Prédica: Marcos 10.35-45
Leituras: Isaías 53.10-12 e Hebreus 4.9-16
Autor: Werner Kiefer
Data Litúrgica: 22º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/10/1991
Proclamar Libertação – Volume: XVI
Introdução
Os evangelhos caracterizam a vida de Cristo sob os aspectos das comunidades inseridas num determinado contexto social. O evangelho brota da vida, dos ensinamentos de Jesus e do jeito como são as comunidades. Marcos nos quer, assim, ressaltar o caminho de Cristo que vai em direção à cruz. Contrapõe-se a uma cristologia triunfalista. A comunidade de Marcos não presencia a semana santa — a cruz e a ressurreição — apenas na Sexta-Feira Santa e no Domingo de Páscoa, mas ela está presente desde a segunda-feira. A cruz perpassa o ministério de Cristo e, igualmente, a comunidade de Jesus. Marcos prepara a sua comunidade para tanto, confrontando-a por três vezes de forma objetiva com o evento da cruz de Jesus Cristo: Mc 8.31; 9.31; 10.33.
No Evangelho de Marcos também transparece a sua comunidade, que é preparada e motivada para lutar, enfrentar a prática imposta pelo Império Romano. A mera compreensão intelectual da vida de Cristo não põe a comunidade no rebanho de Deus. Mas, o voltar-se para as situações de conflito existente entre a prática de Cristo e de dominação imperial romana, deve colocar a comunidade no trilho da propagação e do testemunho prático da proposta ensaiada com os discípulos de Jesus Cristo. Para tanto, ter-se-á que ter presente com clareza que neste trilho a cruz não será uma surpresa repentina, mas uma realidade contínua até a festa plena da Páscoa. Da mesma forma, a vitória da ressurreição é uma realidade decorrente do discipulado de Jesus Cristo.
1. O texto
Aconteceu um fato, uma história entre Jesus e os seus discípulos. Neste fato vemos o confronto de duas propostas direcionadas quanto à questão do poder. Que tal narrarmos o fato, a história que certamente também é a história das nossas comunidades?
Quando Jesus estava indo para Jerusalém com os 12 discípulos, conversavam bastante sobre a oposição que iriam enfrentar agora na capital. No caminho, Tiago e João ficaram um pouco para trás. Combinaram algo. Aproximaram-se dos demais e perguntaram a Jesus:
— Podemos te fazer uma pergunta?
— Podem — respondeu Jesus.
— Jesus, o negócio é o seguinte: eu, Tiago e João queremos te propor que quando estivermos contigo no Céu, que eu fique sentado no teu lado direito e o outro, no esquerdo. Que tal, não seria isso bonito?
— Mas esperem aqui — disse Jesus. — Vocês têm certeza do que estão pedindo? Estão preparados para o que lhes espera? Para beber do cálice e receber o batismo com que sou batizado?
Tiago e João responderam que sim.
Mas Jesus continuou, dizendo-lhes que vão beber do mesmo cálice e receber o mesmo batismo:
— Isto vocês irão experimentar no caminho de vocês. Mas o negócio de conceder lugar, isto realmente é um negócio que faz parte da lógica, do jeito que as pessoas vivem a sua vida no mundo. Conceder lugares, privilégios não é minha tarefa. Está certo que aqui funciona, como chama-se mesmo, o trem da alegria, onde uns poucos mandam e convidam a embarcar neste trem e onde se concedem privilégios. Concedem-se honras para os achegados do poder. No reino de Deus não existirá este tipo de relação, de concessão de privilégios. O importante não será aquele que domina; mas aquele que serve será ressaltado. Divisões não fazem parte das propostas do reino do meu Pai — comentou Jesus.
Após essa parada em meio ao caminho, seguiram viagem. Mas os outros 10 discípulos de Jesus ficaram uma fera com Tiago e João. (Mas por que será que ficaram assim zangados?)
Jesus concluiu dizendo que veio servir com a sua vida, com uma proposta para que todos tenham vida e alegria.
O diálogo motivado pela pergunta de Tiago e João ressalta um confronto de propostas. É impressionante a espontaneidade existente nos discípulos. Nisto também se percebe a amizade, o companheirismo presente na comunidade de Jesus. Da mesma forma, deve nos chamar a atenção o fato de que o pensar e agir dos discípulos ainda vem movido com muito combustível do Império Romano. Devemos ali perceber, com toda a humildade, uma dificuldade da nossa parte como comunidade. Transplantamos práticas de imperialismo de dominação do mundo capitalista para as comunidades, certamente porque temos dificuldades em perceber que Jesus ensaiou aqui conosco uma nova proposta de vida, de transformação, para um novo céu e uma nova terra. Sob este aspecto de conflitos de propostas de organização que existem entre nós e que se opõem à proposta de Jesus, gostaria de aprofundar esta reflexão.
1.1. O que pensam os discípulos de Jesus (Tiago e João)
No jeito de pensar dos discípulos nos são revelados dois aspectos presentes no mundo de dominação: o da busca de favoritismo no ser discípulos de Jesus e, conseqüentemente, da formação de uma nova classe dominante. A felicidade dos discípulos seria ver Cristo apoderar-se do poder e reinar com eles numa nova sociedade.
A lógica do mundo de dominação, do favoritismo com privilégios, posições de destaque é algo que contamina a comunidade. É o vírus que vai se instalando no corpo, c só se consegue perceber a contaminação quando se está doente. O pior de tudo é que a gente se acostuma com o vírus. Isto leva ao comodismo, a gente se acostuma a pensar e agir com a presença do vírus. Como se não houvesse meio de exterminar o vírus da corrupção entre criaturas e Criador.
No estudo em grupo desse texto em pauta, chamou-nos a atenção o aspecto humano, a espontaneidade dos discípulos. Tiago e João não se deixaram inibir pelo Mestre. Ambos articulam a sua pergunta com a maior naturalidade. Aliás, no Evangelho de Mateus tenta-se suavizar a questão, fazendo a mãe dos dois dirigir o pedido a Jesus. Mas o Evangelho de Marcos parece ser mais original.
A aceitação mútua, o companheirismo, a paciência histórica de Jesus com a comunidade dos discípulos merecem ser aqui sublinhados. O ambiente de companheirismo é que favoreceu o confronto das propostas dos discípulos com a do reino de Deus. No diálogo se descobre que o vírus da contaminação proveniente do imperialismo romano estava presente também ali. O sintoma da doença aparece quando Tiago e João pretendem obter, como consequência do discipulado, um lugar de destaque e tratamento diferenciado dos demais.
1.2. A proposta de Jesus
A proposta de Jesus é de transformação, libertação de ambição por poder, para a verdadeira dignidade do ser humano. A conversão para um agir e pensar que esteja dominado pelo espírito do amor, da justiça demonstrada na prática de Jesus Cristo. A transformação radical onde o trem da alegria não consegue mais sequer vislumbrar os seus próprios trilhos. Pois este trem causa mal-estar e ratifica a existência de privilégios e divisões na comunidade.
A autenticidade da proposta de Jesus pressupõe um plano de ação missionária. Requer critérios e objetivos, uma estratégia de ação. Jesus faz uma análise da prática do mundo e diz aos discípulos que entre vós não é assim (v. 43). No reino de Deus a ação missionária dar-se-á pelo servir. No servir acontecerá a inversão dos valores e caracterizará a ação dos discípulos de Jesus. Aquele que quiser se tornar grande, entre vós, será esse que vos sirva (v. 43).
O método de Jesus é comparativo, faz olhar para a situação de dominação e para a proposta do Reino. O testemunho e a vivência da proposta do Reino no mundo são acompanhados de conflitos, forças e interesses que se antagonizam. Por isso, Jesus quer preparar os seus discípulos para que estejam conscientes no caminhar em direção ao Reino. Os discípulos não podem ser uma presa fácil e nem tão ingênuos. Podeis vós beber o cálice que eu bebo, ou receber o batismo com que eu sou batizado? (V. 39.)
A resposta de Tiago e João, no v. 39, é afirmativa. Estão aptos para beber o cálice e receber o batismo de Cristo. A morte de Tiago como mártir nos mostra a confirmação da resposta dada a Jesus (At 12.2).
A realidade da cruz e da ressurreição não deve ser vista como mero acidente no discipulado. Antes, fazem parte e são consequências do viver e ensaiar a proposta do reino de Deus. A cruz é o crivo que caracterizará a pedagogia de ação missionária dos discípulos. O servir não se pode dar a dois senhores (Mt 6.24). O servir será o jeito que caracteriza o discipulado. Porém este servir também terá uma direção. Não servirá a todos. O serviço do discipulado direciona-se contra o favoritismo do mundo, viabilizando a transformação da sociedade, quer seja na sua organização (Mc 6.30-44) ou na conscientização (Mt 5 e 6).
Concluindo: Jesus propõe a libertação do sistema de dominação impregnado em nossos corpos. No diálogo com os discípulos se ressalta o método de ação missionária que se caracteriza pelo servir. O servir terá como crivo o próprio servir de Cristo, no evento da Páscoa. Logo, a cruz e a ressurreição é o que caracteriza e diferencia os discípulos da prática do mundo.
2. Pensando na pregação
No estudo do texto em grupo, polemizou-se muito a questão da organização através de cooperativas integradas. Por quê?
O texto aponta para uma situação de dominação advinda e movida pelo imperialismo romano. Esta situação ratifica e gera privilegiados e os empobrecidos. Jesus se opõe à prática do mundo. No reino de Deus não será assim. Logo, a ferramenta principal usada para motivar a prática de transformação será o servir. Este jeito implantará uma nova forma de relação social. A nova prática passa pelas nossas organizações sociais, nas quais estamos inseridos. E aí percebemos as nossas contradições. Ora, muitas pessoas estão em cooperativas integradas para escaparem dos comerciantes individuais, considerados desonestos. Acredita-se, então, estar numa organização nova onde não existem dominação, privilegiados. Nesta discussão advém o mal-estar que precisa ser articulado.
A produção agrícola através do sistema de integração a uma agroindústria significa a integração do capital de forma concentrada no campo. Dividem-se os agricultores em várias categorias de produção: fumo, frangos, suínos, leite, etc. Transfere-se, assim, para pequenos agricultores, uma produção de altos riscos e sobre a qual a agroindústria tem o seu controle: sobre a terra, família, produção, ferramentas. Como isto acontece?
Quando alguém, por exemplo, quer integrar-se na criação de frangos, recebe a visita dos técnicos da empresa. Faz-se uma investigação completa da terra, da relação do candidato com a vizinhança, de sua pessoa, da situação financeira, etc. Depois o candidato procura a firma para ver se foi aprovado. Geralmente, pela sua persistência de ter voltado umas três vezes para ver se saiu o resultado de sua aprovação, é aceito como novo integrado. Logo, será um privilegiado. Porque nem todos conseguem. Ao mesmo tempo, será alguém subordinado ao grande capital, que terá sob controle a sua família, a produção, terra. O integrado não tem autonomia sobre o preço, produção, criação e venda. Deve seguir rigorosamente as leis da firma integradora. Que privilégio!
O favoritismo, o privilégio estão tão impregnados na pessoa, como se deles necessitasse para viver. O integrado neste sistema de produção se vangloria. Porém somente depois de alguns anos sente a escravidão na qual se inseriu. A ambição pelo poder e honra se reproduz pelas próprias mãos da família. Pela família se reproduz a ambição e vai se solidificando na sociedade.
O texto em pauta aponta para as formas de organização da nossa economia e de como somos os Tiago e João da vida. Mostra que assimilamos com facilidade movas formas de dominação. Parece que estamos sempre prontos para uma reforma, remendar um pano velho. Existe uma tendência de amenizar, reformar. Como é difícil a transformação, a conversão para novas criaturas de uma nova sociedade!
Jesus, no diálogo com os discípulos, quer libertar do sistema de dominação para o reino onde a partilha, o servir façam parte e sejam o fundamento das nossas organizações. Pensa-se num ensaio da proposta de Jesus não só na instituição que também é a comunidade como Igreja, mas também naquelas com as quais nos relacionamos economicamente. Que possamos ali, através das cooperativas, principalmente, ser sal, luz da proposta de Jesus. Ensaiar, criar associações a nível de cidade e de campo. Acabar com os trenzinhos da alegria.
A pregação do texto deveria ter como objetivo mostrar que o papel da Igreja não deveria ser o de dar força aos Tiago e João da vida. A Igreja tem o anúncio da palavra, mas palavra que deve se encarnar em organizações. O próprio CAPA — Centro de Aconselhamento ao Pequeno Agricultor — poderia ser um exemplo, ensaio prático da proposta de Jesus no sentido de uma correia relação com a natureza e de criação de associações.
O pecado do comodismo, da ganância da competição são realidades que se confrontam com a proposta de Jesus. Os cristãos deveriam ser mais práticos. Faltam-nos tentativas de ensaiar com o nosso corpo as propostas de Jesus. Queremos ser sal e luz. Muitas vezes queremos ser sal e luz só com palavras e mais palavras. Kempis tem razão ao dizer com muita precisão:
Atualmente Jesus tem muitos discípulos que gostariam de reinar com ele no Reino dos Céus, mas poucos dispostos a carregar a sua Cruz na terra; muitos que querem compartilhar com ele a sua santidade, mas poucos que com ele querem suportar o sofrimento; muitos que com ele querem comer e beber, mas poucos que com ele querem jejuar. Todos querem alegrar-se com Jesus, e poucos querem sofrer com ele! (P. 28.)
2.1. O caminho da prédica
a) Leitura do texto.
b) Recontar o fato, objetivando clarear as propostas de Tiago e João e a de Jesus.
c) O que querem os discípulos (Tiago e João). Remendar.
d) Jesus nos mostra a prática de servir pela qual não existem trem da alegria e nem os trilhos. Para não confundir é bom dizer que não adianta acabar com o trem e criar metros e reforçar trilhos sobre os quais os trens andavam. — A palavra de Deus penetra, divide, discerne os espíritos. Con¬fira a leitura de Hb 4.9-16.
e) Os cristãos devem ser sal que dá gosto, purifica, tempera, contagia, transforma. Não só acuam, mas mordem. Para tanto, o método que os caracteriza é o servir. O exemplo de Cristo, que nos serviu com a sua vida, nos chama a servir com a nossa vida, para que haja vida liberta das domi-nações, dos favoritismos e privilégios do mundo. Aí a cruz e a ressurreição não serão acidentes, mas marcos que caracterizam os verdadeiros cristãos
3. Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Senhor, volta para nós teu olhar amoroso, cheio de bênção e de graça.
Que a luz da tua presença brilhe para nós.
Então teus caminhos serão conhecidos em toda a terra e a tua salvação, por todos os povos do mundo.
Para ti, o louvor de todos os povos, o louvor de todos os homens, mulheres e crianças, jovens. (Sl 66.)
2. Confissão: Deus, te somos gratos por estarmos aqui juntos. Pela vida, pela palavra que cria fé, que transforma. Deus, nós também te pedimos que nos ajudes a olhar para dentro de nós e para o nosso mundo. O egoísmo, a competição, a ganância andam soltas e contagiam a nossa família, a nossa comunidade. Perdoa, Senhor, se nos deixamos contaminar pelo vírus do mal do mundo. Perdoa, Senhor, se ignoramos a nova vida que nos queres dar. Perdoa, Senhor, quando deixamos de lado a proposta de vida que nos dás e que quer estar presente também nas nossas organizações. Perdoa, Senhor, se temos procurado alcançar privilégios na nossa própria comunidade. Perdoa quando deixamos de servir o nosso semelhante que chama por nós. E juntos clamamos a ti Senhor: Tem piedade de nós, Senhor.
3. Oração de coleta: Senhor, a tua palavra transforma e quer criar a fé e a esperança por um mundo novo. Por isso, te pedimos que teu Santo Espírito nos sirva este precioso alimento da salvação. Que a palavra da salvação nos possa ser importante como o ar que respiramos e o pão de cada dia. Que a palavra possa quebrar o nosso orgulho e nos transformar em agentes aptos para servir e trabalhar no teu reino. Em nome de Jesus Cristo. Amém.
4. Leituras bíblicas: Is 53.10-12 e Hb 4.11-16.
5. Assuntos para a oração final: Agradecer e louvar a Deus que veio servir em Jesus para que tenhamos vida. Agradecer pelo dom da vida, de comunhão com a palavra e com os demais. Pedir para que sejamos uma comunidade que seja sal — que dá gosto, tempero, vida. Pedir que tenhamos coragem para ensaiar uma proposta de vida onde estejamos libertos da ambição pelo poder e da dominação uns sobre outros. Interceder pelo doentes da comunidade, enlutados, idosos, crianças. Interceder pela nossa Igreja, para que tenha coragem de assumir os desafios que nos são colocados. Nesta esperança, oramos: Pai nosso…
4. Bibliografia
BENHARD, Rui. Proclamar Libertação, vol. 10. Ed. Sinodal, 1984.
CLEVENOT, Michel. Enfoques Materialistas da Bíblia. Ed. Paz e Terra, 1974.
ALEGRE, Xavier. Marcos ou a Correção de uma Ideologia Triunfalista. CEBI n° 8, 1988. Belo Horizonte.