Prédica: 2 Coríntios 5.(14b-18) 19-21
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: Sexta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 29/03/1991
Proclamar Libertação – Volume XVI
1. Preliminares
1. Sugiro limitar o texto aos vv. 18 a 21. Embora estejam ligados aos anteriores, representam uma unidade. Recomenda-se a limitação devido à extraordinária densidade do conteúdo.
2. O tema em destaque é a reconciliação. Trata-se de um dos conceitos soteriológicos centrais da Bíblia. Ainda assim, confronta a pregação com dificuldades:
a. O texto fala enfaticamente da reconciliação com Deus. Qual é a relevância? Não a rebelião contra Deus, mas sim a indiferença com relação a ele é hoje o grande problema. O que preocupa mesmo são os conflitos entre pessoas, classes e povos, é a violência em nossa sociedade. Claro, há gente que busca a paz com Deus. A boa frequência aos cultos na Sexta-Feira Santa o atesta! Normalmente, porém, outras necessidades são prioritárias. Até que ponto, por exemplo, eu próprio me sinto atin-gido pelo texto?
b. Aliás, de um modo geral reconciliação tornou-se palavra suspeita. Tem sido horrorosamente abusada. Serviu para botar pano quente nos conflitos sem eliminar as causas. Serviu para preservar uma situação de exploração ou para esquivar-se da merecida pena. Pode haver reconciliação entre o algoz e a vítima? O aperto de mão ou a anistia que vêm rápido demais ferem a justiça. A palavra 'reconciliação' me irrita! — este o desabafo de alguém inconformado com a impunidade do crime. É bom ter estes questionamentos em mente: reconciliação barateada é perigosa, injusta, mentirosa.
c. E, todavia, reconciliação permanece sendo uma das grandes urgências. Jamais os conflitos em nosso mundo se apresentaram tão perigosos. Ameaçam a sobrevivência da humanidade. Como conseguir o objetivo de forma autêntica, eficiente, convincente?
Com estas perguntas nos dirigimos ao texto. Como o apóstolo Paulo as responde?
2. Observações exegéticas
1. O trecho 2 Co 5.18-21 faz parte do bloco 2.14-7.4, que representa uma grande apologia do apostolado de Paulo. Em Corinto há gente muito crítica: Paulo deixaria de exibir os sinais do apóstolo (12.12), faltar-lhe-ia a qualidade espiritual (10.3), e, portanto, não seria devidamente habilitado para o exercício do ministério. E contra carismáticos que Paulo se defende. Eles exigem comprovantes da força da fé. O crente deveria saber impressionar com experiências religiosas (cf. 12.1s) ou outras demonstrações de poder. Em contrapartida, Paulo define seu apostolado como ministério da reconciliação (v. 18). É uma função bem menos espetacular, extremamente penosa. Não faz glória, não! Significa lidar com brigas, agressões, conflitos. E isto é ingrato, embora necessário. A falta de pacificadores em nosso num do é calamitosa. Mas é isto o que o apóstolo, o pastor, sim todos e todas devem sei, a saber, agentes da reconciliação.
2. O contexto menor (5.14b-17) prepara as teses programáticas dos vv. L8 a 21. Em Cristo não se revelou nenhuma sensação ou curiosidade sobrenatural, mas sim o amor que se doa (vv. 14s). É desta forma, não por coação ou show religioso, que Jesus pretende conquistar as pessoas e renová-las (v. 17). Em vez de vingar se nos seus inimigos, ele morre por eles e lhes perdoa o crime. Ele é, por excelência, o reconciliador.
3. É o que o texto explica e desdobra:
a. A iniciativa para a salvação humana vem de Deus. Não é ele quem precisa ser reconciliado, mas sim o mundo. A inimizade, a rebeldia, o rancor estão do nos só lado. Portanto, Jesus não morreu para aplacar a ira de Deus ou transformar um Deus brabo em Deus benigno. Ele morreu para transformar o mundo e para dar às pessoas uma nova mentalidade.
b. É Deus mesmo quem agiu em Jesus Cristo. Perdoou ao mundo o pecado, não imputando-lhe as transgressões (v. 19). Fez prevalecer seu amor ao juízo. Demonstrou o quanto ama sua criatura. A cruz de Cristo é o sinal enfático da autodoação de Deus, de seu amor aos inimigos, do perdão aos criminosos. Invertem-se os papéis: quem merece o castigo é perdoado e justificado, enquanto Jesus morre a morte de um criminoso (v. 21). Somente o amor é capaz de explicá-lo.
c. Em Cristo, a reconciliação é fato consumado. Deus nos reconciliou (!) consigo e reconciliou (!) o mundo. Ofereceu nova chance. Perdoou a nossa dívida, a interna e a externa. Vivemos sob a sua graça.
d. Esta realidade precisa ser divulgada. As pessoas precisam saber o que aconteceu em Cristo e através dele. Por isto existe o ministério da reconciliação. Deve talar, antes de tudo, do que Deus fez em favor do mundo. Depois, num segundo pás só, deve conclamar a todos para que, por sua vez, se reconciliem com Deus. Também nós devemos fazer a nossa parte, ou seja, aceitar o amor de Deus por nós e deixar-nos transformar por ele (veja v. 15). O mundo está reconciliado com Deus, sim.
Mas deve tirar as consequências disto. A paz já foi firmada. Portanto, larguem as armas, parem de agredir a Deus, sepultem o ódio. Do indicativo (Deus reconciliou!) decorre o imperativo (reconciliem-se com Deus!). O apóstolo roga: Façam as pazes com Deus, não sejam bobos.
Aprendam a novamente confiar em Deus e a vi ver como seus filhos. Transformem este mundo para que volte a ser o mundo de Deus e não o mundo do sofrimento, do crime e do medo. O apóstolo lança este apelo como embaixador de Cristo, sim, como representante do próprio Deus (v. 20). A palavra da reconciliação (v. 19) é palavra divina.
e. Isto significa que reconciliação exige a conversão. Pressupõe a confissão do erro, a disposição de corrigi-lo, a consciência da necessidade do perdão. Reconcilia cão com Deus implica a reorientação da vida: pretendo respeitar a vontade de Deus e tratar de cumprir os seus propósitos. Não é obra meritória que aí vou realizar. Faço-o por gratidão. Pois sei que pela graça de Deus sou o que sou (l Co 15.10).
4. É claro que a reconciliação com Deus tem incisivas consequências no nível inter-humano. À dimensão vertical corresponde a dimensão horizontal. Isto não es lá em evidência neste texto. Mas em outros está, como por exemplo em Ef 2: por Cristo, judeus e gentios foram feitos um. Foram reconciliados. Pois Cristo é a nossa paz”. Destrói muros de inimizade entre as pessoas (Ef 2.16). Estes horizontes não devem ser esquecidos. Da reconciliação com Deus por Cristo nasce comunidade.
3. Avaliação meditativa
1. O texto manda pregar o fim da inimizade com Deus. Procuro detectar as manifestações da mesma, e descubro que são pouco espetaculares, mas altamente perniciosas:
a. A inimizade existe como irritação com Deus. Sua vontade incomoda. Faço prevalecer, então, a minha. Amar o próximo? Ora, o cara não o merece! No mundo do trabalho, dos negócios, na política, Deus está sobrando. Ele não entende dessas coisas. Seu mandamento atrapalha. Portanto, as pessoas se escandalizam com as restrições à liberdade que Deus impõe. Querem ser seus próprios senhores. Desprezam a vontade divina.
As consequências são o arbítrio, o abuso do poder, o cinismo. Foi o que levou Jesus à cruz. A lembrança de Deus é perigosa. Aponta para compromissos. Exige responsabilidade e reorientação. A isto o ser humano resiste.
b. A inimizade existe como insatisfação com Deus. Tenho queixas contra ele. Esbarro em dolorosas limitações. Por que este mundo é tão imperfeito? Por que há tanto crime, tanto sofrimento? Deus, o culpado és tu.
A consequência pode ser a depressão, a frustração, a permanente amargura. Vão faltar a gratidão e o louvor a Deus. O que resta periga ser a raiva de si, das pessoas, de Deus e todo o mundo.
c. A inimizade existe como indiferença frente a Deus. Sua existência não interessa. É uma inimizade não declarada, mas real. Fé em Deus seria coisa do passado. O que importa é saber virar-se, viver do jeito que dá, tomar as rédeas do destino na mão, sem escrúpulos religiosos.
A consequência será um mundo frio, em que impera a impiedosa caça à felicidade. Agrava-se o sentimento da solidão. Fogem os critérios éticos, foge também o sentido da vida humana.
d. A inimizade existe como substituição de Deus por ídolos. É a forma mais frequente, equivalente à infração do primeiro mandamento. Não Deus, mas outras coisas passam a ser a última instância normativa, o mais alto objeto de fé, amor e confiança.
A consequência é que o ser humano passa a ser escravizado pelo bens, pelo poder e pelo prazer, por ideologias, f as, sonhos, ideias, fazendo as pessoas perder a cabeça e cometer verdadeiras loucuras. Pelas loucuras que provocam reconhecem-se os ídolos.
Através de Jesus Cristo, Deus oferece reconciliação ao mundo. Quer renovar o pacto, muito de acordo com os termos: Eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo. Reconciliação consiste num novo início que elimina os efeitos danosos da inimizade com Deus.
2. A renovação tem por premissa o perdão. Sem ele, reconciliação não se faz. Deus deu o passo decisivo: perdoou ao mundo o pecado. Paulo tem em vista a morte vicária de Jesus (v. 21). Jesus morreu por nós (veja l Co 15.3), carregando nos só pecado. Como entender?
Ora, a morte de Jesus foi obra do pecado. Foi crime humano, sinal da oposição a Deus. Nesta oposição todos os seres humanos são solidários, ainda que em proporções diferentes. Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus (Rm 3.23) Na cruz, o pecado se joga em cima de Jesus e o faz vítima. Simultaneamente, porém, manifesta-se o amor de Deus que prefere a morte de seu Filho ao extermínio de seus inimigos. A fim de reconciliar, Deus sacrifica. Aliás, o mundo vive do sacrifício muito mais do que das conquistas. Falo do sacrifício espontâneo, não do forçado que é extorsão. O sacrifício imposto, a exploração, é realidade cruel, quase normal em nosso país. Mas o que falta é a disposição para dar espontaneamente por parte aqueles que têm. Reside nisto um dos principais motivos para os graves conflitos sociais em nossos dias.
3. Já foi dito que a reconciliação com Deus modifica profundamente as relações inter-humanas. É impossível viver em paz com Deus e em briga com o vizinho (veja Mt 5.23s). Jesus compromete com a promoção da reconciliação entre as pessoas. Salientamos o seguinte:
a. O conflito jamais é um bem. Precisa ser superado. A criação de inimigos fantasmas é artimanha para manter os conflitos e lucrar com eles. Costuma servil de justificação para a produção ou o porte de armas. Não a derrota do inimigo, mas sim a reconciliação com ele deve ser a meta e merecer a prioridade absoluta.
b. Entretanto, reconciliação exige mais do que um rápido abraço. Caso não forem eliminadas as causas, o conflito muito em breve haverá de reacender-se. A reconciliação pode ser um processo demorado, de aprendizagem dolorosa. Sem melhor distribuição de renda e propriedade, por exemplo, não haverá solução para a violência em nosso país. A reconciliação com Deus, muito provavelmente, vai exigi i uma mudança de mentalidade, um novo estilo de vida, outro comportamento. De qualquer forma, ela tem o seu preço.
c. Reconciliação não pretende a humilhação do parceiro. Pretende a sua amizade. Pressupõe a confissão de culpa, sim. Mas não quer saborear uma vitória. Quer nova comunhão.
d. Reconciliação é um tema individual e coletivo. Existem inimizades pessoais e outras entre grupos, raças, povos. Conseqüentemente, as providências a tomar variam. Ao lado da iniciativa individual são necessárias mudanças estruturais e novos comportamentos sócio-políticos. De reconciliação vai depender não só a nossa paz com Deus, mas sim também a paz em nossa sociedade.
4. Pistas para a prédica
1. Recomenda-se partir da ocasião, isto é, de Sexta-Feira Santa. É o dia da crucificação de Jesus. A prédica deve falar do significado da cruz, para o que os subsídios apresentados acima pretendem ser auxílio. Deus reconcilia, perdoa, acolhe. Oferece ao mundo a chance de um reinicio, de um novo pacto. É o que também celebramos na Santa Ceia.
2. Infelizmente, porém, a Sexta-Feira Santa é também o dia do pecado, em que a inimizade contra Deus festeja o seu triunfo. É preciso falar da cruz, como crime, sendo também nós culpados. A maldade que levou Jesus à cruz, nós dela compartilhamos. Vejamos o que acontece ao nosso redor e também o que nós mesmos cometemos.
3. O pecado precisa ser confessado e combatido. Caso contrário não vai haver reconciliação. Deus perdoa, sim. Mas ele quer nova vida, mudança, transformação, justiça, amor. O que importa é a superação da inimizade com Deus (veja a reflexão acima) e da inimizade entre as pessoas. Nós sofremos sob os nossos conflitos. Trazer exemplos! Inimizade mata. Procuram-se pessoas que, à semelhança do próprio Deus, dão passos para combatê-la.
4. À Igreja foi confiado o ministério da reconciliação. Dele todo cristão participa. A prédica deveria terminar com o envio: o cristão tem a difícil, mas bela incumbência de ser um promotor de reconciliação em nosso mundo.
5. Subsídios litúrgicos
1. Confissão: Senhor, não somos dignos de comparecer diante de ti. Por demais vezes temos ficado em dívidas contigo. Temos odiado em vez de amar. Fomos indiferentes, onde deveríamos ter agido. Temos ferido, onde pessoas buscavam consolo. Perdoa-nos as falhas, a arrogância, as omissões, e concede-nos a tua força para um início novo em nossa vida de acordo com a tua vontade.
2. Coleta: Senhor, nós te agradecemos por tua misericórdia. Em ti podemos refugiar-nos em nossas fraquezas, nossas angústias, nossas culpas. Tu não rejeitas, quando humildes chegamos a ti. Por isto louvamos teu nome e prometemos levar adiante teu amor a fim de aumentar a alegria em nosso mundo. Ajuda-nos, Senhor!
3. Intercessão: Senhor Jesus Cristo! É fácil rejeitar-te. Pois um Filho de Deus pendurado na cruz é difícil de suportar. Tua fraqueza nos confunde.
Ainda assim, é por esta tua fraqueza que alcançaste inigualável vitória: a vitória do amor sobre a indiferença e o crime. Tu assumiste a cruz para estar perto de todos os que têm uma cruz a carregar em sua vida. Tu morreste para não deixar sozinhos os que morrem. Tu te entregaste para envergonhar os teus inimigos.
Nós te agradecemos por tua cruz. É o sinal do quanto Deus nos quer. Vieste para eliminar o que nos separa de Deus e para trazer paz a este nosso mundo. Ajuda para que também nós saibamos superar barreiras e abismos entre pessoas e grupos. Por causa da tua cruz nos sabemos comprometidos a diminuir os conflitos do mundo, reduzir o número de cruzes, combater o sofrimento.
Pedimos-te pelo famintos, pelas vítimas da violência, pelo solitários, pelo injustiçados, pelo desempregados, abandonados, marginalizados, doentes. Sê tu a sua esperança e dá-lhes participação em tua vitória. Nós te pedimos por tua Igreja. Fortalece-a em seu testemunho e seu serviço. Que a tua cruz, Senhor, seja contínua lembrança e inspiração para a ação da reconciliação em nosso mundo.
6. Bibliografia
Altmann, W.: Não à dívida — Sim à paz, ET 29, 1989, p. I53ss.
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Bultmann, R.: Der zweite Brief an die Korinther, Krit.ex.Kom. Sonderband, Göttingen, 1976.
Fitzmyer, J. A.: Linhas fundamentais da Teologia Paulina, Bíblica 10, São Paulo, 1970
Käsemann, E.: Erwägungen zum Stichwort Versöhnungslehre im Neuen Testament, in: Zeit und Geschichte, FS R. Bultmann, Tübingen, 1964, p. 47s.
Idem: Die Legitimität des Apostels. In: Das Paulusbild in der neueren deutschen Forschung, Darmstadt 1964, p. 475s.
Stuhlmacher, P. — Class, H.: Das Evangelium von der Versöhnung in Christus, Stuttgart, 1979.
Weingärtner, L.: 2 Coríntios 5.14-21. In: PL Vol. l, 1976, p. 5s.