Prédica: Lucas 24.36-49
Leituras: Atos 4.8-12 e 1 João 1.(1-4) 5-10;2.1-2
Autor: Marli Lutz
Data Litúrgica: 3º. Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 14/04/1991
Proclamar Libertação – Volume: XVI
1. Impressões gerais
Estamos nos trilhos de Jesus, principalmente nos momentos em que o conflito que o levou à morte se acirrava. Antes de sua morte Jesus esteve diante de um tribunal. Agora os discípulos estão diante dele. Em meio a esta situação vai sendo forjada a comunidade cristã — da forma como fora profetizado por Jesus:
Eis que vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas. E acautelai-vos dos homens; porque vos entregarão aos tribunais e vos açoitarão nas sinagogas; por minha causa sereis levados à presença de governadores e de reis (…) E, quando vos entregarem, não cuideis em como ou o que haveis de falar, porque naquela hora vos será concedido o que haveis de dizer; visto que não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é quem fala por vós. (Mt 10.16-20.)
Este texto é como projeção dos acontecimentos descritos em Atos. Perseguição, prisão, tribunais são a base comum de ambas as situações. Decisiva para suportar e, inclusive, enfrentar esta situação é a presença do Espírito de Deus. Estes trilhos vêm de longe. Os profetas já andaram sobre eles. Quem garantia sua resistência e sua força combativa em meio ao temor e insegurança era o Espírito de Deus (p. ex.: Jr 1).
Os apóstolos fizeram uma experiência semelhante. A hora do aperto fê-los balançar: um trai Jesus, outros dormem na hora da vigília, o resto foge e se esconde atrás de portas trancadas. No entanto, esta não parece ser a situação deste momento que o texto reflete. O fato de assumir sua missão como proclamadores do evangelho torna-os corajosos e audazes como as mulheres aos pés do Crucificado e diante do Ressurreto.
Por falar em mulheres, cadê elas? Ora, estamos no templo. O que elas estariam fazendo por ali? No templo não havia espaço para elas. E parece que nem fizeram questão de conquistar um espaço por aí. Afinal, templo e reinado desde o início tiveram seus dias contados.
As mulheres estão construindo comunidades. É uma luta que não é só desses dias. São lutas de grande valor para o povo. Sabemos de muitos nomes, porque ficaram especialmente registrados na memória do povo: Débora, Jael, Ana, Rute, Priscila; até tornaram-se grandes líderes como Rute, Ester, Judite, Maria Madalena. Suas lutas faziam parte desta proposta comunitária, sem templo e sem rei — sem exploração em cima do povo, sem centralização de poder! Até parece que os discípulos nem sempre conseguiram assimilar esta proposta (Mc 10.35-45).
No livro de Atos transparece bem o conflito decorrente da busca por esta proposta comunitária. As comunidades até passam a representar um poder paralelo. No texto transparece este jogo de poder. De um lado o poder instalado e de outro o novo poder que emerge a partir das pessoas iletradas.
O autor faz questão de enfatizar os contrastes:
PODER CONSTITUÍDO PODER NOVO
Poder histórico de Israel X Poder emergente/anti-poder
Sacerdotes, anciãos, doutores (lobos) X Apóstolos iletrados, povo (cordeiros)
Projeto de morte: crucificação X Projeto de Vida: ressurreição
Legitimidade deste poder:
Sinédrio X Nome (Jesus Cristo)
Quem sustenta:
Templo (judaísmo conservador) X Espírito Santo
O livro de Atos é redigido quando o templo de Jerusalém já está destruído há mais de 10 anos. Mas, porque este interesse pelo templo? É o local onde se tentou aniquilar o projeto do Reino. A ressurreição, por sua vez, é a condenação solene e a derrota definitiva desta tentativa de vencer o Reino. Para afirmar esta derrota, o surgimento ou os primeiros passos da comunidade são vistos a partir de dentro. O interesse não está no templo em si. A ruptura com o templo já é fato consumado. A cadeia evidencia isto.
A pergunta (v. 7) dos representantes do poder constituído é o pretexto para dar a palavra a Pedro. O teor da pergunta aponta para a identificação entre ação de Jesus e ação das comunidades, pois é a pergunta feita a Jesus no templo (Lc 20.2). Ou seja, a ação da comunidade é a continuidade da ação de Jesus. Por isso o anúncio do evangelho é retomado ali onde foi barrado.
2. O texto
V. 8: Toda esta coragem de Pedro parece ser típica destas estórias onde, longe dos acontecimentos, o mais medroso passa a ser o mais corajoso. O texto joga com estes elementos. Um pé-de-chinelo enfrentando o mais alto tribunal do judaísmo, o qual acabara de dar sentença de morte a Jesus. No nível da mensagem, nada mais animador! Mais uma vez a Palavra é promovida e testemunhada por gente iletrada, inculta, medrosa, cheia de crises de fé (afundando no mar, dormindo na vigília, temendo a tempestade…). É essa gente que desafia poderes. São estes/as homens e mulheres que são porta-vozes do evangelho, construtores/as da nova casa. É o jeito de Deus de construir o seu reino. A sua parte é a garantia da sua presença. Jesus já falava sobre isso (Lc 12.lis). É o Espírito de Deus que não se deixa prender pelas s marras das estruturas de poder, é completamente liberto, livre para fazer história de libertação, livre como vento que sopra, que empurra e anima o povo sofrido de Deus a recomeçar sempre de novo o projeto do Reino já tantas vezes despe¬daçado pela história dos opressores.
vv. 9-10: O templo não mais existe. Mas o seu resplendor permanece na lembrança. Os judeus precisam se reorganizar sem ele. Paralelamente emerge a comunidade cristã. Há um encontro entre os dois grupos. Na realidade, a comunidade cristã conta também com os judeus para se fortalecer. Para os judeus isto é um dilema, pois sentem-se traidores como participantes desta nova comunidade. E aí entra a reflexão deste texto, que é uma tentativa de colocar as coisas no lugar: o traidor de Israel não é o povo judeu. Quem desobedece a Deus, quem nega a lei, quem se opôs aos profetas e a Cristo foram os chefes — os sumos sacerdotes, os chefes das sinagogas, os doutores. Por aí o conflito vai se clareando. A briga não é entre judeu x cristão/gentio, mas povo x classe dominante. O chamado de Pedro é favorável à união do povo, este misto de gente; é desfavorável à classe dominante, o judaísmo conservador, que, sem templo, se rearticula talvez de forma mais rígida e fechada.
O templo continua na cabeça do povo. Para não ficar na eterna nostalgia do templo, há a necessidade de afirmar a reorganização da comunidade independentemente do templo ou da sinagoga. O elemento decisivo é a ressurreição. No nome do Ressurreto reside o poder da vida, da cura para a vida, da verdadeira salvação.
O alvo do discurso de Pedro não são os sacerdotes. Seu interesse está em atingir o povo. A classe dominante é causa perdida. Só que está na hora do povo optar entre este judaísmo conservador ou a comunidade. Dependendo de sua opção, ou irá compactuar com os que assassinaram Jesus, ou irá assumir o projeto do Ressurreto.
Vv. 11-12: Este Salmo (18.22) é citado várias vezes no Novo Testamento. É uma expressão comum, familiar. Até os doutores tinham simpatia por esta expressão de construtores da lei. Pois bem, são estes os construtores que, na verdade, rejeitaram a pedra angular. Mas, nem por isso a construção pára. A pedra angular permanece firme e, inclusive, não há outra que possa substituir esta. É por meio desta pedra que a salvação se torna acessível. É em torno desta pedra que a construção recomeça. Quem são, então, os/as construtores/as convocados/as para esta obra?
3. Comentando um pouco…
Este texto de Atos é como colírio que limpa os olhos da poluição do pessimismo e da falta de perspectiva, e faz enxergar os pequenos sinais do Reino que aconteceram ontem e continuam acontecendo hoje.
Estes sinais vão acontecendo porque tem gente disposta a baixar o discurso para a prática. Aliás, o discurso de Pedro reflete a própria prática, prática de comunidade. Não é teologia pensada atrás de uma escrivaninha, é teologia pensada atrás da história, a partir dos fatos, das lutas, da vida concreta. É teologia pensada em meio ao conflito, à dor e ao sofrimento do povo, como também em meio à resistência e tentativa de quebrar com as forças que produzem o conflito. São alguns sinais bem concretos da construção do Reino que as comunidades primitivas nos ajudam a enxergar e valorizar. Assim, nos animam também a sair um pouco mais do discurso ou de pensar muito longe e buscar e fortalecer os pequenos e frágeis sinais entre nós hoje.
Mas é claro, não façamos o mesmo só lamentando o que não foi possível. Por aí afora há muita gente empenhada nesta obra. Há comunidades caminhando e cantando, ou seja, construindo e celebrando. Há experiências diferentes, há grupos de (re)leitura bíblica, há gente unida nas ruas exigindo seus direitos. Há gente no movimento lutando por terra, por teto, por pão… lutando para quebrar com o sistema capitalista e construir um sistema democrático. Lutando também para quebrar com esta(s) igreja(s) conservadora(s) para poder de fato se organizar e viver como comunidade, fora de suas asas dominadoras.
4. Dicas para celebração
1. Canto; acolhida: Deixar a comunidade à vontade para uma participação eletiva de todos/as. Frisar: neste culto celebramos a ressurreição, a vitória da Vida sobre a morte. No Ressurreto já temos parte nas primícias do novo céu e da nova terra. Nele somos animados/as também como comunidade a nos juntar com todas as pessoas que estão na busca desta Vida, colocando-nos, assim, à disposição da obra de Deus como instrumentos do seu Reino.
2. Canto.
3. Intróito.
4. Confissão de pecados: convite à reflexão pessoal sobre a situação de pecado individual e estrutural.
— Grupo de animação canta (ou lê com fundo musical) Construção, hino de Chico Buarque;
— várias pessoas se expressam livremente colocando fatos da realidade no sentido de prece. A cada três preces todos/as respondem: Tem piedade de nós, ó Deus.
5. Leitura bíblica de absolvição.
6. Oração: Dois jovens elaboram e a colocam em responsório.
7. Leitura bíblica: l João 1(1-4)5-10; 2.1-2 e Lc 24.36-49.
8. Compromisso com as pessoas cristãs no mundo na busca pela vontade de Deus que cria, do Filho e do Espírito Santo. — Credo Apostólico.
9. Canto; pregação.
10. Canto, ofertório, compromisso. Toda a comunidade é convidada a participar. Mesmo assim é importante que esta parte já esteja preparada pelos/as jovens, onde cada qual já traz um símbolo e ao depositá-lo no altar coloca seu compromisso com o Reino.
11. Santa Ceia. Durante as palavras da instituição da Ceia, jovens estão junto do altar e erguem oferendas ali depositadas. Onde for possível, a Santa Ceia pó dera ser distribuída estando as pessoas em círculo em torno do altar.
O Pai-Nosso poderá ser orado de mãos dadas e levantadas ao alto.
Esta celebração pode ser elaborada com um grupo que ajudará a dinamizá-la. É importante não fazer uso de uma linguagem excludente, como, por exemplo, Deus Pai, todos os homens, etc. As mulheres devem ser valorizadas não só na hora de trabalhar para a comunidade, por isso devem ser incluídas também na linguagem.
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido.
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados com cimento e lágrima.
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão e arroz como se fosse príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música.
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no céu como se um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público.
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.
(Construção, de Chico Buarque.)
5. Bibliografia
COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos. Comentário Bíblico, Vozes, I Metodista Sinodal, Petrópolis, 1988.
Comentário aos Atos dos Apóstolos, em: Comentário Bíblico, Ed. Paulinas, São Paulo, 1983.
STADELMANN, Luis e outros. Atos dos Apóstolos ontem e hoje. Em: Estudos Bíblicos n° 3. Vozes, Petrópolis, 1985.