Prédica: Tiago 1.12-18
Autor: Werner Fuchs
Data Litúrgica: Domingo Invocavit
Data da Pregação: 04/03/1990
Proclamar Libertação – Volume: XV
l — Introdução
No prefácio à tradução do Novo Testamento, em 1522, Lutero afirma:
O evangelho de João e sua primeira epístola, as epístolas de Paulo, especialmente Romanos, Gálatas e Efésios, e a primeira epístola de Pedro são livros que te mostram Cristo e te ensinam tudo o que é necessário e salvífico conhecer, ainda que jamais vejas ou escutes outro livro ou doutrina. Por isso a epístola de Tiago, comparada com eles, é realmente uma epístola de palha, já que não há nenhuma característica evangélica nela.
Na segunda edição Lutero retirou a expressão epístola de palha (refugo). Sua conceituação de Tiago transparece melhor no prefácio à própria carta, também em 1522:
Mesmo que tenha sido rejeitada pelos antigos, eu louvo esta epístola e a considero boa, pelo fato dela não propor doutrina humana, e por promover duramente a lei de Deus. Para dar minha opinião, porém, sem prejuízo de ninguém, considero-a não escrita por apóstolo. Primeiro porque, contrariamente a Paulo e toda a Escritura, ela dá justiça às obras. . . Segundo, porque ao querer ensinar a cristãos, não lembra em sua longa doutrina o sofrimento, a ressurreição, o Espírito de Cristo. . . Tiago não faz outra coisa do que instar para a lei e suas obras, misturando tão confusamente uma coisa na outra que imagino que tenha sido algum homem bom e piedoso que captou alguns ditos de discípulos dos apóstolos e assim os lançou sobre o papel. . . Designa a lei como lei da liberdade (1.25), sendo que Paulo a chama de lei da servidão, da ira, da morte e do pecado (Gl 3.23s e Rm 7.11,23). . . Em suma, ele quis combater os que confiavam na fé sem obras, e foi fraco demais. Quer alcançá-lo pela promoção da lei, quando os apóstolos o conseguem atraindo para o amor. Por isso eu não posso colocá-lo entre os livros principais, mas com isso não quero impedir ninguém a fazê-lo, e a destacá-lo como lhe apetece, pois no mais contém muitas boas afirmações.
Lutero, pois, soube relativizar sua própria opinião e demonstrou uma objetividade que faltou (e falta) a seus seguidores quando põem de lado a carta e mensagem de Tiago. Numa conversa sobre a mesa Lutero disse, talvez em tom de brincadeira, ou não: Hoje ou amanhã vou acender um grande fogo com o pequeno Tiago (apud Hulme, p. 3). Hoje há releituras teologicamente ricas e criativas da carta de Tiago que agrupam seu conteúdo por unidades temáticas (Hulme, Sarker Glaube, Tamez), como, aliás, é recomendável fazer com a literatura sapiencial, p. ex. Provérbios.
Para as demais questões introdutórias, remeto ao resumo de Friedrich, p. 262.
II — Dados exegéticos
V. 12 retoma e complementa os vv. 2-3. Tiago refere-se à aflição e perseguição dos destinatários que vivem na dispersão (v. 1), uma realidade a ser descrita em vários casos concretos (1.27; 2.6; 5.4,7). Mas essa aflição é razão de alegria e bem-aventurança (cf. Sl 1.1; Mt 5.3ss), porque leva à resistência e, finalmente, à vida eterna. HYPOMONE, perseverança, e HYPOMENEIN, suportar, são conceitos dinâmicos, ativos, de uma paciência militante, que não desanima, revelando que o crente (ou a fé — v. 3) está sendo aprovado (DOKIMOS). Eram comuns em ocasiões festivas as coroas de folhas ou flores. A coroa da vida simboliza a vida eterna (cf. l Pe 5.4; 2 Tm 4.8, Ap 2.10; 3.11 etc.), os novos céus e a nova terra, para os quais aponta também o final do v. 18. O crente persevera não somente com vistas ao triunfo final, mas espera pela ação libertadora de Deus como o lavrador pelas chuvas certas, e Jó e os profetas por mudanças na história (5.7,10s). Os que o amam (repetido em 2.5), como em Rm 8.28 e l Co 2.9, não faz do amor condição para uma recompensa, mas apenas designa os que se abrem para Deus e lhe servem fielmente.
Com ênfase maior do que l Pe 1.6-9 e Rm 5.3-5, Tiago contrapõe a perseverança às provações e às alegações do coração humano. Há exegetas que distinguem entre a aflição exterior (v. 12) e a tentação que vem de dentro (v. 13). Mas o termo grego é o mesmo (PEIRASMOS, PEIRAZOMAI), de modo que é necessário ter em conta a ligação entre ambas. Na vida real, os ataques de fora e os conflitos íntimos estão muito próximos (Voigt, p. 147), o que Tiago expressa, talvez, na busca por sabedoria e constância (vv. 5ss).
A origem da tentação não está em Deus (cf. l Co 10.13), pois nesse caso ele seria mau. Mas de Deus somente vêm dádivas boas e perfeitas (v. 17). A causa tampouco é o mundo, mas reside unicamente no nosso próprio (ênfase!) desejo (EPITHYMIA). A imagem usada no v. 14 é o nosso desejo situado fora de nós, seduzindo e arrastando-nos. O seduzido é seu próprio sedutor! O pecador não pode culpar outros (cf. Gn 3.12). No v. 15 a imagem muda para uma corrente causal natural: Ao convite sedutor segue o consentimento, a concepção, da qual nasce o pecado. Este, quando amadurecido, consumado, produz morte tanto para a pessoa quanto para a comunidade (cf. 4.1-3). Mas Tiago não é fatalista, pois a corrente pode ser cortada no começo: no desejo, encarado de frente, sem rodeios, sem ânimo dobre (v. 8). Obra de fé também é guardar-se incontaminado do mundo (v. 27) e promover a paz (3.18).
As palavras iniciais do v. 17 constituem uma citação poética (hexâmetro), no sentido de: Toda dádiva é boa e todo presente é perfeito (importa a intenção do doador), a que Tiago acrescenta: sobretudo quando vêm do alto (Jerome, p. 371). Pai das luzes refere-se ao Criador, o qual, ao contrário das variações de luz que se verificam nos astros, não muda em sua bondade. No v. 18 é estabelecido um paralelo formal e uma contraposição de conteúdo ao v. 15: Deus, por livre iniciativa (não por sedução), produz, cria (no batismo) os fiéis por palavra de verdade. Primícias (APARCHE), no AT uma forma de tributação (Dt 18.4), é usado no NT para o Cristo ressuscitado (l Co 15.20), para o dom do Espírito Santo (Rm. 8.23) e também para os primeiros convertidos (Rm 16.5; l Co 16.15). Aqui, os crentes são os primeiros a obterem a nova vida, que em última análise destina-se a todas as criaturas de Deus.
Ill — Passos para a prédica
Fiquei chocado ao ler num viaduto em Porto Alegre: Você já fez aborto, agora legalize! Quantas pessoas teriam a consciência vulnerável diante desse apelo?
Pelo rádio ouço os resultados de uma pesquisa feita pela Universidade Federal do Paraná nos colégios públicos daquele estado: 15 % das meninas entre 12 e 14 anos já praticaram aborto! Nos demais estados do Centro-Sul não será diferente, e no Norte-Nordeste certamente será pior. Vivo num país em que acontecem mais abortos que nascimentos. Faço uma projeção temerária, mas com boas chances de ser verdadeira: Uma entre cada quatro mulheres que a gente encontra na vida real (e nos bancos das igrejas) já matou uma vida dentro de si. Vou culpar quem? As meninas? Os rapazes? Os pais que consentem? Os médicos certamente superatarefados e esquecidos da ética? A sociedade?
Um padre que durante vários anos lutou ao lado dos pequenos agricultores envolveu-se com mulher. Ela logo o largou e divulgou o caso. Ele largou paróquia e lutas. Desconfia-se que ela foi plantada no seu caminho por fazendeiros. .. Acertaram no ponto fraco?
No contexto eclesial em que vivo há muito não escuto a afirmação clara de que adultério é pecado. Não preciso olhar para a podridão em outras denominações (Leonardo Boff declarou certa vez que sua igreja era uma casta meretriz: de dia reza missa, de noite se prostitui). Na IECLB acontecem muito mais adultérios (sobretudo entre seus líderes, que deveriam ser exemplo) do que o número de processos disciplinares permite imaginar, assim como há muito mais jogo de interesses, busca de vantagens e desejo de poder do que os discursos deixam transparecer. Mas as consequências da infidelidade conjugal (tanto dele como dela) são claras: pessoas de grandes capacidades vivendo como ruínas, andando com freio acionado, sem alegria. Matrimónios desfeitos. Filhos desgarrados. Uma igreja sem proposta nem impulso missionário. O nexo causal de Tiago 1.15 é inegável. Por que, então, o silêncio ou a posição ambígua diante da EPITHYMIA sexual (bem como de outras)? Pois os argumentos liberais (às vezes atribuídos falsamente à teologia da libertação, ou à liberdade cristã — cf. l Co 7.12ss; Pv 5.17ss) são altissonantes: valorizar o corpo, avanço cultural, libertação da mulher, etc.
Tiago não fala de pecado estrutural. Uma estrutura é feita de pessoas com seus desejos, com mecanismos de poder e com uma base física de apoio. É como vestiário que virou sauna para cartolas, o jogador que se vire. Ou seja, nenhuma estrutura é impessoal, senão não haveria como explicar a corrupção vigente. Indiferente, pois, qual seja a estratégia para mudar estruturas opressoras, não é possível prescindir de pessoas íntegras que se exercitam no controle constante de seus próprios desejos. Não é possível criar comunidade solidária quando seus integrantes não são solidários com o próprio cônjuge. Não se renova a igreja sem HYPOMONÉ, persistência de luta em todas as provações. Para Tiago pior que cair em tentações é resignar, ficar deitado, excluir setores em que não se luta mais, fazer reducionismo espiritualista ou político. Não se trata, portanto, de pregar um moralismo pélvico (Mathew Fox), que logo se evidenciaria como hipocrisia, mas de não minimizar a realidade do pecado. Num diálogo em torno do texto vimos que o desejo de possuir não pode ser restrito à cobiça de riquezas. A realidade interpessoal e supra-pessoal do pecado, pela qual nem sempre o indivíduo é responsável sozinho, precisa ser interceptada no começo, no germe, antes da concepção, quando a pessoa pode optar por lhe resistir.
A resistência está ligada à expansão da nossa visão da realidade, i. é, à percepção das possibilidades de Deus (cf. Pv 3.5s). Entra aqui a segunda linha temática do texto, a afirmação positiva e envolvente. Em vez de se ter pena de quem se debate diante de aflições e conflitos, ele é declarado feliz, justamente porque resiste, porque será aprovado, porque ama a Deus, porque verá a vitória (v. 12), porque Deus não faz cair na tentação (v. 13), porque ele imutavelmente derrama o bem sobre nós (v. 17) e por causa da ação criadora de Deus (v. 18), que restaura a pessoa (alienada pela própria sedução), a comunidade (que perdera a paz e a solidariedade, 4.1-3), e a ecologia (que geme, Rm 8.22). A folhinha de figueira é substituída por vestimenta mais durável feita pelo próprio Deus (cf. Gn 3.21). A ação libertadora não pode ser esperada para o fim dos tempos apenas, ela permite vitórias no dia-a-dia. É importante lembrar Rm 6, os efeitos do batismo na morte e ressurreição de Cristo. Tiago ressalta que esses benefícios presenteados por Deus podem ser obtidos pela oração (v. 5), que demonstra a vitalidade da fé (2.26), e pelo ouvir praticante da palavra da verdade, a lei da liberdade (vv. 18 e 25).
A prédica, portanto, deve contemplar os seguintes aspectos:
1. A situação de dispersão e sofrimento a que se dirige Tiago.
2. Um ou dois exemplos concretos de pecado/morte e sua causa (o desejo): aborto, adultério, devastação ecológica, assassinato de líderes sindicais, etc.
3. O presente perfeito de Deus em Cristo, que renova a pessoa, a comunidade e a natureza, e que capacita para a resistência ativa.
4. Compromissos práticos: ler a carta de Tiago na semana, orar pelas coisas que Tiago recomenda, por pessoas perseguidas, e procurar pessoas dispostas a atuar num projeto junto a drogados, mães solteiras, etc.
IV — Subsídios litúrgicos
1. Hinos: HPD 50 e 52: Um Cântico Novo, p. 40 (Povo que és peregrino) e p. 41 (Vida em abundância).
2. Confissão de pecados: Estamos no primeiro domingo da época da Paixão. Confessaremos hoje os pecados em pequenos grupos de 2 a 3 pessoas, aí mesmo nos bancos. Tiago disse (5.16): Confessem os pecados uns aos outros e façam oração uns pelos outros, para que sejam curados! Portanto, digam um ao outro onde aperta o sapato, orem um pelo outro, e dêem-se no final um abraço de paz.
3. Perdão: (Tg 5.20) Lembrem-se disto: Quem fizer um pecador voltar do seu mau caminho salvará da morte esse pecador e fará que muitos pecados sejam perdoados.
4. Oração de recolhimento: Ó Senhor, tua palavra nos cura, e ela também nos confronta com nosso agir diário. Pedimos-te que agora sopres suavemente sobre nós a tua palavra, para que ouçamos com alegria e cresçamos em direção de Cristo e das pessoas ao nosso lado. Amém.
5. Intercessão: Pelos jovens para que aprendam a dominar seus impulsos, pelos cônjuges infiéis para que caiam em si, pelos que no sofrimento desesperam e querem culpar a Deus, pelos líderes da igreja para que sejam íntegros e humildes, que cresça a unidade dos cristãos no serviço ao povo, e que nós possamos louvar a Deus no meio dos conflitos em que vivemos e nos engajamos.
V — Bibliografia
– FRIEDRICH, N. P. Meditação sobre Tg 2.1-13. In: Proclamar Libertação. S. Leopoldo, 1987, vol. 13, p. 262-6.
– GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. Petrópolis/S. Leopoldo, 1980, p. 460-71.
– HULME, W. E. The Fire of Little Jim. Nashville, 1976.
– The JEROME Biblical Commentary, ed. por Brown/Fitzmeyer/Murphy. New Jersey/Bangalore, 1972, vol. 2.
— STARKER GLAUBE – Schwache Werke?, Fragen zum Jakobusbrief, ed. por Bannach, H. Stuttgart, 1968.
– TAMEZ, E. A carta de Tiago. São Paulo. 1985.
-———————, Elementos Bíblicos que Iluminam o Caminho da Comunidade Cristã, In: RIBLA. São Paulo, 1988, ano 1/N9 1.
– VOIGT, G. Meditação sobre Tg 1.12-18. In: Die lebendigen Steine, Goettingen, 1983.