Prédica: Atos 11.19-30
Leituras: 1 João 4.1-11 e João 15.9-17
Autor: Carlos Musskopf
Data Litúrgica: 6º. Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 05/05/1991
Proclamar Libertação – Volume: XVI
1. Introdução
1.1. Seita ou Igreja?
Costuma-se considerar o dia de Pentecostes como a data de aniversário da Igreja cristã. Mas, na verdade, levou algum tempo até que esse novo movimento se definisse como uma nova Igreja. Havia fortes tendências internas para que o movimento se tornasse apenas mais uma seita judaica. Na comunidade-mãe, de onde irradiavam os sons da nova sinfonia, havia um forte movimento judaizante, procurando acomodar o acontecimento salvífico de Jesus à lei e aos costumes judaicos. Sabe-se que até mesmo fariseus participaram da comunidade de Jerusalém, o que bem dá uma ideia da dificuldade reinante. Isto também explica por que, depois de sua conversão, Paulo só volta a Jerusalém no ano 49 d.C. O ambiente por lá não só era arisco a ele por causa de seu passado, mas também (e talvez principalmente) por causa de sua teologia.
1.2. Antioquia e o futuro da Igreja
A perseguição que sobreveio aos cristãos depois da morte de Estêvão levou diversos irmãos e irmãs a buscarem refúgio em outras paradas. Sem dúvida, Antioquia era um atraente lugar para se começar de novo. Uma cidade de 500 mil habitantes, somente superada em tamanho por Roma e Alexandria. Muitos judeus já moravam por lá, o que tornava mais suave a ambientação.
Os irmãos e as irmãs chegados(as) da Palestina se uniram a outros(as) de Cirene e do Chipre para fundarem comunidade. O caráter desta comunidade teve repercussões fundamentais na história da Igreja cristã. O ímpeto missionário levara pessoas a buscar os gentios. Estes são convertidos em grande número, apesar de não haverem grandes campanhas públicas de evangelização. O processo se dava mais no boca-a-boca, no casa-a-casa.
O que provoca fortes reações contrárias nos de Jerusalém é o fato de estes gentios passarem à Igreja sem serem circuncidados e sem se submeterem aos rigores da lei. A nova Igreja já estava ficando nova demais.
Dentro deste contexto, a comunidade de Jerusalém envia um de seus líderes mais respeitados, Barnabé, para dar uma olhada no que estava acontecendo. Não há como provar, mas os indícios são de que a função de Barnabé seria a de desmobilizar a nova comunidade. Quando ele toma pé da situação, chega a uma decisão que vai ter repercussões enormes sobre tudo que se chama cristianismo na face da terra: busca Paulo para trabalhar com ele. Ora, Paulo não iria para Antioquia fiscalizar ou tentar fazer esmorecer o fervor missionário da comunidade em direção aos pagãos. Os dois foram e ficaram por um bom tempo na cidade. Tanto que o próprio observador Barnabé só volta a Jerusalém em 49 d.C. para o concílio, e ainda como delegado de Antioquia. Sua missão é defender no concílio a proposta missionária que eles estavam desenvolvendo. De forma que não é exagero afirmar que Antioquia se transformou no centro do cristianismo primitivo, donde Paulo também partiu para as duas primeiras viagens missionárias.
1.3. A época dos acontecimentos
Não temos muitos dados precisos. Se tomarmos o ano de 49 d.C. como ano do Concílio de Jerusalém, podemos retroceder, mesmo que com dificuldades. Existe uma certa unanimidade em fixar o ano 49 d.C. como o ano do concílio. Ele durou apenas um dia, mas os resultados persistem até hoje.
A fome prevista por Ágabo (v. 28), a qual aconteceu quando Cláudio foi imperador, de fato não aconteceu. Cláudio reinou de 46 a 51 d.C. e não houve uma fome geral no Império Romano em seu reinado. Mesmo assim, há indícios de que houve uma fome na Palestina em 46 d.C., e ela pode estar associada ao ano sabático de 47/48 d.C., principalmente se a colheita do ano anterior não tivesse sido boa. Os acontecimentos relatados, portanto, devem ter ocorrido na primeira metade dos anos 40 d.C.
1.4. A coleta aos pobres
Tradicionalmente não se tem dado importância ao fato de terem organizado uma coleta na comunidade de Antioquia para que o pessoal de Jerusalém pudesse comprar (ou estocar!?) gêneros alimentícios para enfrentar a fome por vir. Talvez por isso ter se tornado uma praxe bem comum depois, vindo, inclusive, a metamorfosear-se numa espécie de imposto eclesial, parecido com o imposto judaico arrecadado para manter o templo.
Mas aqui se trata de algo diferente. A coleta foi espontânea e, seguramente, grande. As pessoas contribuíam de acordo com o que cada um tinha (v. 29). A comunidade hostilizada, vigiada, alvo de desconfiança, de Antioquia, tomada por ex-pagãos que não passaram pelo judaísmo, dá um sinal claro do que caracteriza o novo da nova Igreja: a solidariedade com os pobres.
2. Texto
2.1. Helenos ou helenistas?
Nestle aceita a palavra Ellenas no v. 20, embora bons manuscritos proponham Ellenistas. A tradução de Almeida diz aos gregos, enquanto que a Bíblia na linguagem de hoje propõe não-judeus.
A população de Antioquia era composta basicamente por sírios, gregos e judeus, mas todos sob forte influência helenista. Disto se pode deduzir que por Ellenas o autor pensava de fato em todos os não-judeus de fala grega. A variante Ellenistas estaria se referindo mais a judeus de fala grega, o que seria uma contradição no texto.
2.2. Narcisismo
Uma variante de peso propõe a inclusão de E havia muita satisfação. E quando nós estávamos reunidos, um deles chamado Agabos disse…
Esta inesperada introdução de um nós na narrativa apenas procura ligar Lucas à comunidade de Antioquia, de onde se diz ser ele originário. Portanto, a variante não pode ser levada em consideração.
3. Igreja cristã só é Igreja se for missionária
A partir do que foi dito na Introdução, tiramos duas teses que compõem o conteúdo e a mensagem do texto. Este ponto 3 traz a primeira delas.
3.1. O significado original da palavra Igreja
Muitos teólogos já disseram (Boff entre eles) que Jesus pregou o reino de Deus e o que apareceu foi a Igreja. Mas antes de este termo significar uma organização religiosa que abraça tanto grupos locais de crentes como uma estrutura espalhada pelo mundo todo, ele era usado para descrever uma reunião política, na praça. Os cidadãos eram chamados para fora de suas casas (ek-kalein) pelo arauto para participarem da reunião. Lucas mesmo emprega a palavra em At 19.32,39-40 para designar uma reunião com fins políticos.
O termo ekklesia não foi usado de uma forma generalizada no início da Igreja cristã. Outros termos foram tentados: synagoge, cúria, além das designações de l Pe.
Uma coisa, no entanto, é certa: quem é convocado é convocado para alguma coisa. Ninguém é chamado para fora de sua casa para participar de uma reunião sem consequências. À convocação segue-se uma missão.
3.2. A missão entre os judeus
Depois do acontecimento de Pentecostes, os convertidos estavam cheios de um fervor missionário/proselitista. Ou seja, dedicavam seu tempo, seus bens, sua segurança, sua própria vida à missão de anunciar a outras pessoas o que já tinham descoberto: que Deus havia cumprido Suas promessas através de Jesus Cristo. Para um judeu dizer isso, era necessário que abrisse mão de um conceito básico do judaísmo, a saber, que o cumprimento das promessas se daria quando fosse estabelecido um reino universal sob o comando do descendente de Davi. Este reino universal era concebido dentro dos padrões de poder que eles conheciam e seria estabelecido com as forças físicas e brutas à disposição na época.
A concepção que animou os judeus convertidos vinha em oposição a este reino político, quase secular. Por esta razão, ele se tornou puramente espiritualizado, sem levar em conta as condições humanas da população e o tipo de relações sociais que se estabeleciam entre as pessoas e as classes (que já existiam na época!). O fato de venderem seus bens e terem tudo em comum não reflete uma posição programática, mas um impulso individual de desprendimento e humildade.
A comunidade de Jerusalém realiza um trabalho de formiga. Com coragem, garra e determinação, eles vão transmitindo a mensagem. Com toda a pureza e até um certo grau de ingenuidade eles procuram reciclar a fé judaica, a esperança messiânica, em fé cristã, em esperança que já se realizou. Mas, uma das limitações destes convocados é que eles se sentem apenas convocados a atingir mais pessoas, que vão atingir mais pessoas… e assim por diante. Outra limitação (já referida) é que só se convocavam pessoas que já professavam a fé judaica. Em síntese, o judaísmo não foi abolido na comunidade cristã primitiva, mas ganhou um novo elemento: o Messias esperado já chegou!.
3.3. A missão entre pagãos
O nosso texto parece indicar o fato de que a missão entre os pagãos acontece como fruto inesperado de uma nova circunstância. Escapando da perseguição que se seguiu ao martírio de Estêvão, muitos cristãos vão se dispersando pelo mundo todo (leia-se Império Romano). Circundados por pessoas que provinham de outras tradições religiosas e que tinham outras esperanças quanto à redenção e à salvação, o pessoal de Antioquia lançou as suas garras. Talvez até com surpresa perceberam que essas pessoas aceitaram a novidade que é boa também para elas.
É bastante sintomático que quem teve a audácia para isso foram, antes de mais ninguém, os de Chipre e Cirene. Judeus que há tempo não viviam mais na Palestina.
A missão entre pagãos levada a efeito em Antioquia revolucionou a nova Igreja. Não só pelo aspectos já mencionados em 1.2., mas porque um movimento que tem origem na zona rural da Galiléia e se desenvolve nesta área em apenas uma década se estabelece na cidade e se torna um movimento urbano. E quando se torna urbano é que senta as bases para uma agressiva e organizada missão entre os pagãos. Em Antioquia, Paulo e Barnabé tramaram as coordenadas da nova Igreja, fora do controle de Jerusalém. O que a Igreja cristã veio a ser no futuro — com seus erros e acertos — foi tramado naquela cidade. Ali os judaico-cristãos e os gentílico-cristãos conviveram pacificamente e Barnabé os advertiu a que continuassem fiéis. Não a regras, leis, dietas ou formas de culto, mas ao Senhor.
Mas tudo isto ainda não define completamente o novo da nova Igreja. O que determinava o ser batizado dos neófitos não era a decisão/conversão pessoal, mas a manifestação do Espírito Santo. E o Espírito Santo chama/convoca para algo mais do que proselitismo. Chama para a ação. Não uma ação indefinida, mas especificamente em favor dos pobres.
4. Igreja missionária é Igreja solidária com os pobres
Neste ponto 4, apresentamos a segunda tese.
4.1. Quantitativo e qualitativo
Através dos séculos, a Igreja cristã dá saltos qualitativos que a vão preparando para o futuro e melhorando seu presente.
O próprio surgimento do cristianismo significou um salto qualitativo sobre o judaísmo. A religião formal, de sacrifícios de animais, passa a uma fé contagiante, onde se coloca em risco a própria pele.
A nível de organização social e econômica, o salto também foi grande, pois se cria uma sociedade de iguais, onde cada um coloca o que tem e tira o que precisa. Apesar dos problemas desta comunidade de consumo (já apontados anteriormente), ela significa um avanço em termos de compromisso e de solidariedade. É uma comunidade/Igreja na qual o bem-estar dos membros não é uma questão de esforço ou habilidade individual. O cuidado de uma pessoa para com a outra faz parte do programa de vida estabelecido para o grupo.
4.2. O salto em Antioquia
A comunidade de Antioquia dá outro salto dentro deste processo. Em vez de construir silos e guardar alimentos para o seu próprio grupo local (pois a previsão era de que faltaria comida no mundo inteiro — e isto obviamente os incluía), eles coletaram dinheiro para que o pessoal de Jerusalém (onde talvez a fome já tivesse iniciado) fosse aliviado. O horizonte particular de solidariedade se universaliza. As barreiras vão se desfazendo: barreiras de raça primeiro; depois as barreiras de classe; por fim as barreiras de nação. Outras ainda ficaram para serem derrubadas. Por exemplo, hoje é necessário derrubar as barreiras do modo de produção. Tanto o estatismo como o capitalismo criaram distorções e injustiças. É necessária a mesma coragem que lançou no passado a Igreja para dentro de rupturas com sistemas teológicas e ideológicos. A solidariedade para com os pobres lançada pela comunidade de Antioquia requer, hoje, um questionamento profundo das estruturas de produção e distribuição de alimentos no mundo. Sabemos perfeitamente que a fome no planeta não è uma questão de quanto se produz, mas de como é distribuído o que foi produzido.
4.3. Um salto de solidariedade na IECLB
O questionamento que se faz às estruturas da sociedade civil vale para as estruturas eclesiais. Até quando o etnoluteranismo vai sobreviver? Calcula-se que até o ano 2000 aproximadamente 80% da população brasileira vai estar morando na zona urbana. Se este percentual é o mesmo na IECLB (e não há razões para se crer diferente), o que restará de membros nesta Igreja? A coesão que existe no mundo rural entre comunidade e sociedade se perde no mundo urbano onde as pessoas se defrontam com o pluralismo religioso. E outros movimentos religiosos estão respondendo às novas perguntas que são feitas. Enquanto isso, nós falamos uma língua que eles não entendem. Sinais disso são a nossa velha liturgia (por mais bonita que seja) e, especialmente, os hinos do nosso pobre HPD.
Uma Igreja cristã autêntica é uma Igreja comprometida com os pobres. Uma Igreja que supera a etnia, o assistencialismo e o conformismo, e arrisca novas formas de existência conforme as novas situações em que se encontra.
A Igreja está sendo sempre enviada aos gentios. Ela não é uma grandeza completamente estabelecida e definida, mas está sempre aberta a novos encontros situacionais e culturais. Dentro desta realidade deve viver e anunciar, numa linguagem compreensível, a mensagem libertadora do Reino, realizada em Cristo e a se realizar para todos na consumação dos tempos. (Boff.)
5. Prédica
Proponho que a prédica seja estruturada em cinco pontos:
1. Lembrar o tema da IECLB no biênio 89/90: O Pão Nosso de Cada Dia. Há fartos estudos sobre o alcance de significado da palavra pão. Selecionar alguns deles.
2. Ler o texto de At 11.19-30.
3. Lembrar que a Igreja cristã tem se contextualizado através dos tempos; às vezes para acomodar-se; às vezes para transformar(-se). Que sacrifícios estamos dispostos a fazer hoje?
— não pode haver uma divisão ou separação entre evangelização/missão e luta pela justiça. (Se eu tenho fome, tenho um problema material. Preciso de pão. Se meu próximo passa fome, tenho um problema espiritual. (Baesler.)
4. Em muitas comunidades da IECLB o/a pastor/a domina como se fossem seus feudos; em muitas outras (e esse número é crescente), os presbíteros querem impor uma dinâmica de produção que trazem de suas vivências na fábrica. Existem exemplos onde esta realidade esteja sendo superada?
— nós anunciamos Deus como Pai/Mãe, mas dentro da Igreja não vivemos como irmãos/ãs. Tornar-se solidário com os pobres implica amizade, carinho e ternura, sem os quais não existe verdadeira solidariedade.
5. Na sempre nova e renovada Igreja cristã, repartir o pão também é repartir o poder, e correr riscos na confiança no Espírito Santo.
6. Subsídios litúrgicos
1. Hinos: (tarefa difícil no HPD) — 62, 98, 181.
2. Confissão de pecados: Desde os primórdios da Igreja estamos aprendendo a ser Tuas testemunhas vivas e sinais da Tua justiça; confessamos que temos sido maus alunos/as; devemos ser reprovados no exame do Juízo. Sabemos o que é certo e o que é errado, mas agimos mal; o mundo está pior do que nunca e temos culpa nisso; Tua justiça nos acusa e nos leva ao arrependimento — preparação para uma nova vida.
3. Coleta: Vem, Espírito renovador; dá-nos humildade para ouvir a Tua voz; dá-nos coragem de olhar ao redor; dá-nos confiança na Tua proteção; dá-nos fé que supera barreiras.
4. Textos complementares: Sl 98; l Jo 4,1-11; Jo 15.9-17.
7. Bibliografia
BARCLAY, W. El Nuevo Testamento — Hechos de los Apostoles. Ed. La Aurora, Buenos Aires.
NEIL, W. The New Century Bible Commentary — Acts. Marshall, Morgan & Scott Publ. Ltd., London. Antioch — The New Harper's Bible Dictionary. Harper & Row, Publishers.
BAESLER, R. O Pão Nosso de Cada Dia — Subsídios para o Concílio Distrital D.E. Porto Alegre. Xerografado. 1989.
BOBSIN, O. Tendências de uma Igreja que Tem Dificuldades de se Reproduzir ao se Inserir numa Sociedade Urbana e de Classes — Hipótese de Trabalho. Xerografado.