Prédica: Efésios 2.4-10
Leituras: Números 21.4-9 e João 3.14-21
Autor: Guilherme Lieven
Data Litúrgica: 4º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 10/03/1991
Proclamar Libertação – Volume: XVI
1. O texto
A perícope Ef 2.4-10 compõe o bloco doutrinal da carta, capítulos 1 a 3. Nosso texto versa sobre um aspecto importante da elaboração doutrinal: a salvação gratuita de Deus através da morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Ef 2.4-10 tem o objetivo de explicar o resgate dos gentios da situação de morte (Ef 2.1) para a condição de reconciliados pelo sangue de Cristo (Ef 2.13). Trata-se do mesmo ato de resgate salvífico que salva os judeus (Ef 2.3) afastados da pre¬sença de Deus por causa da sua conduta moral. Temos uma mesma elaboração doutrinal para resolver as duas situações diferentes: a adoção dos gentios e o perdão aos erros dos judeus. Vários textos bíblicos do Novo Testamento apontam para as dificuldades e conflitos criados por elaborações doutrinais que privilegiam um destes grupos em relação ao outro. As comunidades tinham necessidade de identificar, esclarecer e separar as práticas e teorias comprometidas com a tradição cristã das vivências e doutrinas não-cristãs. O nosso texto nasceu neste contexto. Certamente surgiu para sustentar uma proposta de Igreja que comportaria a vivência de judeus e gentios.
1.1. Conteúdo dos versículos
Vv. 4-5: Deus nos dá a vida juntamente com Cristo. O v. 4 repete adjetivos usados no AT (Êx 34.6) para qualificar a ação de Deus. Lembra partes do evangelho (por exemplo, Jo 3.16) que dão testemunho do amor de Deus em Cristo. Este amor justifica a sua ação de dar gratuitamente a vida, a salvação aos gentios e judeus. O v. 5 centraliza em Jesus Cristo a obra salvífica de Deus: … nos deu vida juntamente com Cristo. Esta elaboração é uma cópia de expressões do apóstolo Paulo que se encontram em outras cartas (por exemplo, Cl 2.13). A formulação do v. 5 sugere relacionar a vivificação somente aos judeus, por citar delitos como motivo da situação de mortos. Porém a introdução ao nosso texto (vv. 1-3) nos autoriza a ampliar a expressão também aos que estão na situação de afastados de Deus por outros motivos — no caso, os gentios.
Vv. 6-7: Junto com Cristo, gratuitamente, ganhamos a ressurreição. A ressurreição completa o perdão e a adoção realizada através da morte de cruz de Jesus Cristo. Aponta para os céus, para a eternidade (v. 7). Transforma o ato salvífico de Deus em ação viva e cotidiana. O tempo dos verbos está no passado: nos ressuscitou, nos fez assentar; também nos versículos 4 e 5: nos amou, nos deu vida. Isto indica uma ação salvífica presente. É o contrário, por exemplo, de outros textos do NT (Rm 8.11,17; 6.3-11) que falam de uma salvação que será realizada no futuro.
Vv. 8-9: Salvação não custa nada. O v. 8 diz que o ato salvífico é de Deus c não das criaturas que se beneficiam dele. A fé se apresenta como elemento novo na elaboração doutrinal da salvação gratuita que resulta da ação bondosa de Deus. É colocada como requisito fundamental para compreender e usufruir da salvação. Pressupõe o Batismo e a opção comunitária. Já o v. 9 ressalta o óbvio, a inoperância das obras para justificar o merecimento do amor de Deus. Com isso a fé torna-se único preço da salvação. A fé sempre foi fundamental na vivência comunitária dos filhos de Deus (Nm 21.4-9; Jo 3.15), quando relacionada com o reconhecimento das vontades de Deus, com o seguimento de Jesus, com o entendimento do grande pó der de Deus. Agora, entretanto, torna-se fundamental ao ser requisito único para receber o benefício salvífico da ação de Deus em Cristo Jesus. Desta forma passa a identificar os cristãos em relação aos não-cristãos. Iguala judeus e gentios na partia pação comunitária como instrumento de comunhão. Desqualifica as obras feitas com o intuito de autojustificação e exalta a bondade de Deus.
V. 10: Juntamente com Cristo, somos criaturas de Deus. É a conclusão da perícope. Evidencia o aspecto da adoção dos gentios como criaturas de Deus. Coloca as obras no seu devido lugar. As obras são do Criador, transferidas às criaturas. São ações dos livres da morte, dos adotados como filhos, dos reconciliados com os céus. Este versículo sugere e lembra a expressão nova criatura, usada em Gl 6.15; 2 Co 5.17, e a expressão novo homem, usada na Carta aos Efésios. As obras de Deus são próprias das criaturas de Deus (Jo 3.21). A ação salvífica de Deus em Cristo Jesus abre caminho às criaturas livres, para realizarem a sua tarefa como parte da criação.
1.2. A novidade do texto
Herdamos das comunidades primitivas uma doutrina cristocêntrica. Sofreu influência da necessidade de resolver os conflitos e dificuldades oriundos da desigualdade de gentios e judeus. Esta doutrina colaborou para tirar os privilégios dos descendentes do povo de Israel. A elaboração que centralizou o ato salvífico de Deus em Jesus Cristo, pela cruz e ressurreição, tornou-se fundamental neste contexto. A fé no ato salvífico de Deus, através de Cristo, passa a ser critério principal para obter a certeza da salvação e conseqüente inserção na vida comunitária organizada pelo cristãos. A aceitação desta doutrina implicava negação de tradições, símbolos de fé e ritos comunitários (obediência à lei mosaica com os seus ritos) e adesão a novos ritos e símbolos (a Ceia do Senhor, o Batismo) que igualavam judeus e gentios, homens e mulheres, jovens e adultos diante de Deus.
Todavia, a elaboração desta doutrina é mais antiga; foi iniciada pelo apóstolo Paulo já no início da sua missão. Outros textos a codificam com mais autenticidade.
A novidade do nosso texto, por isso sua peculiaridade empolgante, reside no fato de ensinar que a salvação é presente, real agora, e, ainda, gratuita. Não será salvação no futuro, com o final dos tempos (tão esperado em outras partes do NT). E o que faz viva e real a salvação é a fé no ato salvífico de Deus que já aconteceu por meio de Jesus Cristo. Esse ensinamento com o tempero da gratuidade nega os privilégios dos judeus; o da salvação presente concorre com a doutrina da lei e dos rituais conseqüentes dela, que tornava a salvação real, prática e de acesso fácil pela via do esforço próprio. E a transferência do mérito da justificação para a ação exclusiva de Deus como prova do seu amor sustenta a autoridade da nova proposta dou trinaria. Não esquecendo o último elemento da nova proposta: as obras passam a ser do homem novo, da pessoa livre, nova criatura em Deus para fazer as obras planejadas por Deus mesmo. A novidade da nossa perícope é traço importante do todo da doutrina descrita nos capítulos l a 3 da nossa carta.
2. Atualização
A atualização do nosso texto passa por uma análise da vivência de fé das comunidades e grupos com os finais trabalhamos e convivemos. Proponho tomar como elementos de análise os conflitos, as dúvidas, os privilégios, o nível de convivência comunitária e a participação. Pois a estes estão relacionadas as questões de conteúdo e doutrina em voga nos grupos e comunidades. Desta forma, o nosso texto pode contribuir para fundamentar denúncias e proposta nova, se for o caso.
No lugar de delongas sobre como poderia ser a atualização, compartilho um exemplo de atualização já experimentado junto a grupos de jovens, que são a base de minha atividade pastoral.
2.1. Um exemplo: grupos de jovens
Conforme uma imagem criada por jovens numa avaliação das suas atividades, os grupos em atividade são comparáveis às formigas e seu formigueiro. Realizam tarefas, seguem rituais sem questionar nada, como as formigas. Seguem instintivamente, sem se preocuparem com sua prática, suas consequências e funções. Fazem a leitura da Bíblia, cantam, brincam, formalmente discutem e estudam temas, promovem atividades, sem perguntarem por propostas e objetivos. As perguntas pela salvação, pela presença de Deus, pela fé e sua importância, sobre quem é melhor diante Deus, etc., não têm destaque, não são vivenciais. Através de suas atitudes chegam a negar tradições, valores, ritos e símbolos relacionados à fé. Todavia, não formalizam suas negações, seus protestos. Deixam de propor alternativas ou desafiar os legitimadores e seus conteúdos que mantêm as práticas e a organização da vivência comunitária da qual fazem parte. O Deus de amor que deu a vida em Cristo Jesus não é determinante da vivência comunitária e do testemunho da fé, se ele existe. Não há clamores, ou mesmo obras. A identidade de cristãos lhes é concedida pela estrutura denominacional através da filiação dos seus pais. Não existe a identidade caracterizada por nosso texto, produzida pela fé na salvação presente e pela ação por meio de obras impelidas pelo Deus criador.
Lógico que esta avaliação não considera os elementos positivos. Talvez porque estes nunca servem para acobertar as dificuldades e vazios existentes. E, no nosso caso, elas são fundamentais.
2.2. Ligando com o texto
Anunciar o ato salvífico de Deus como real e cotidiano, nesta situação, exige denúncia e enfrentamento das questões acima mencionadas.
O nosso texto coloca a identidade dos cristãos como resultado de uma opção caracterizada pela fé na salvação presente e cotidiana, dada gratuitamente por Deus através de Jesus Cristo. A análise acima denuncia o desvirtuamento deste critério que julgamos resultar de um vazio: a falta de memória de práticas de vivência da fé, que sempre serve aos cristãos como indicação para a sustentação da vivência cristã no presente, de tal modo que o presente passa a ser uma continuidade dinâmica de uma proposta já experimentada no passado. Este vazio é perigoso. Os adultos geralmente o preenchem com as tradições. Os jovens, no entanto, pelo seu comportamento conseguem negá-las, porém optam pelo projeto das formigas quando ninguém oferece nada em troca.
A fé dada por Deus torna presente a obra salvífica acontecida em Jesus Cristo, o que autoriza a negação de tradições mortas e privilegiadoras daqueles que nelas acreditam. Contudo, empurra os livres para a ação, criando experiências históricas para ilustrarem a obra de Deus e substituindo, assim, o vazio perigoso que sustenta o nada. Somente experiências comunitárias, embasadas na fé no ato salvífico de Deus e criadas pelas criaturas de Deus, ocuparão de forma legítima o vazio existente em meio à existência dos grupos de jovens acima mencionados e analisados.
A nova proposta caracterizada pela obra salvífica de Deus em Jesus Cristo ferirá com ferro a operação formiga.
3. Indicações para a prédica
O anúncio do ato salvífico de Deus em Jesus Cristo é incompatível com os vazios e conflitos existentes nas comunidades. O nosso texto chama para o enfrentamento destes com o anúncio da salvação como presente, real e cotidiana. O texto nega as obras como meio para herdar uma salvação futura. Ela é presente, real por meio do ato salvífico de Deus realizado em Jesus Cristo. Pela fé se tem salvação e liberdade hoje. E isso tem as suas consequências para a vida comunitária e vivência de fé.
É Quaresma. Vivemos o tempo de avaliar os conteúdos da nossa fé e celebrari a obra salvífica de Deus em Jesus Cristo. O texto, Ef 2.4-10, tem uma grande contribuição a dar para este contexto. Para não fugirmos a nossa responsabilidade, sugiro os seguintes passos:
a) avaliar a vida comunitária das comunidades. Apresentar os resultados da avaliação usando imagens e exemplos criativos para fugir do discurso típico de juízo final;
b) anunciar a liberdade, colocando a obra salvífica de Deus como presente e real, palpável através de experiências concretas caracterizadas por obras próprias de pessoas novas em Deus;
c) negar as experiências e práticas existentes que conflitam com a fé — dom de Deus. Contudo, não deixar vazios. Propor o envolvimento de mais pessoas na promoção e elaboração de novos caminhos por onde a presença real de Deus tem trânsito.
Sugiro ainda três perguntas que ajudam na elaboração da prédica:
1. Em quem os membros da comunidade confiam?
2. Onde se faz presente a confiança na obra salvífica de Deus?
3. O que podemos fazer para elevar as experiências verdadeiras de forma a negar as falsas vivências comunitárias?
Por último, sugiro colocar esta prédica dentro de um plano maior de comunicação do evangelho e de propostas comunitárias. Planejar um bloco maior de prédicas evita a tentação de querer falar tudo de uma vez e esgotar as propostas pastorais nestes pequenos discursos.
4. Subsídios litúrgicos
1) Confissão de pecados: Senhor, doador da vida, confessamos que compactuamos com o projeto de morte: Nosso agir é como o dia-a-dia das formigas, não pensamos sobre o que fazemos, deixamos de questionar os acontecimentos e a história que vivemos. Senhor, confessamos o grande vazio que existe em nossa vida comunitária. Os rumos, os objetivos não estão claros, não optamos por nada. Nossa identidade como cristãos é obscura. A luz da nossa casa está apagada, pronta para os salteadores fazerem a sua festa. E, ainda, somos tentados a acreditar em nós mesmos, como se pudéssemos ser pequenos deuses. Perdão, Senhor. Olha para dentro de nós e tem piedade de nós, Senhor.
2) Oração de coleta: Triúno Deus, livra os nossos ouvidos para escutar e nossas cabeças para compreender a tua palavra. Dispõe-nos para avaliar o teu grande amor e tomar consciência da importância da fé em ti e na tua obra de salvação. Transforma-nos em tuas criaturas. E, por meio do teu Santo Espírito, faze-nos olhar para o próximo e comprometer-nos com sua luta pela vida. Amém.
3) Assuntos para a oração final: Orar em nome dos presentes, pedindo a compreensão da responsabilidade que temos diante da liberdade dada por Deus por meio de Jesus Cristo. Orar pelas propostas pastorais da comunidade, pelo trabalhos dos grupos da comunidade, pelas instâncias diretivas da paróquia e da IECLB, pelo marginalizados na vida da comunidade. Estender os pedidos às forças sociais que clamam por mudanças. Orar pelas formigas!
5. Bibliografia
CONZELMANN, H. Epistola a los Efésios. In: Actualidad Bíblica, v. 29. Madrid, 1972.
SCHREINER, J. e DAUTZENBERG, G. Forma e Exigências do Novo Testamento. São Paulo, 1977.
WENDLAND, H. D. Ética do Novo Testamento. São Leopoldo, 1974.
WESTERMANN, C. Abriss der Bibelkunde. v. 1. Stutt-gart, 1964.