Prédica: Efésios 6,10-20
Leituras: Deuteronômio 4.1-2,6-8 e Marcos 7.1-8, 14-15, 21-23
Autor: Harald Malschitzki
Data Litúrgica: 15º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 01/09/1991
Proclamar Libertação – Volume: XVI
1. A título de introdução
Convivem dentro de mim as sombrias forças imemoriais do Mal, as humanas, bem como as pré-humanas. Estão também dentro de mim as forças luminosas, tanto as humanas quanto as pré-humanas, de Deus. Minha alma é a arena em que esses dois exércitos se encontraram e se entrechocaram. (Nikos Kazantzakis, A última tentação de Cristo, p. 5.)
Não se trata de discutir teologicamente a validade ou não das palavras e do misticismo de Kazantzakis. Em nada ajudaria uma leitura fundamentalista de suas palavras acima, assim como pouco ajuda uma leitura fundamentalista do texto de Efésios. Em ambos, porém, o tema é o mesmo e em ambos está a busca pelo lugar, pelo papel do ser humano nesta luta entre o bem e o mal. Aliás, este tema sempre preocupou o ser humano e as respostas encontradas são das mais diversas, descritas tanto em hinos de vitória do bem sobre o mal quanto por textos do mais puro niilismo, que já não vê esperança alguma neste empreendimento chamado gente e chamado mundo. De alguma forma todas as pessoas, mais cedo ou mais tarde, se defrontam com a problemática. Basta ler, por exemplo, um jornal ou assistir a qualquer programa de televisão para ser confrontado com a questão. Para uns o ser humano é apenas um joguete nas mãos do destino, tanto que se chega a falar em um destino irreversível ao qual se está irremediavelmente exposto. Já para outros tudo é apenas o resultado de deformações de educação e de uma sociedade repressiva, como se o ser humano fosse nada mais do que um produto do seu meio. Entre estes dois extremos há toda uma gama de tentativas de compreender o mal e todas as suas formas de se manifestar, sendo o ser humano o envolvido/protagonista de destaque.
A Bíblia usa diversas imagens para falar do mal e do lugar do ser humano nesta luta entre o bem e o mal. Assim, por exemplo, Jesus fala de uma porta e de um caminho estreito, e de uma porta e de um caminho largos, explicando que justamente o caminho largo e a porta larga é que levam à perdição (Mt 7.13s). Já em outra passagem Jesus usa a imagem de dois senhores, a um dos quais o ser humano deve servir: um é Deus e o outro o diabo, simbolizado aqui pelas riquezas (Mt 6.24). A contraposição entre luz e escuridão é uma maneira a mais para descrever bem e mal (Ef 5.8s). Mais radical é a formulação do propósito que o próprio Deus se impõe depois do dilúvio: Eu não amaldiçoarei nunca mais a terra por causa do homem, porque os desígnios do coração do homem são maus desde a sua infância (Gn 8.21). Vai nesta linha o raciocínio de Paulo quando ele escreve: Eu sei que o bem não mora em mim, isto é, na minha carne. Pois o querer o bem está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero (Rm 7.18s).
Seguramente estas imagens são diferentes umas das outras e por si só já dificultam uma leitura fundamentalista. Entretanto, todos estes textos tem em comum a convicção de que o ser humano está exposto a um poder, a uma força que o leva à prática do mal, uma força que é mais forte do que ele. Não obstante, o ser humano, na medida em que se deixa vencer pelo mal, assume responsabilidade e é culpa do, pois o seu destino não tem um traçado irreversível, um destino pré-estabelecido, a exemplo de trilhos de trem que são os responsáveis pelo destino deste. A história da humanidade é um testemunho vivo de que o mesmo ser humano que é capa/ de amar seus filhos e outras pessoas, que em determinados momentos é capaz de tremenda solidariedade, que é capaz de atos de heroísmo em favor de outros, é capaz também de barbaridades e atrocidades de toda ordem. Guerras (algumas delas tidas como santas!), genocídios no passado e no presente, escravidão, ganância, sistemas e estruturas que privilegiam poucos e atiram a maioria no sofrimento e na miséria… não é preciso caminhar longe para ter isso diante dos próprios olhos HOJE!
Os cristãos não escapam de viver nesta realidade e eles individualmente ou através de suas entidades são co-responsáveis por esta realidade. Ainda assim, estes cristãos, que segundo Lutero são simultaneamente justos e pecadores, são desafiados a procurar por caminhos do bem, a lutar por uma vida digna e plena não apenas para si mesmos, mas para todos. Este desafio pode estar vazado em palavras como, por exemplo: … andai como filhos da luz, pois o fruto da luz consiste em toda bondade, justiça e verdade (Ef 5.8b-9), ou, então: Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito (Mt 5.48). Há, como já este texto evidencia, um referencial, uma fonte a partir da qual este desafio pode ser nutrido e fortificado: o próprio Deus em Jesus Cristo. Não se trata, pois, de um apelo moral para os mais fortes, mas justamente de um desafio para os fracos que se nutrem do amor de Deus e do exemplo de seu Cristo. Nas palavras de Kazantzakis:
Para poder se alçar até a Cruz, Cristo passou por todos os estágios que o homem que luta tem de atravessar. É por este motivo que o seu sofrimento nos é tão familiar; é por isso que participamos dele e é por isso que a sua vitória final se assemelha à nossa vitória futura. Aquela parte da natureza de Cristo que era profundamente humana ajuda-nos a compreendê-lo, a amá-lo e a nos dedicarmos à sua Paixão como se nossa fosse. Se, dentro de si, Cristo não tivesse esse cálido elemento humano, ele jamais conseguiria tocar nossos corações com tanta segurança e ternura; não conseguiria tornar-se um modelo para nossas vidas. Nós lutamos, vemos que ele também luta, e nisso encontramos força. Percebemos que não estamos totalmente sós no mundo: Ele combate ao nosso lado. (Op. cit. pp. 6-7.)
A nossa força está fora de nós mesmos e só por isso podemos arriscar atender ao apelo de Deus para lutar por shalom em um mundo no qual Cristo é recrucificado todos os dias milhões de vezes. A comunidade cristã está entre o já acontecido na cruz e ressurreição e o que está por acontecer no final dos tempos.
2. Refletindo sobre e a partir do texto
Efésios 6.10-20 (há teólogos que preferem parar já no versículo 17) reflete à sua maneira o acima descrito: a realidade em que o ser humano está inserido e o apelo para que os cristãos lutem e se empenhem a partir de Cristo por justiça e paz. O autor da carta o faz em uma linguagem própria. O cenário é de luta, a exemplo das então conhecidas lutas de gladiadores, que, como se sabe, eram lutas de vida ou morte. Não havia espaço para simulação, para fazer de conta. Na arena, no final da luta, havia lugar apenas para um vivo e um morto, mas não para dois vivos.
O texto descreve o adversário como o diabo, o maligno, o espírito do mal, os dominadores do mundo das trevas, do mundo da não- vida. É interessante notar que o exemplo da luta de gladiadores já é ultrapassado, pois de repente o adversário não é um elemento, mas legião. Isso significa que o mal vai para bem além do indivíduo e da capacidade individual de cada um.
Nosso vocabulário mudou, nossas experiências com as forças do mal são outras e nem por isso não menos dolorosas e desapontadoras. Se hoje damos outros nomes ao mal, isso significa que ele esteja sendo minimizado: o mal tem seu lugar em nós mesmos (Gn 8.28; cf. também as palavras de Jesus em Mc 7.20-23), sua cabeça de ponte (Bornhäuser) está no ser humano. Ao mesmo tempo ele é bem mais amplo e bem mais violento do que o indivíduo e, neste sentido, ele é sobre-humano. Estão aí ideologias cuja prática mata, estão aí teologias que impedem mudanças, estão aí grupos e organizações que se colocam a serviço do mal e da não-vida. Quase que respiramos a presença do mal que vai destruindo vida… O diabolos hoje tem outra roupagem, mas ele está aí.
O cristão não pode ficar indiferente a qualquer das manifestações deste mal. Ele é desafiado a uma luta na qual não se pode entrar de mãos abanando. Preparar-se é preciso. E, para ficar dentro da linguagem da luta de gladiadores, o nosso texto apresenta armas e armadura. Algumas destas armas, no Antigo Testamento, são de Deus (Is 11.4-5; 59.16-18; Sb 5.17-23), aqui emprestadas ao ser humano. É imperioso fortalecer-se no Senhor e usá-lo como uma armadura protetora. Os rins preci-sam ser protegidos duplamente, pois eles são uma das partes mais sensíveis e centrais do ser humano, tanto que acertá-los é acertar o ser humano em seu cerne (Jó 16.13), bem como podem ser, amiúde, o depositário da consciência (Sl 16.7; Jr 12.2), a ponto de Javé examinar coração e rins (Sl 7.9; Jr 17.10 e 20.12) (cf. H. W. Wolff, Anthropologie des Alten Testaments, pp. 105-106). Tanto a proteção dos rins como a consciência da luta são a verdade e a justiça. Os pés, que mensageiros de antigas mitologias tinham alados, devem estar calçados com o evangelho da paz. O escudo para se defender das investidas do inimigo é a fé, e o capacete que protege a cabeça, bem como a espada que ataca o inimigo, é o espírito da palavra de Deus. Finalmente um elemento importante nesta luta: a oração por si, por outros e em favor da causa.
Pôr-se a caminho preparado, este o desafio. Saber quem é o inimigo, ter armas com as quais enfrentá-lo… Linguagem de guerra, linguagem de luta por vida ou morte. No momento, porém, que perguntamos pelo objetivo da luta (afinal não se trata apenas de vencer o mal!), vamos perceber que a linguagem guerreira é uma metáfora, a princípio até contraditória, pois se trata de anunciar a paz, porque CRISTO É A NOSSA PAZ (Ef 2.14). Para isso é preciso estar preparado a partir do evangelho de Cristo, sabendo que há inúmeros inimigos que vão resistir a cada passo. A paz anunciada pelo Cristo, a paz que ele é, inclui e envolve toda a vida, ela é verdade e justiça.
Verdade torna as coisas transparentes; ela chama as coisas pelo nome e procura ver o que está acontecendo por detrás de propostas, discursos e planos, pouco imporia se são de pessoas, grupos, autoridades, governo. Descobrir a verdade e por ela lutar, porque este é o único caminho para que se estabeleça justiça, isto é, para que se crie um mundo em que é possível respirar livremente e viver segundo o projeto de Deus, um mundo de paz e em paz onde é possível olhar uns nos olhos dos outros sem medo, no qual se tem coragem de admitir erros e de pedir perdão por eles. Isso, evidentemente, não interessa ao diabo (aquele que confunde e cria bagunça), ao maligno, porque shalom é contrário à sua própria essência.
Segundo Efésios 5.10-20 a Igreja, a comunidade e os cristãos individualmente estão colocados no campo de batalha em favor da paz. Este campo está minado pelo mal, pelo que somente recebendo força do próprio Deus há qualquer perspectiva de vitória.
3. A caminho da pregação
Em uma pequena comunidade na periferia de São Leopoldo praticamente não mais acontece a prédica convencional, monologada. No diálogo, através de perguntas e estímulos, vai se desenvolvendo a prédica bem participativa, que costuma levar mais tempo do que nossas prédicas habituais. Embora eu continue achando que também a prédica convencional ainda tem seu papel e seu valor, vejo outros caminhos promissores e gostaria de propor um destes para este texto, o que de forma alguma impede a outra modalidade. Seria bom ter um quadro e giz (colorido) à mão. O texto pode ser desenvolvido em três momentos, sendo que ele mesmo pode ser lido mais no final, quase que como um resumo do diálogo acontecido.
1. Num primeiro momento usar a palavra maldade (ou equivalente) e convidar as pessoas a associarem acontecimentos e realidades (se houver um quadro, que elas mesmas escrevam as suas palavras ao redor da palavra-chave). Deixar que elas mesmas comentem e ajudá-las através de perguntas como, por exemplo, onde está o mal, de onde vem (cf. l e 2).
2. Num segundo passo fazer a pergunta de como os cristãos podem e devem enfrentar esta realidade. Escrever novamente no quadro ou dialogar. Fé, estudo da Palavra, comunhão, oração, união, coragem, são conceitos que poderão aparecer.
3. O terceiro momento é a pergunta pelo objetivo deste enfrentamento. Pode-se perguntar pela missão de Jesus (lembrando o evangelho proposto, p. ex.) e/ou por sua mensagem. Conceitos como o amor, justiça e paz irão aparecer, entre outros mais.
Agora pode-se ler o texto, não sem antes chamar a atenção ao fato de que a linguagem e os símbolos são de outra época, embora a essência seja a mesma.
Finalmente, pode-se resumir tudo: o cristão, através do seu Batismo e continuadamente, através da Palavra ouvida e celebrada, bem como através da realidade de sofrimento que se conhece, é chamado a engajar-se por justiça e paz. Não há que ter ilusões: este engajamento não será aceito simplesmente com aplausos! Ocorre que também os aplausos dados ao Cristo de Deus foram efémeros… mas Deus venceu e quer vida e vida plena para todos.
4. Subsídios litúrgicos
Proponho que se usem hinos de louvor, mas junto com a confissão de peca dos lambem o hino 150 do HPD (Hinos do povo de Deus).
1. Confissão de pecados: Tu nos chamas, Senhor, a vivermos como teus filhos no mundo que, apesar de Indo, é o leu mundo. Confessamos que também nós ajudamos a deformar a tua imagem e o teu mundo. Tantas vezes somos instrumentos do mal e não do bem e com isso causamos dor, sofrimento e desespero. Senhor, tem piedade.
(Em lugar do convencional Tem piedade…, cantar o hino 150.)
2. Oração de coleta: Temos medo! Medo da morte, mas também medo a cada dia que passa, porque há ódio, desconfiança e espírito de vingança. Senhor, reúne-nos e renova-nos com a força do teu Espírito para que nos aliemos à tua vontade no mundo. Agora, nosso Pai, fica conosco e abençoa esta nossa celebração. Amém.
3. Leitura do texto veterotestamentário: Deuteronômio 4.1-2,6-8.
4. Leitura do evangelho: Marcos 7.1-8,14-15,21-23.
5. Confissão de fé (Credo Social da Igreja Metodista do Brasil. Só tem sentido se distribuído em folhas para todos!).
Cremos em Deus, Criador de todas as coisas e Pai de toda família humana, fonte de todo o amor, justiça e paz.
Cremos em Jesus Cristo, Deus que se fez homem como cada um de nós, amigo e redentor dos pecadores, Senhor e servo de todos os homens.
Cremos no Espírito Santo, Deus defensor, que conduz os homens livremente à verdade. Cremos que a comunidade cristã universal é serva do Senhor; que a unidade cristã é dádiva do sacrifício do Cordeiro de Deus e que viver divididos é negar o Evangelho. Cremos que o culto verdadeiro, que Deus aceita dos homens, é aquele que inclui a manifestação de uma vivência de amor na prática da justiça e no caminho da humilidade junto com o Senhor. Amém.
6. Oração final: Se a comunidade está acostumada, propor que se interceda (cinco ou seis pessoas) por tudo aquilo que é vítima da nossa maldade e da maldade humana: os miseráveis, os explorados, os povos do Terceiro Mundo, os meninos e meninas de rua, os velhos sem lar e sem amparo, bem como por aqueles que se sentem em paz, embora instrumentos do mal. Interceder ainda por cada um de nós e por nós como Igreja universal a fim de sermos instrumentos de paz e justiça no mundo. (Também é possível fazer preces e terminar com por isso intercedemos, ao que a comunidade responde: Senhor, ouve nossa prece. Uma terceira possibilidade, mais trabalhosa, é escrever preces e distribuí-las entre os membros, especialmente onde ainda falta coragem de orar livremente.)
5. Bibliografia
BORNHÄUSER, Hans. Meditação sobre Efésios 6.10-17. In: —. et alii. Neue Calwer Predigthilfen. Stuttgart, 1980, ano 2, v. B, p. 221-229.
DIV. Gut und Böse. In: Jentsch, Werner et alii. ed. Evangelischer Erwachsenenkatechismus. Gütersloh, 1975. p. 325-337.
SCHUMANN, Breno. Um credo para a nossa época: existe isso? Estudos Teológicos, São Leopoldo, 12(2): 70-29, 1972.
VOIGT, Gottfried. Meditação sobre Efésios 6.10-17. In: —. Das Heilige Volk. Göttingen, 1979. p. 444-450.
WESTERMANN, Claus. Meditação sobre Efésios 6.10-20. In: EICHHOLZ, Georg. ed. Herr tue meine Lippen auf. Wuppertal-Barmen, 1950. 2. ed., v. 2. p. 461-465.