de se prender mais ao texto, e assim também justifica as três perguntas-roteiro: as duas primeiras, para ficar mais no texto, e a última então para deslanchar. O método se evidencia pedagógico: as mães devem se familiarizar mais com o texto bíblico; por isso as duas primeiras perguntas remetem as mães, ávidas por refletir o hoje, de volta ao texto. Por outro lado a atitude das mães, de partir logo pró hoje, coloca o texto bíblico claramente na categoria de media¬dor; não interessa o texto, como objetivo último, mas sim a vida; e é sobre ela que se quer refletir. O texto não pode passar de meio.
Um exemplo está no evangelho da Comunidade N. Sá. da Luz: em sua primeira intervenção Cecília mostra que já tinha feito uma caminhada de reflexões e associações; o momento é o da segunda pergun-ta, mas ela pula logo para a terceira; talvez se poderia também argumentar com indisciplina metódica; por outro lado é significativa essa indisciplina, sobretudo porque evidencia — mesmo que não deliberadamente — a mediação da Bíblia, para pensar as coisas da vida de hoje.
Ainda sobre o roteiro das 3 perguntas, a partir de uma conversa com a Bárbara me veio o seguinte: remontar o evangelho é quase como refazer o evangelho coletivamente; cada uma contribuindo com um pedacinho, é produção coletiva de sentido, espelhando no nível do espiritual aquilo que acontece no nível do material, a produção coletiva de acolchoados, roupas, pão, etc… Dizer o que chamou atenção, ou o que achou bonito, oportuniza a participação das muitas mães que não sabem ler, e —não habituadas nem em condições biológico-mentais para memorizar todo um trecho bíblico — pelo menos conseguem gravar uma ou outra palavra ou frase que as toca especialmente. Na terceira questão se procura tirar mensagem para hoje e até melhorar o evangelho, dadas as diferenças históricas. Essa última colocação praticamente indica para uma intuição de mediação hermenêutica.
2. A relação agente — povo
Apesar de todos os esforços para encurtar a diferença entre agentes e povo, não há como ne'gar que ela existe — no econômico e no cultural principalmente — e talvez seja maior do que se pensa. Muitos agentes já tentaram eliminá-las; as tentações de eliminá-las via linguajar errado ou repleto de expressões populares, ou via cachacinha no bar com os trabalhadores no fim do dia não passam de um triste espetáculo de hipocrisia. Só quem pensa que o povo é burro, é capaz de imaginar que o povo não percebe a hipocrisia. Por outro lado, a consciência das diferenças e a sua assunção pública e aberta pode carear muito mais aproximação, para o que o conhecimento e uso de linguajar mais popular pode ajudar.
No Clube de Mães pude perceber muitas vezes a atitude de agentes travestida de popular; quer dizer, todo o invólucro, a apresentação exterior é popular, mas o cerne continua muito autoritário e reducionista. Soltar o comando não é simples; realizar a troca de saberes, teoricamente aceita e aplaudida, eis a questão. No momento do evangelho reina um forte dogmatismo; outro dia surgiu a questão da virgindade de Maria, e ficou muito evidente a divergência entre irmãs e mães, tanto no conteúdo como no método; as mães argumentavam que Maria não pode ter continuado virgem depois do nascimento de Jesus, e as irmãs insistiam que Maria foi a única mãe virgem que entrou no céu.
O exemplo do evangelho na Comunidade N. Sá. da Luz mostra uma tendência a mais: reduzir tudo ao bom funcionamento da comunidade eclesiástica. As intervenções da irmã durante todo tempo revelam basicamente uma preocupação: a participação de cada vez mais mães, e as visitas devem ter — mesmo que inexpressamente (Não precisa convidar, só visitar) — o objetivo de aplainar o caminho, para a participação de cada vez mais mães. De resto parece importante para a irmã que as coisas funcionem, que esteja tudo limpo e arrumadinho. Essa proposta no fundo quer que o povo venha para a igreja e com sua presença legitime a igreja; parece uma proximidade interesseira da igreja em relação ao movimento popular. O horizonte parece ser a igreja e não o Reino de Deus. Nas intervenções das mães em geral se pode verificar a materialidade expressa (Maria foi visitar. . . Ser idosa e ficar grávida. . . Visitou, pra ir ajudar. . . Tem que visitar os doentes. . . sentir-se sozinha, abandonada, sentir falta de uma visita. . .) como um horizonte que nem toma conhecimento dos limites da igreja. Comparando as intervenções da irmã com as das mães, dá para verificar que as mães são muito mais fiéis ao texto, enquanto que a irmã faz um uso funcional do texto, direcionando a visita, levantada como central pelas mães, para o horizonte da comunidade eclesiástica.
3. A afirmação de si mesmo
Outra observação muito frequente é que os textos bíblicos dificilmente são percebidos como crítica ao indivíduo ou ao grupo a que se pertence. Quase sempre se encontra uma afirmação de si mesmo, como indivíduo ou grupo. Virtudes ou boas qualidades morais referidas, mesmo que marginalmente pelo texto, são um gancho para uma identificação: eu sou assim como diz ali na Bíblia. Uma hipótese interpretativa para esse fenómeno poderia ser: as mães pobres e espezinhadas resgatam um pouco de sua dignidade, afirmando-se dentro da Palavra de Deus. Outra hipótese é que uma espécie de senso comum do que é bom é ruim, do que é certo e errado acaba condicionando esse momento interpretativo do texto.
No evangelho da Comunidade Divino Espírito Santo aparece um pouco o fenómeno. Primeiro é Bárbara, que chega a usar um versículo fora do trecho lido, para afirmar sua atitude de enfrentar outro grupo representando a proposta do Clube de Mães. Em seguida Evinha confirma o sentimento de que a crítica que vem de fora é improcedente, e que isso implica em esquecer-se de si mesmo (sofrer), fazendo assim uma clara ponte com o texto. Em seguida Carmem volta a afirmar que o clube é o lugar onde ocorre a atitude moralmente louvável de sentir, quando falta alguém. Quem não tem nada, tem muitos amigos é afirmação de sábia experiência popular (contradiz com a experiência do filho pródigo que só tinha amigos, enquanto tinha dinheiro); é a afirmação de si mesma enquanto pobre.
4. Linguagem e classe social
A comunicação é atingida igualmente pela expropriação capitalista. Isso atinge diretamente a linguagem. Marcuschi distingue basica¬mente entre dois códigos: o código elaborado (usado pelas camadas dominadoras) e o código restrito (usado pela classe dominada). Cada um desses códigos tem suas características: construção de frases, uso de expressões, pronomes, pressuposições na fala. . . Ainda não estou em condições de apresentar um rastreamento sob esse enfoque; mas para a última característica mencionada tenho um exemplo da Comunidade N. Sá. da Luz.
Quando as mães começam a lembrar companheiras ausentes, Helena menciona Elisa e Iara. Na sua próxima intervenção Helena fala em ela sem definir a quem está se referindo. Uma característica do código restrito é pressupor que os outros saibam do que ou de quem se está falando; isso também explica o largo uso de pronomes. Quem usa o código elaborado sentiria aqui a necessidade de definir sobre quem se está falando, se é sobre Elisa ou Iara. Esse enfoque define o popular claramente como classe social oprimida, o que se manifesta também em sua linguagem.
5. Outros enfoques
Os outros quatro enfoques ainda estão muito no nível das hipóteses. Apresento-os sem detalhes e sem exemplificação.
Trabalho comunitário conduz à ideologia comunitária. E a questão da produção ideológica. Para que haja um jeito de pensar comunitário, é preciso uma revolução que estabeleça a propriedade comunitária dos meios de produção. O Clube de Mães produz comunitariamente bens de consumo essenciais, na área de alimentação, vestuário, saúde. . . E de se esperar que essa atividade comunitária material implique em atividade comunitária mental, que a comunitariedade seja o jeito de pensar a vida. Há que distinguir essa atividade daquela na fábrica, onde os resultados estão fora da determinação dos trabalhadores. É preciso se dar conta de que a relação entre trabalho comunitário e ideologia comunitária não acontece mecanicamente. E preciso lembrar também que a ideologia dominante é outra; dominante aqui significa que ela constantemente volta a se impor, atingindo também as iniciativas alternativas; são as famosas recaídas no individualismo.
Como lê a realidade, assim também lê a Bíblia. Essa hipótese é muito próxima à anterior. Quem faz uma leitura fundamentalista da Bíblia, já está fazendo uma leitura fundamentalista da realidade e vice-versa; o instrumental que se usa para decifrar a realidade, também se usa para decifrar a Bíblia. A ideologia dominante impõe uma leitura fundamentalista da realidade, que aliena a experiência diária dos oprimidos. Quando os oprimidos se propõem decifrar a realidade com base em sua experiência diária de desapropriação, essa leitura se fará sentir também com relação à Bíblia. É preciso cuidar para não cair no mero determinismo cronológico.
Na leitura popular da Bíblia o povo é sujeito, e não só extensão. Não se trata somente de popularizar o uso da Bíblia, tornar a Bíblia mais acessível ao povo; trata-se de não condicionar mais o povo em sua abordagem da Bíblia; não há pergunta popular que seja inadequada em relação à Bíblia. Dito positivamente, é preciso aceitar a materialidade das perguntas populares à Bíblia. Nessa perspectiva o povo é capaz de produzir num texto bíblico um sentido diferente do que aquele científico e pretensamente objetivo.
A leitura popular da Bíblia contrabalança a leitura científica dominante. É inegável o compromisso de classe da leitura científica. Quem não está disposto a fazer essa crítica hoje, está perdendo o bonde da história. A leitura popular é uma contribuição fundamental à hermenêutica bíblica; não é mais possível pensar a interpretação da Bíblia sem a contribuição popular. As tentativas de articular cientificamente essa contribuição popular estão sendo feitas através da leitura sociológica e da leitura materialista latino-americana, não necessariamente idênticas às leituras (sociológica e materialista) europeias.
6. Para terminar
Frei António me disse que a visita de Maria a Isabel é uma das histórias inspirativas do trabalho com as mães gestantes. Assim como Maria e Isabel conviveram e, grávidas, se prepararam para o nascimento de suas crianças, assim também as gestantes do Clube de Mães preparam em conjunto as roupinhas dos bebés que hão de vir; enquanto isso podem conversar sobre seus anseios e esperanças e sobre o evangelho. Enquanto vão trabalhando, vão se lembrando de Maria e Isabel.
Para alguma leitura complementar:
MARCUSCHI, L. Linguagem e Classes Sociais, Editora Movimento Co-Edições Urgs, Porto Alegre, 1975.
– SILVA E SILVA, M. O. DA. Refletindo a Pesquisa Participante, Cortez Editora, São Paulo] 1986.