Prédica: 1 Coríntios 1.3-9
Leituras: Isaías 63.15-17,19; 64.1(2-3)4-8 (A)/63.15-17,19; 64.(l-2)3-7 (J) e Marcos 13.33-37
Autor: Renatus Porath
Data Litúrgica: 1º. Domingo de Advento
Data da Pregação: 2/12/1990
Proclamar Libertação – Volume: XVI
Tema: Advento
1. Ouvintes em época de Advento
Novos paramentos, depois do longo período de pós-Pentecostes, que encerrou com o Domingo da Eternidade, anunciam o início do novo ano litúrgico. Mês mo assim, este ciclo do ano da Igreja representa um desencontro em relação ao ano secular que encerra no dia 31 de dezembro. As expectativas todas continuam voltadas para aquilo que o fim do ano nos reserva. Buscar os ouvintes envolvidos até o pescoço com trabalho que se avoluma face ao encerramento do ano, atrair gente iludida por alguma entrada extra (13° salário, gratificações, presentes) não é tarefa fácil.
Neste contexto, o advento (= vinda, chegada) daquele que levará a história ao seu alvo, à sua consumação soa como uma confissão muito estranha. Advento trata das últimas coisas (escaton), enquanto que nós nos contentaríamos em atingir alvos muito mais provisórios. Para Bonhoeffer, em sua Ética, estas metas concretizáveis dentro da história humana se situam entre as penúltimas coisas. Para muitos, a luta pela subsistência, pela superação de condições sub-humanas, que é lu¬ta pelas penúltimas coisas, se agiganta de tal maneira diante deles, que todas as suas forças físicas e intelectuais se concentram unicamente na busca e na luta por solução. Estas angústias pela sobrevivência representam sérios empecilhos para a vinda do último, isto é, de Jesus Cristo com seus recursos. As necessidades, a nível biológico ou sociológico, requerem aparentemente antes a prioridade dos recursos humanos, divididos equitativamente, do que recursos veiculados pelo ouvir da palavra de Deus. É evidente, Deus pode ultrapassar estas barreiras todas e chegar ao povo com sua palavra que em Jesus Cristo compartilha todos os seus recursos. Apesar disso, cabe também a nós a urgente tarefa de tirar do caminho barreiras e empeci lhos de toda ordem, para que a palavra, portadora de Cristo, possa ser recebida com seu potencial libertador, como sinal do definitivo reinar de Deus. Nosso falar do advento de Cristo ficará desacreditado, se não nos entendermos como removedores de obstáculos.
2.0 A Palavra: 1 Co 1.4-9
2.1. Louvor ao rico potencial de uma pobre comunidade
Uma estranha riqueza, detectada por Paulo na comunidade de Corinto, faz encher sua boca de agradecimentos a Deus. Este é o que gera estes novos valores e dele se espera que não haja uma descapitalização antes dos prazos estabelecidos (dia de nosso Senhor Jesus Cristo).
O apóstolo agradece, em seu proêmio da carta que dirige a essa comunidade, pela distribuição equitativa destes bens (dons). Constata ele: Em tudo fostes enriquecidos nele.
Os vós a quem o apóstolo se refere é uma comunidade que sociologicamente se compõe de gente desprezada, humilde e sem qualquer distintivo que os destacasse. Apesar de haver membros social e financeiramente bem situados (l Co 1.16; 16,15; 11.20-22), Paulo não os considera suficientemente representativos para o perfil da comunidade de Corinto. Estes não pesam na balança, mas escravos e gente humilde, desprezados tanto pela sociedade helenista como pelo meios judaicos (l Co 1.26ss), caracterizam esta comunidade na cidade portuária.
Os empobrecidos, os que nada representam diante da sociedade, foram enriquecidos. Não por mera casualidade, mas por livre escolha de Deus, para assim visualizar que comunidade cristã não se constitui, em primeiro lugar, a partir de recursos trazidos por seus membros. Justamente os de mãos vazias, provenientes das camadas baixas de Corinto, demonstram o quanto a comunidade cristã vive de recursos e de potencialidades injetados de fora (extra nos), para que ninguém se glorie (l Co 1.29; 4.8). Deus se associou a estes empobrecidos de Corinto; na sociedade (comunhão, v. 9) com Jesus Cristo, estes recursos foram transferidos para eles, qualificando-os como enriquecidos (v. l, cf. 2 Co 8.9).
2.2. Ricos na palavra, mas pobres de fato
Como se manifesta esta riqueza? Na palavra e no conhecimento (v. 5, cf. 2 Co 8.7), isto é, numa nova consciência de que as relações fundamentais foram alteradas: da condição de escravos passaram a libertos, de pobres a ricos, de desprezados a privilegiados, de mão-de-obra barata a integrantes da sociedade com Jesus Cristo (= comunidade cristã). E materialmente, mudou algo?
O primeiro espaço onde esta nova consciência se materializa em relações de fato alteradas é a comunidade, à qual Cristo se associou. Todos são sócios igualitários, igualmente participantes dos recursos de Deus (2 Co 8.13-15). As relações injustas, que dividem a sociedade circundante em escravos e libertos, em pobres e ricos, em desprezados e sábios, não podem mais prevalecer no novo convívio. Daí o inconformismo de Paulo ao ver instalados entre os cristãos de Corinto os mesmos conflitos da macrossociedade: divisão em partidos (l Co 1.11), um se sobrepondo arrogantemente ao outro (l Co 4.8), desrespeito à pessoa e seu corpo (l Co 5.1), cristão processando cristão (l Co 6.1), os que nada têm continuam humilhados, agora pelo que têm parte igual na sociedade com Cristo (l Co 11.22).
Se nem na comunidade, o embrião da nova humanidade (2 Co 5.17), que vive a partir dos recursos de Cristo, se concretizam as relações baseadas na nova condição de igualdade, quanto menos ela poderá ser consciência daquilo que Deus quer para toda a sociedade: mundo sem escravos nem senhores, sem conflitos, sem divisões, sem processos e sem humilhações?
2.3. Como agradecer em meio a contradições?
Paulo pode falar de boca cheia: Sempre dou graças a Deus a vosso respeito (v. 4). A comunidade do proêmio e a dos capítulos seguintes não nos parecem a mesma realidade eclesial. À comunidade do corpo da carta daríamos o atestado de pobreza, pois as contradições são demais para nossos critérios de avaliação, lemos dificuldades em reunir, nem sequer, uns poucos motivos de agradecimento.
Como é possível avaliar tão positivamente?
Antes de qualquer potencial descoberto entre as fileiras da comunidade, Paulo aponta para aquele que dá seus recursos, para aquele que enriquece, que firma a nova consciência. Em outras palavras, ele sabe quem se associou com suas riquezas aos empobrecidos de Corinto (v. 9). Por isso ele agradece a Deus e, ao mesmo tempo, lembra os cristãos desta sua nova condição. Sob muitos aspectos, continuam vivendo na miséria, desconsiderando a nova condição com suas possibilidades. A carta toda é um apelo só: vivam a nova consciência, desfrutem livremente desta comunhão de bens (Lutero, Da Liberdade Cristã), não descansem enquanto na comunidade (e fora dela!) houver gente à margem, como excluídos, ou no centro, como do minadores.
2.4. Há esperança: Deus mantém seus recursos até o fim
A oração de agradecimento cobre toda a trajetória: passado, presente e futuro da comunidade. O arco estendido dos inícios da comunidade até o ponto de chegada tem uma constante só: a fidelidade de Deus em não retirar, em momento algum, seus recursos, apesar da postura contraditória dos beneficiados. Neste sentido, a comunidade não se aventura numa empreitada de alto risco, mas caminha paia um futuro que já pertence ao mesmo que vem dividindo tudo com ela. Fim da trajetória é o dia do Senhor Jesus Cristo, que tem caráter de balanço final, de acerto de contas, mas nada é cobrado que não tenha sido dado anteriormente. Este prazo estabelecido não é para uma data a perder de vista, mas esperança para breve (l Co 7.29). É a ardente expectativa de ver o provisório superado pelo definitivo, de passar do crer para o ver.
Os recursos de Cristo, sempre de novo desconsiderados, ficarão completamente manifestos para o usufruto de todos. Não haverá mais quem se sobreponha aos outros, baseado em seu potencial, criando divisões, classes e humilhações. Dia do Senhor é consumação do agir de Deus junto aos pobres de Corinto e dos que se reúnem em outras partes da terra; é também o fim de todas as contradições que não conseguimos erradicar da história eclesial e humana. Esperar por este dia é, ao mês mo tempo, reconhecer com toda a sobriedade a limitação de nossos recursos para instalarmos um convívio onde o fraco e o que nada tem possam ter acesso aos bens vitais.
Enquanto este dia não chega, não precisamos viver e lutar entregues à própria miséria, tentando fazer o melhor, mas podemos organizar nossa vida, nossa comunidade, nossa luta como libertos e enriquecidos, por causa daquele que se associou a nós em Jesus Cristo.
3. Encaminhando a prédica
Um fosso de séculos de história nos separa da comunidade primitiva de Corinto. A situação daquela comunidade do séc. I não é idêntica à de nenhuma de nossas comunidades, mesmo que se afirme que de ideal não tinha nada. Não somos chama dos a imitar esses cristãos que nos antecederam. Somos interpelados pelo testemunho que nos vem através de sua correspondência, porque nos relatam do mesmo Senhor já presente, onde nós nos reunimos em seu nome. Não precisamos evocar sua memória através de nosso falar, como se tivéssemos que fazer reviver um Deus morto, entre as letras da carta paulina. Ele é Senhor da comunidade cristã, que perpassa os tempos, colocando sinais do seu domínio, também neste nosso novo contexto.
Esta é a nova consciência que 1 Co 1.4-9 quer despertar, abrindo nossos olhos da fé para enxergarmos onde ele coloca sinais em nosso meio.
A prédica, a partir do proêmio de Paulo, poderia começar com uma avaliação positiva da nossa comunidade. De boca cheia, agradeceríamos pelo sinais de Deus na comunidade. É mais fácil encontrar adjetivos que desqualifiquem, como: tradicional, acomodada, passiva, voltada para si, ou ainda comunidade pouco espiritual. Agora, enumerar atributos positivos, quê destaquem o rico potencial, não é nada fácil. Especialmente quando ouvimos que Deus está junto àquelas pessoas que nada têm para se gloriar. A estas ele se associa para enriquecê-las com seus recursos, com seus dons. É para lá que teremos que olhar para descobrir o quanto nossa co¬munidade foi enriquecida, e não para os que se destacam a partir do que são, do que têm, da posição que ocupam. Lá junto aos mãos vazias, nós, céticos, somos convidados a descobrir o potencial. Este poderá estar latente, esperando que novos desafios o façam desabrochar. Às vezes é o ativismo do pastor que acaba abafando o rico potencial. Na falta deste, por qualquer motivo, de repente membros descobrem: nós temos o que dizer, nós temos com que contribuir, somos testemunhas do que pode representar a sociedade com o Deus de Jesus Cristo. Esta nova consciência faz com que membros se exponham, respondendo a questionamentos.
Dentro da comunidade civil, gente que antes pouco ou nada contribuía passa a ser presença inquietante na luta pelas penúltimas coisas, tal como a luta pelo direitos violados entre os segmentos marginalizados da sociedade. Mesmo assim, sobram inúmeras contradições, que comprovam o quanto desconsideramos a nova condição de libertos e enriquecidos.
Como agradecer em meio às contradições de nossa comunidade? Olhando para as próprias fileiras com seu potencial egoisticamente destacado, criando grupos, classes, além de ciúmes e conflitos de toda ordem, de fato um futuro desolador se desenharia diante de nós. Olhando, porém, para aquele que é fiel, que se associou a nós, conferindo-nos a nova condição de comunidade liberta, as vergonhosas contradições só poderão se desfazer. Seu rico potencial nos inquietará enquanto não houver apenas irmãs e irmãos.
Olhamos para o que é fiel não apenas com vistas ao presente, ficando o futuro totalmente incerto, ameaçador, como terra sem dono. Sua fidelidade abarca também o amanhã da comunidade, seu alvo final.
Que implica confessar: O futuro é de nosso Senhor Jesus Cristo? Em primeiro lugar, implica poder enfrentá-lo livre de toda ansiedade, agradecendo pela garantia que ele assume. Estamos livres de ter que construir este futuro, pois, caso dependesse de nossos recursos, de saída estaria ameaçado. Celebrar o Advento é confessar nossa incapacidade para tanto. O Advento nos liberta do peso de completarmos o projeto histórico do qual Deus é o único sujeito. Ele o completará a seu tempo, no seu dia. Alimentados por esta grata esperança, lançamo-nos integralmente aos projetos provisórios, ocupados com o desmonte das contradições do convívio nos mais diferentes níveis.
4. Formulando nossa confissão de culpa
Senhor, somos comunidade que se chama pelo teu nome. Mas confessamos que é nosso nome, nossa capacidade de liderar, de pregar que lá no fundo considera mós indispensáveis.
Estamos convictos de que sem nosso potencial, sem nossa dedicação e sacrifício, nossa comunidade já teria sumido.
Assim te empurramos para um segundo plano e toda a nossa pobreza vem a tona: grupos egoístas exibindo o que têm e o que sabem; as profundas contradições da sociedade trazemos para dentro da comunidade — as mesmas competições, a mesma luta pelo poder, o mesmo desprezo pelo que estão sobrando lá fora (meninos de rua, desempregados, agricultores sem terra, mulheres, mulheres da vida).
Hoje, festejamos o Advento; confessamos que tu virás.
Tu vens a nós, com todo o teu potencial, na palavra que ouvimos, no Batismo que realizamos em teu nome, e na Santa Ceia que celebramos.
Desprezamos tua vinda, tua presença constantemente.
Tu virás para definitivamente completar o que iniciaste entre nós e com teu mundo.
Tu sabes quantas vezes nos conformamos, esperando tão pouco para o teu povo, para a terra toda. Tem piedade de nós, Senhor!