Prédica: Efésios 5.21(22-25) 26-31
Leituras: Josué 24.1-2,13-18 e João 6.60-69
Autor: Rolf Schünemann
Data Litúrgica: 14º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 25/08/1991
Proclamar Libertação – Volume: XVI
A FÉ NA VIDA — UM COMPROMISSO RELACIONAL
1. Introdução
Diante das profundas mudanças que se processaram nos últimos decênios nas relações homem-mulher, muitas pessoas gostariam de simplesmente suprimir alguns textos bíblicos que tratam do assunto. De fato, a realidade contemporânea parece desdizer e contradizer a Bíblia neste particular. A vida supera, nega, quase que anula o texto bíblico. Existem dificuldades evidentes, uma vez que a mentalidade hierárquica, autoritária e patriarcal tornou-se obsoleta.
A atitude simplista de mera supressão ou omissão, no entanto, constitui uma fuga. Não ajuda à comunidade, formada de homens e mulheres, a superar as dificuldades com os textos, colocando em crise a sua relação com a Bíblia. Por isso, se encararmos a crise e as dificuldades como um momento que se nos oferece para novas possibilidades, poderemos, ao invés de fechar, abrir portas. Se existe um curto-circuito entre fé e vida, não será essa tensão uma oportunidade para trabalhar uma nova visão da Bíblia e da hermenêutica?
Nossas reflexões perseguirão este alvo. Constituem uma modesta reflexão sobre o texto e a realidade com vistas à abertura de possibilidades de ensaiar o novo. Ao abordarmos a relação homem-mulher incluímos também as relações familiares, pois confundem-se e estão intimamente ligadas no processo de mutação em andamento.
2. A família e o casamento hoje
Nossas comunidades não são ilhas isoladas da sociedade brasileira. Os meios de comunicação de massa invadem as casas dos membros de nossas comunidades, apresentando modelos de relacionamento conjugal e modos de estruturação familiar que quebram com séculos de tradição. Por vezes as comunidades e os membros conseguem permanecer indiferentes às mudanças. Cada vez mais, no entanto, pastores são chamados a interferir ou aconselhar em crises familiares e conjugais. Um indício de que a crise da instituição familiar aportou entre nós, qual iceberg no mar das comunidades, é o movimento de casais. Ele sinaliza que houve um abalroamento no casco do navio-comunidade cristã.
A verdade é que as relações familiares passaram nas últimas décadas por um verdadeiro terremoto e ainda não se vê uma luz no fim da zona de turbulência. Diante desta realidade, reações emocionais e moralistas, recheadas de um tom apocalíptico, não conduzem a lugar nenhum. Urgente é uma investigação acerca dos mecanismos sociais, psicológicos, psicossociais que estão na base das rupturas com o modelo tradicional. Uma compreensão do processo social e cultural em que estamos inseridos, ajudará na busca de um modelo de relações familiares e matrimoniais que se insira na proposta de busca do reino de Deus.
O modelo monolítico da civilização ocidental e cristã fez água e afundou. Novos modelos estão nascendo com o objetivo de fazer com que as relações entre casais reconquistem o antigo equilíbrio. Por se tratar de um processo ainda não consumado, vive-se, no momento, com uma dura dose de insegurança e incerteza. A verdade, no entanto, é que a família sofrerá mudanças estruturais que deverão levar a relações afetivas mais verdadeiras. Ao invés de crise ou falência da família dever-se-ia enfatizar o processo de mutação em curso, mesmo que por enquanto ninguém saiba até onde ele nos levará, mas certamente nos levará a algum lugar. O processo sócio-político e econômico inviabiliza o cultivo saudosista da família patriarcal, hierárquica e autoritária.
A institucionalização de novos modelos parece hoje uma tendência irreversível, de modo que não se pode falar em família no singular. Há um pluralismo de formas familiares. Não podem ser ignoradas as intrincadas cadeias de parentesco que se formam a partir da enorme quantidade de separações e recasamentos, bem como os anseios pela individualidade ou outras aspirações semelhantes de que resultam famílias em que falta o pai ou a mãe. Outrossim, as uniões consensuais à revelia do registro civil passam entre os mais jovens de exceção à regra.
A partir dos anos 60, com os avanços na medicina (invenção da pílula anticoncepcional) e o ingresso cada vez maior da mulher no mercado de trabalho, conferindo-lhe maior autonomia financeira, é que começaram os grandes questionamentos e reformulações. As transformações acentuaram-se na década de 70, já apelidada de década do eu. Cada vez mais afirma-se a necessidade de preservação de espaços. A busca de privacidade e a garantia da individualidade constituem as grandes aspirações deste período em diante. Ao lado do amor, do companheirismo e, mais raramente, da capacidade de compreensão, a autonomia e a individualização aparecem como condição indispensável ao bom andamento de qualquer encontro fugaz ou duradouro. Considera-se fundamental a capacidade de estar só e a possibilidade de lançar um olhar interiorizante sobre si mesmo através da auto-observação e do contato consigo mesmo a partir do qual poder-se-ia alcançar a verdade encoberta por neuroses, dependências e projeções equivocadas. Combatendo-se e superando-se empecilhos à manifestação da verdadeira interioridade poder-se-ia tomar posse do seu próprio desejo. Este último constituir-se-ia num regulador autêntico, bússola eficaz, expressão sincera da verdade interior.
A década do eu (e o seu prolongamento bastante afetado pela AIDS) apóia-se no tripé: desejo, verdade e individualidade. Estar junto com alguém deve ser apenas a consequência de uma vontade inequívoca de um desejo claro. Ele comanda a permanência da relação. O diálogo com o outro cede, assim, ao diálogo consigo mesmo. A relação com o outro não pode anular a relação com o meu eu, meus projetos, meus espaços, minhas descobertas sobre mim mesmo.
Esta mentalidade e este comportamento descritos são característicos das camadas médias da população que formam a opinião pública e normatizam a conduta de outros segmentos da sociedade. Eles conduzem a uma pluralidade de modelos conjugais e familiares. Vão desde famílias unipessoais (solteiras, viúvas e separadas) a famílias monopatentais (onde só o pai ou a mãe está presente). Citem-se ainda as uniões consensuais e as produções independentes (mães solteiras).
Está-se em processo. A crise familiar não é terminal, mas de crescimento. Convive-se com uma multiplicidade de soluções, como a convivência do modelo tradicional, a solidão pura e simples e modelos intermediários. Algumas interrogações e alguns impasses estão presentes neste processo de busca. Como conciliar duas vidas, interesses, personalidades, compromissos e desejos diferentes? Como compartilhar um modelo amoroso que privilegia a independência das partes em detrimento do próprio conjunto que devem formar sem, no entanto, negar-lhe integralmente a validade? Privilegia-se a livre escolha, diálogo puramente afetivo sem constrangimentos formais, pela ausência de regras gerais e externas, procurando-se construir uma relação amorosa nova. Este modelo de amizade paradoxalmente revela a sua força e a sua fragilidade. Assim, o projeto autonomista como objetivo, como ideal implica igualmente uma ameaça e impede a relação precisamente porque está calcado no eu.
O matrimônio e a família são uma produção social e cultural e, como tais, mutáveis. Como cristãos somos inquiridos a vivenciar os valores evangélicos nas novas formas culturais de organização familiar tendo sempre em vista o alvo maior — o reino de Deus.
3. Texto
O texto insere-se no catálogo de normas da vida doméstica. Ao falar da integração de homens e mulheres na comunidade cristã pelo Batismo, a partir do qual todos assumem uma nova atitude de vida em conformidade com a vontade de Deus (4.22,24), a Carta aos Efésios apresenta uma série de recomendações aos filhos da luz (5.7). Aponta uma nova ética, uma nova proposta comportamental em que as relações humanas e sociais são marcadas pela novidade evangélica.
O texto reflete uma sociedade hierarquizada e autoritária. Procura, no entanto, introduzir elementos de tensão, de questionamento nas estruturas de desigualdade vigentes. Já o título indica e reflete uma descontinuidade: Submetei-vos uns aos outros no temor de Cristo (5.21). A sujeição ou submissão não se refere tanto à obediência, mesmo que este comportamento possa ocorrer na subordinação, mas ao abrir mão do direito próprio, da própria vontade em função do outro. A atitude evangélica de respeito e consideração não pode ser obrigatória e forçada. Ela parte de uma decisão livre, revestida de amor autodoador.
O título — …uns aos outros… — refere-se, assim, às relações de mulheres (5.22) e homens (5.25), filhos (6.1) e pais (6.4) e servos/escravos (6.5) e senhores (6.9). A carta consegue enxertar, numa sociedade que considerava as relações desiguais parte da ordem natural, um elemento novo que subverte esta ordem. No uns aos outros encontramos uma quebra desta ordem. Uma tensão permanente permeia e contradiz a hierarquia estruturada socialmente. Mesmo que o verbo hipotassomenoi (subordinar-se, submeter-se) indique um ajustamento, permanece a tensão evangélica da liberdade e do compromisso agápico nas relações inter-humanas.
Para ilustrar as relações homem-mulher a carta vale-se do exemplo de Cristo e sua relação com a comunidade cristã. A cristologia é sempre o ponto de partida da eclesiologia e da ética. Deste modo as relações humanas, sociais e domésticas estão sob a sinalização da vida e morte de Jesus Cristo. Quando fala das mulheres e dos homens recorre ao modo de agir de Jesus.
Se considerarmos que a marca registrada de sua ação foi o amor-serviço, não poderemos, de forma alguma, fugir do reconhecimento de que também a proposta comunitária e sócio-humana trará esta marca. A cunha colocada nas relações desiguais descarta o amor auto-referencial, dando vez ao amor excêntrico, segundo o qual o eixo em torno do qual giram as preocupações e atenções é sempre o outro (no nosso caso o cônjuge). A mútua dependência nas relações permite afirmar que tanto Cristo/Igreja = Homem/Mulher quanto Igreja/Cristo = Mulher/Homem. Existe um compromisso relacional. Se Cristo for entendido e vivenciado como um rei poderoso e autoritário, a Igreja reproduzirá este modelo em sua vivência. O mesmo vale para as relações homem-mulher. O autoritarismo e a subserviência marcarão suas relações. Se Cristo for aceito como o rei da coroa de espinhos que no serviço em favor dos homens e mulheres assume o esvaziamento e a cruz, a comunidade cristã autocompreender-se-á no sentido de que também ela procurará na sociedade não interesses próprios, mas sim a promoção da justiça e da fraternidade entre todas as pessoas. Conseqüentemente esta será também a marca das relações conjugais e familiares.
A proposta neotestamentária pode abrir novas perspectivas em meio à crise contemporânea. A busca de novas relações humanas precisa atingir as relações familiares e matrimoniais. Neste sentido contribuem hoje as mudanças nas formas de produção e na organização política. No século I objetivamente as condições não estavam dadas. Mesmo assim o texto consegue apresentar uma proposta que solapa a estrutura ideológica de sustentação das relações autoritárias e hierárquicas. Lamentavelmente a leitura fundamentalista sempre contribuiu para a manutenção da desigualdade, ignorando os elementos críticos e novos presentes no texto.
4. Meditação
Meu filho vem para casa com a tarefa escolar de recortar figuras que ilustrem uma família. Por tratar-se de um colégio confessional, espera-se evidentemente que traga uma fotografia do modelo tradicional unívoco (pai, mãe e filho). As revistas em geral apresentam este modelo. Geralmente são brancos e de classe média. Nunca negras/mistas ou pobres, pois a ideologia em voga considera que negro não tem família. Longe passa a ideia de que na sociedade brasileira encontramos modelos diversos de família. Provavelmente entre os próprios alunos este seja o caso. Isso, no entanto, complicaria os objetivos da dita lição que visa impregnar as cabecinhas com o modelo tradicional.
Ao encararmos de frente o texto bíblico, não poderemos desconsiderar a realidade conflitual, cheia de nuanças, em que vivemos. A realidade matrimonial e familiar centrada no eu precisa ser confrontada com a excentricidade do amor que tem seu eixo no outro. Eis o desafio a ser atacado pastoralmente. Não basta uma verborréia moralizante. Partindo das dificuldades cada vez maiores de relacionamento presentes em nosso complexo sistema de convivência social (que gera insegurança), torna-se necessário evitar o fechamento em torno do modelo familiar unívoco que apresenta quase sempre a mulher como submissa ao marido.
A comunidade que ouve (ou que reflete sobre o texto) precisa ser convidada a assumir, com coragem e ousadia, o compromisso de, em meio às incertezas e dúvidas, ensaiar um modelo familiar que não reproduza o autoritarismo e a desigualdade. Não com a intenção de apresentar um modelo cristão de família (esse nós já tivemos ao longo de muitos séculos e o conhecemos muito bem), mas com a disposição de permear os modelos existentes com os valores evangélicos e, quem sabe, encontrar uma síntese, um novo padrão. Isso tranqüilamente não será fácil, uma vez que na sociedade pluralista em que vivemos as tensões e disputas são imensas. Este fato constitui mais um motivo para que se evite de todo modo uma padronização das relações conjugais e familiares. A liberdade cristã sempre estará na base desta busca. A colocação de novas camisas-de-força representará uma negação do amor-serviço. Ao negar-se a dominação no nível das relações sociais e políticas, torna-se igualmente incompatível o seu uso no nível das relações pessoais.
A fé cristã parte sempre de um compromisso relacional em que as partes comprometidas assumem livre e agapicamente a intenção de respeitar-se e considerar-se mutuamente. As leituras bíblicas indicadas apontam para esta direção.
O povo de Deus estabeleceu uma aliança livre e não-forçada com Javé (Js 24.1-2,13-18). Já as palavras duras de Jesus são motivo para muitos abandonarem o seu seguimento (ver Jo 6.60-69). Jesus inclusive sugere aos doze que façam o mesmo. Não força o seguimento. O assentimento e a concordância com suas palavras estão na raiz do discipulado. A comunidade cristã encontra sua base no reconhecimento das palavras de vida.
Assim como a comunidade cristã vive a partir de seu compromisso com Jesus Cristo, assim também o homem e a mulher poderão viver uma relação fraternal e respeitosa se assumirem livre e amorosamente um compromisso relacional.
O compromisso relacional encontra dificuldades de concretização nos termos do amor-serviço por causa das profundas marcas de desigualdade e autoritarismo ainda presentes no que concerne aos aspectos econômicos, políticos e ideológicos. A maior autonomia e independência econômico-financeira da mulher bem como a sua maior participação nas decisões da sociedade possibilitam a efetivação, vivência e concretização de princípios evangélicos de amor mútuo não-dominador. O conflito momentâneo, visto sob esta perspectiva, torna-se salutar tendo em vista a construção de novas relações humanas mais igualitárias e fraternas.
5. Prédica
A pregação a partir deste texto torna-se uma ótima oportunidade para mostrar os limites de uma leitura fundamentalista. Havendo um acordo tácito entre mentes razoavelmente arejadas de que o modelo de relacionamento matrimonial de subserviência da mulher não é mais defensável, pode-se apontar para a inserção/acomodação do texto bíblico na sociedade e cultura. Isso pode ocorrer de forma dialogal, partindo de uma leitura de todo o texto. Deixa-se um silêncio e observam-se as reações da comunidade. Repete-se a leitura do v. 22. Pede-se que as pessoas olhem-se nos olhos e cochichem sobre a afirmativa (conforme as circunstâncias, ouvir alguns depoimentos e impressões rápidas). Leia-se a seguir o v. 25 e proceda-se de forma semelhante. Continuar com o v. 21 e direcionar a reflexão para o princípio cristológico presente no texto fazendo dele a chave hermenêutica para toda a prédica.
6. Subsídios litúrgicos
Confissão de culpa (dando-se as mãos): Ao comparecermos diante de ti, ó Deus, reconhecemos que nossas relações com nossos familiares e semelhantes foi desigual e pouco fraternal. Pisamos, maltratamos, olhando somente para o nosso umbigo. Fizemos os outros sofrer por causa do nosso egoísmo. Perdoa-nos por Jesus Cristo toda essa nossa culpa e concede-nos a força do teu Espírito para buscarmos um relacionamento fraterno, em que nosso próximo seja sempre nosso irmão e irmã. Tem piedade de nós, Senhor.
Leituras: Js 24.1-2,13-18 e Jo 6.60-69
Oração final (dando-se as mãos): Vivemos num mundo de incertezas e de inseguranças. Não sabemos como agir em meio às mudanças. Por isso te pedimos, Deus de misericórdia, que em nossas famílias busquemos vivenciar o teu amor; o amor-serviço manifestado em teu Filho Jesus Cristo. Afasta de nós todo autoritarismo, machismo, prepotência, subserviência e violência. Dá que andemos em conformidade com os valores de igualdade e fraternidade. Dá coragem às mulheres para que possam romper com o seu silêncio. Concede humildade aos homens para que reconheçam as diferenças, evitando todo tipo de dominação. Frutifica o diálogo mútuo para que a partir dele possamos ensaiar uma comunhão verdadeira. Que todo isolamento e toda marginalização possam dar vez à integração e ao entendimento. Socorre as vítimas dos maus tratos familiares e conjugais. Que todos os gritos pelo atos de violência hoje cometidos sirvam para nos acordar para a responsabilidade de estabelecer entre nós sinais do teu reino. Por Jesus Cristo. Amém.