Prédica: João 7.37-39a
Leituras: Ezequiel 37.1-14 e Atos 2.1-21
Autor: Gerd Uwe Kliewer
Data Litúrgica: Domingo de Pentecoste
Data da Pregação: 19/05/1991
Proclamar Libertação – Volume: XVI
1. O texto
a) Há uma dúvida quanto à pontuação e separação dos períodos do v. 37 para o v. 38. A oração subordinada quem crê em mim pode ser anexada ao primeiro (v. 37) ou ao segundo período (v. 38).
No primeiro caso temos:
… Jesus clamou: Se alguém tem sede, venha a mim e beba quem crê em mim. Como diz a Escritura: Rios de água viva jorrarão de suas entranhas.
No segundo caso:
… Jesus clamou: Se alguém tem sede, venha e beba! Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva (ou: da vida) jorrarão de suas entranhas.
A diferença entre as duas traduções é significativa. No primeiro caso, os rios de água da vida jorram de Jesus Cristo, e só quem tem fé nele bebe desta água; no segundo caso, Jesus convoca o sedento a vir beber dele. A água da vida está com ele. Depois de beber, o crente se torna fonte de água da vida para os outros. A tradução da Bíblia de Lutero, de Almeida e a Bíblia na linguagem de hoje usam a segunda versão. A Bíblia de Jerusalém a primeira. Entre os exegetas, Bultmann e Schneider defendem a primeira, Buechsel e Strathmann a segunda.
Não se descobriu a que passagem do Antigo Testamento se refere o v. 38b.
Não existem critérios de sintaxe claros para decidir entre uma ou outra versão. A ideia transmitida pela primeira é mais cristocêntrica, mais exclusiva, mais sectária: Cristo é a água da vida, e só quem crê nele dela beberá. A ideia transmitida pela segunda é mais dinâmica, mais instrumental: Jesus oferece a água da vida, que desperta a fé e faz o crente passar esta água da vida adiante. Fico com a segunda versão. É mais simpática.
b) No v. 39 João informa que Jesus, ao falar da água da vida, se refere ao Espírito Santo que, após a sua glorificação, será dado aos crentes. Em João, água e Espírito andam juntos: em 3.5 Jesus fala a Nicodemos de nascer da água e do Espírito; à mulher samaritana Jesus fala da água da vida que dará vida eterna (4.13). Alusão ao Batismo que coincide com o recebimento do Espírito Santo?
c) No v. 38, Almeida traduz do seu interior fluirão rios… A Bíblia na linguagem de hoje substitui interior por coração. A palavra no texto original (kollia) seria melhor traduzida por entranhas: estômago, intestinos, bexiga, aparelho reprodutor. Em suma, o centro vital, que para os antigos não estava no coração, mas no abdómen. A tradução por coração facilmente leva à espiritualização. Mas não é esta a intenção do texto. Os rios de água da vida são reais, materiais. O Espírito Santo coloca todo o corpo a seu serviço.
2. Contexto
Jesus profere as suas palavras no último dia da festa dos tabernáculos (barracas). Era a festa da colheita, alegre, divertida, com muito canto e dança. Relembrava também o tempo em que o povo de Israel vivia em barracas, na migração pelo deserto. E lembrava a promessa de Deus, no passado e no futuro, de dar ao seu povo colheitas abundantes, comida farta, salvação e proteção.
Jesus veio a esta festa em Jerusalém clandestinamente. Os discípulos tinham ido na frente. Mas ele já está na boca do povo, que se lembra da confusão que aprontou quando, por ocasião da Páscoa, expulsou os negociantes e agiotas do templo e desafiou os líderes judeus (Jo 2.13-20). Quando ele aparece na festa, no templo, o conflito se reacende. Ele fala com a autoridade do Filho de Deus, questionando a autoridade dos que representam a lei e a religião organizada em torno do templo. Os líderes religiosos não suportam isso e procuram prendê-lo, calá-lo. Mas a sua hora ainda não tinha chegado (v. 30). E muitos crêem nele e reconhecem nele o enviado de Deus, o Messias (v. 31).
No último dia da festa a oferta de água, levada ao altar no templo, era acompanhada pela súplica por chuvas fartas para a próxima colheita. Nesta ocasião Jesus deve ter proferido as palavras da nossa perícope.
3. Interpretando o texto
O que Jesus quer dizer com as suas palavras? Tento uma interpretação: Ouçam, vocês que estão reunidos nesta festa! A salvação não está nas ofertas e nos sacrifícios que vocês oferecem neste altar. Não está neste templo, nem nesta festa que vocês realizam segundo os ritos tradicionais. Os líderes religiosos de vocês não podem levá-los à água que precisam. A água da vida só eu posso dar. Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Creiam em mim! Encham a sua barriga com esta água da vida que eu ofereço e que, conforme a Escritura, transbordará dos corpos de vocês para dar vida a muitos, se tiverem fé em mim.
4. Preparando a prédica
A pregação está prevista para o domingo de Pentecostes, dia do Espírito Santo. Das três pessoas da Trindade, o Espírito Santo é a mais difícil de abordar, pelo menos para nós, luteranos. Desconfiados que somos de todo tipo de entusiasmo, exaltação religiosa e sentimento piedoso, temos dificuldades em localizar o Espírito. Temos horror de qualquer experiência que nos permita apropriar Deus individual ou coletivamente, e por isso duvidamos das manifestações religiosas como falar em línguas, êxtases e convulsões que para outras igrejas expressam a presença, a posse do Espírito. Questionamos, também, que a Igreja reunida em assembleia, em concílio tenha a presença do Espírito garantida. Concílios podem errar! Assim, a terceira pessoa da Trindade nos parece abstraia, pouco palpável. Jesus é homem de carne e osso, Deus Pai marca a sua presença na história, mas o Espírito Santo?
Ajuda se, em vez de perguntarmos pelo que é, perguntamos pelo que faz. O Espírito Santo como força que age, aí parece haver consenso:
Creio que por minha própria razão ou força não posso crer em Jesus Cristo, meu Senhor, nem vir a ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo Evangelho, iluminou com os seus dons, santificou e conservou na verdadeira fé. Assim também chama, congrega, ilumina e santifica toda a cristandade na terra, e em Jesus Cristo a conserva na verdadeira e única fé. (M. Lutero, Catecismo Menor).
O Espírito Santo, a força que vem de fora de nós, nos chama, desperta a nossa fé, nos motiva para a ação, nos empurra para junto dos outros cristãos.
A imagem do Espírito de Deus como força, como sopro que dá vida ao povo de Deus está muito bem explicada nas duas leituras previstas para o domingo de Pentecostes. Em Ez 37.1-14 o sopro do Espírito de Deus dá vida nova aos ossos e músculos mortos no vale dos ossos secos. A mesma imagem aparece em Jo 20.22, quando Jesus sopra o Espírito Santo aos seus discípulos. E em Atos 2.1-21, os discípulos, atemorizados e apáticos depois da morte de Jesus, ficam cheios de vida e corajosos depois de receber o Espírito Santo.
No nosso texto, o evangelista João identifica o Espírito Santo com a água tia vida que vem de Jesus Cristo. Água é vida. Quem já passou por uma seca, sofreu falta de água, sabe disso. Sem água as plantas não crescem. Sem chuva não há colheita. Mesmo assim, não se vê a água na terra. Vê-se a umidade, vê-se a vida que se desenvolve nesta umidade. Sem ela, os processos de crescimento, de produção não acontecem. A água não para. Sobe nas nuvens, cai como chuva, penetra no solo, sobe na seiva das plantas, é bebida pelo animais e homens, forma córregos e rios, movimenta as usinas, evapora… Um circuito vital, enquanto a vida dura. li, sem ele, a vida acaba. Podemos imaginar assim o Espírito Santo? A força da videira que enche a Igreja e que faz a Igreja lutar pela vida?
Para o evangelista João, o Espírito Santo é o Consolador, o Auxiliador que vem aos discípulos, à Igreja, após a morte e glorificação de Jesus Cristo. O Espírito Santo vai falar de Jesus, ensinará todas as coisas a seu respeito (14.16,26; 15.26). Ele os guiará em toda a verdade (16.13). O Espírito Santo vem substituir Jesus, quando este, glorificado, vai para junto do Pai (14.16). Diferente do relato de Mateus, em João Jesus não promete que sempre estará com os seus, mas ele deixa o Espírito para guiá-los, ensiná-los, motivá-los. A presença de Jesus Cristo junto à sua Igreja se dá através do Espírito Santo. A opinião de que a dádiva do Espírito Santo está ligada ao sacramento do Batismo encontra forte apoio em João.
Onde, porém, podemos localizar a ação do Espírito Santo na Igreja? E nas nossas comunidades? Descartadas as manifestações entusiásticas e emotivas, onde dá para palpar o Espírito Santo? Segundo a explicação de Lutero ao 3° artigo, lá onde há fé atuante, santificação e comunhão. Fé atuante é aquela que se manifesta em testemunho de Jesus Cristo; santificação é vida à disposição do próximo; comunhão é compartilhar dons e bens com o próximo. A definição teórica da ação do Espírito Santo é fácil, mas quando a gente procura por exemplos concretos na sua prática pastoral, os rios de água da vida das entranhas não querem jorrar. Parece que o Espírito Santo movimenta pouco as nossas comunidades. Mesmo assim, procurei lembrar exemplos:
— Uma comunidade pobre do interior tinha dificuldades de cobrir a sua par te do orçamento paroquial. Outra comunidade mais forte, voluntariamente, assumiu a sua cota.
— Numa comunidade havia constantes brigas. Grupos inimigos se neutralizavam. Parecia impossível eleger uma diretoria que tivesse o apoio da maioria. Mas, no dia da eleição, já no primeiro escrutínio foi eleito um presidente que teve o apoio de todos.
— Eu preparara um curso para colaboradores com muito esforço. Mas ninguém parecia interessar-se muito. Fiquei com medo de que todo o preparo tivesse sido em vão. Mas no dia do início do curso, apareceu um bom número.
— Um grupo de senhoras da OASE chegou à conclusão de que já tinham conversado que chega sobre a defesa da natureza. Estava na hora de agir. Organizaram-se, bloquearam a estrada, pararam os caçadores e pescadores predadores e chamaram o destacamento policial para confiscar as armas, as redes, os animais e os peixes que eles levavam.
— Numa reunião do presbitério há muita reclamação contra o pastor. Ele exige demais, chama muito a atenção, aborda temas que ferem. Querem mandar o pastor embora. Aí um dos presbíteros diz: O pastor não está aí para dizer e fazer o que nos agrada, mas para pregar-nos a palavra de Deus. E esta fere.
Vasculhando a memória, a gente acaba se lembrando de muitos momentos na vida da comunidade nos quais o Espírito Santo agiu. Sugiro que se coloque a pergunta numa reunião do presbitério. Será que os presbíteros também descobrirão a ação do Espírito Santo? E quem tem mais coragem pode colocar a pergunta no próprio culto. Quais os fatos que a comunidade vê como ação do Espírito Santo? A reflexão pode tomar rumos insuspeitados. Só se deve cuidar para que Espírito não seja confundido com espiritualidade ou espiritismo.
5. Trilhas para a prédica
A partir do texto e das reflexões acima, proponho as seguintes ênfases na prédica:
a) O cristão não vive do que tem ou possui, mas do que recebe: Temos que reconhecer que de nós mesmos não somos nada, mas somos tudo em Cristo. Reconhecendo a nossa carência, temos a chance de beber da água da vida que Cristo nos oferece, de sermos preenchidos pelo Espírito que Cristo oferece aos seus discípulos. Somos mendigos, um saco de vermes, como diz Lutero; Cristo tem que encher-nos para termos valor diante do juízo de Deus e para o nosso próximo. Não consiste nisso a maravilhosa mensagem da graça: que Deus se esvaziou em Jesus Cristo para encher o nosso vazio com o seu Espírito Santo?
b) O Espírito Santo age de fora sobre nós: Ele não está dentro de nós, não está cativo no nosso coração ou cabeça ou qualquer outro lugar nobre no nosso corpo que queiramos reservar para ele. Também não está cativo nas nossas igrejas e templos. Ele sopra onde quer (Jo 3.8) e não podemos controlá-lo. Não vamos forçar a sua presença com manifestações e exercícios espirituais. Claro, com técnicas, métodos, ritos podem-se produzir emoções, sensações, entusiasmos… mas não nos enganemos: a presença do Espírito estes fenômenos não garantem. Mas ele vem a nós na palavra de Jesus: Se alguém tem sede, venha a mim e beba! Vem a nós na palavra da pregação, no culto, no estudo bíblico, na caminhada com os irmãos em direção ao Reino. Vem a nós nos sacramentos, em forma sensível e material. E como no sacramento, não somos nós que nos servimos. Outros nos servem e a nós só resta receber e agradecer.
c) O cristão é vaso do Espírito Santo, para passá-lo adiante: Jesus diz: Quem tem sede venha a mim e beba! E quem crer em mim (de maneira que ele venha beber), das entranhas dele jorrarão rios de água da vida. Não bebemos da água da vida para regozijar-nos de barriga cheia. A bebida vinda de Deus não nos torna apáticos, sonolentos, que nem outra bebida. Quem crê em Jesus Cristo passará a água da vida adiante. Somos vasos comunicantes. Se represamos a água da vida em nós, em nossa comunidade, dá indigestão, azia: tornamo-nos autojustificantes, fariseus, soberbos, hipócritas… Quantas comunidades temos que se fecham sobre si e se aniquilam em brigas e contendas internas! É que não são vasos comunicantes! Mas se a água da vida transborda das nossas entranhas, de dentro da nossa comunidade -, para o mundo, para o próximo, teremos alegria, abertura, amor, e os conflitos que sempre surgem servirão para aperfeiçoar-nos como instrumentos, como vasos comunicantes.
6. Bibliografia
– Kilian, Horst, em Proclamar Libertação VI, Ed. Sinodal: 1980, p. 194-197.
– Groll, Wilfried, em Proclamar Libertação XII, Ed. Sinodal: 1986, p. 199-203.
– Rengstorf, Karl Heinrich/Buechsel, Friedrich, Das Evangelium nach Johannes. NTD. Göttingen: 1937.
– Schneider, Johannes, Das Evangelium nach Johannes. Berlin: 1976.
– Strathmann, Hermann, Das Evangelium nach Johannes. NTD. Göttingen: 1963.