Prédica: Marcos 10.46-52
Leituras: Jeremias 31.7-9 e Hebreus 5.1-10
Autor: Vítor Westhelle
Data Litúrgica: 23º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 27/10/1991
Proclamar Libertação – Volume: XVI
(…) nunca soube ver sem logo precisar mais do que ver. Sei que me horrorizarei como uma pessoa que fosse cega e enfim abrisse os olhos e enxergasse (…). (Clarice Lispector.)
1. A textura da temática
Há quem nada vê, quem já exilou toda esperança e está além da dor e do desejo: suicidas atrasados, feitos Édipo Rei, que escolhem a noite para ocultar um mundo tão vivo que não cabe nos próprios pesadelos. Há também quem perde a vista mas mantém a visão. São cegos visionários a quem a vista apenas trairia os sonhos. Não querem ver para não perderem a clarividência. Diferente é Bartimeu. É cego de outra estirpe. Quer ver. É cego realista, não vive dos sonhos, mas de esmolas; não exilou a esperança, sofre o exílio.
1.1. Do pranto ao canto
Os três textos previstos para o 23° Domingo após Pentecostes encontram na perícope de Marcos o eixo em torno da qual giram. Mas possuem ênfases distintas e particularidades que enriquecem o escopo ao invés de reduzi-lo ao texto do evangelho. Jeremias 31.7-9 é um hino de louvor anunciando o futuro da saudade. Fala do regresso do resto de Israel que há de ser resgatado dos confins do mundo, das terras de exílio e cativeiro, onde não se pode cantar (Salmo 137). Anuncia o canto de alegria a quem voltará ainda em prantos. E entre quem regressa estará a mulher grávida, a de parto, o cego e o aleijado, aquelas pessoas a quem o regresso não esbarra apenas nos limites políticos que criaram o cativeiro, mas também nas limitações do próprio corpo. O Salmo 126 emoldura a mesma promessa em que o choro ao semear torna-se júbilo no colher e a vida que não é vida é transcendida quando ficamos como quem sonha. O texto é de uma escatologia imanente, no entanto, radical. Cegos são guiados, portadores de deficiência caminham por vias planas, a condição da mulher cujo corpo é dominado pela gravidez não a impede de participação plena na festa. Nem a súplica e o pranto desafinam o canto. Tudo acontece por obra de Javé. Do purgatório ao paraíso guiados pelo caminhos que Javé prepara. Javé apenas é sujeito. O resto de Israel tem apenas uma tarefa a cumprir: entoar louvores e fazer a festa.
1.2. Deus nos dias da sua carne
Se o texto de Jeremias apresenta com radicalidade a oposição entre o cativeiro e seu avesso, do que é e o que há de ser, a perícope de Hebreus 5.1-10 nos conta do como, nos fala da mediação. Atém-se ao caminho. Se no texto do profeta não ouvimos da mediação, a epístola detém-se nela e explica a causalidade da salvação. O ideal do rei-sacerdote, Melquisedeque (rei da justiça, Hb 7.2), é apresentado e aplicado a Jesus. Melquisedeque é o rei de Salem e sacerdote do Deus Altíssimo que abençoa a Abrão, e este lhe dá o dízimo, reconhecendo assim seu sacerdócio e primazia (Gn 14.18-20, cf. Hb 7.4-10). Melquisedeque torna-se assim um protótipo do messianismo, sendo ainda no AT (Sl 110) relacionado com o ideal do rei, do que deve unir, em sua vocação, política e religião, libertação e redenção. A polêmica aqui implícita é contra o sacerdócio levítico, ligado ao templo e à definição religiosa da eleição.
É neste contexto que o autor da Carta aos Hebreus aplica a Cristo o título de sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque (Hb 5.20; 6.10; 7.11,17). Ele é o caminho, a mediação, o causador da salvação, o feitor da justiça e rei da paz. O Deus que transforma pranto em júbilo agora o faz partindo de baixo, rodeado de fraquezas. Só por esse caminho pode obrar a redenção. É por participar na realidade do pecado que pode também compreender a dor de quem, como ele próprio, vive sob a opressão de tal realidade. Assim, o Deus libertador serve, nos dias de sua carne, não só de exemplo, mas é o próprio sacramento, a travessia pela qual se migra da opressão à liberdade. O sujeito da salvação, agora, é o messias e sacerdote que emerge da fraqueza e não é coagido em sua obra libertadora à genealogia de Abraão, mas é da ordem de Melquisedeque a quem Abrão subordina-se.
2. Fé: grito, salto e rebeldia
Uma primeira aproximação ao texto de Marcos 10.46-52 permite reconhecer alguns temas comuns aos outros textos deste domingo. Agora chegamos ao nível de imagens plásticas e concretas que ilustram o modo como o rei-sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque, exerce seu ministério, como ensina a caminhar pelo seu caminho, como é sua pedagogia, qual é a travessia que liga o pranto ao júbilo.
O texto é comum aos sinóticos. Lucas diverge afirmando que a cura acontece na entrada de Jesus em Jericó. Já Mateus fala de dois cegos. Apenas Marcos o identifica como Bartimeu, filho de Timeu. Marcos e Mateus inserem o evento da cura do cego imediatamente antes da entrada de Jesus em Jerusalém. Lucas ainda intercala, entre o texto e a entrada em Jerusalém, o encontro com Zaqueu e mais uma parábola. Mas é da maior importância a proximidade deste texto com a derradeira atividade de Jesus na cidade de sua condenação. Tanto em Marcos como em Mateus, o texto é precedido pelo pedido de Tiago e João em que se anuncia a vindoura paixão, e Jesus explicita sua crítica às estruturas de poder anunciando que entre vós não é assim (v. 43). E o pobre cego Bartimeu surge entre a proposta diacônica de poder (liderar é servir) e suas trágicas consequências.
Bartimeu é apresentado no texto de Marcos como o primeiro seguidor autoconsciente de Jesus, diferente dos discípulos que foram chamados e da multidão de curiosos que o acompanhava ocasionalmente. Cabe a ele também abrir o segredo messiânico. A utilização do título messiânico, Filho de Davi, é a possível causa para a reação da multidão que temia ser associada a um ato de rebeldia com dimensões políticas na Palestina ocupada. Mas esse título não é rejeitado por Jesus, não obstante as perigosas conotações políticas que suscitava.
O texto desdobra-se agilmente em torno de Bartimeu. Participam ainda da cena os discípulos e numerosa multidão, e Jesus. O cego está sentado à beira do caminho. Não está inserido na travessia que vai da marginalidade à vida plena. Não tem destino. Mas ouve que a estrada que nada lhe vale, a não ser para definir sua situação de marginalidade e mendicância, torna-se um possível caminho com a passagem de Jesus.
A liberdade começa a ser gestada pelo grito. E nada o impede de gritar. Gritava ainda mais alto quanto mais o repreendiam. Tornara-se um cego incómodo que já não conhecia seu lugar de esmoleiro na cultura do silêncio. A cegueira era a limitação que seu próprio corpo lhe impunha. Mas a mudez era uma imposição social. Gritar abria-lhe o seu espaço de rebeldia possível. Ouvia e podia gritar. Calar é falar a morte. Jesus escuta seu grito rebelde e, parado, manda chamá-lo. Jesus não vai ao seu encontro. Espera-o. A decisão era sua. Ergue-se de um salto, lançando de si a capa. Na Palestina era costume que esmoleiros pusessem a capa (a segunda das duas túnicas da indumentária comum) a sua frente para recolher os donativos. Talvez seja por isso que uma versão siríaca do texto substitui o lançar por vestir. Mas o peso do texto adotado, que acentua o lançar é bem maior. E isto se torna ainda mais importante sabendo-se que a capa não é um empecilho físico para saltar e correr, mas representava a barreira social da mendicância. A capa para recolher donativos era o que o separava da estrada e definia sua condição de marginalidade.
O gesto tem um profundo significado simbólico. O que o alienava do caminho era a condição de mendigo, que, se o mantinha em vida embora em condição sub-humana, o retinha da vida vivida em plenitude. Romper com esquemas, sistemas e convenções, o grito, o salto e a rebeldia são a incorporação da fé. Bartimeu torna-se sujeito. Já não aceita o lugar que a sociedade lhe reservara. Chega-se a Jesus e expressa o objeto de seu desejo: quer ver! Já não lhe basta ter a sua libertação que lhe reservava um lugar entre o resto de Israel a quem Javé mesmo guiará de volta à terra, conforme a promessa de Jeremias 31. Bartimeu quer decidir seu próprio caminho. Isso, como Jesus mesmo confirma, lhe é possível pela fé que se fez grito, salto e rebeldia. O Mestre o despede já com a vista restaurada: Vai, a tua fé te salvou (v. 52). E foi. Não de volta, mas pelo caminho que o havia salvo, seguiu ao causador de sua fé e de sua salvação.
E o caminho que seguiu era o de paixão e de morte.
Bartimeu era cego que se pôs a caminho para ver o fim de toda esperança, para cegar-se com as trevas da hora sexta. Deixemos Bartimeu por aqui, à sombra do madeiro. Afinal, que caminho é esse que arranca o cego da marginalidade para que pudesse ver o fim do próprio caminho?
O caminho que salva, salva porque e enquanto é caminho. O Jesus que Bartimeu encontra é o que, suscitando fé, ensina que salvação se faz de gritos, de movimentos e de coragem para ver e horrorizar-se. E o Jesus que Bartimeu deixa à cruz e o que incorpora em si próprio o grito de todos os gritos (Mc 15.34) e a paixão de Iodos os pecados. Fez-se ele próprio Bartimeu para que todos os Bartimeus, em todas as margens dos caminhos, possam gritar, saltar e rebelar-se para ver e caminhar.
Este é o sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque que, ensinando o poder da fé, torna-se o autor da salvação quando já não precisa passar por Jericó, para que um Bartimeu venha a gritar e rebelar-se. Nos dias de sua carne o Deus-gente restaurou a graça de toda a carne. Agora, como dizia o Riobaldo de Guimarães Rosa, existe é homem humano. Travessia. Caminho, então, se faz caminhando. Pois isto Bartimeu já sabia. Não ficou ao pé da cruz. Já saltou de encontro à luz do próximo domingo.
3. Celebração e rebeldia
A prédica está para a liturgia como o comentário ao texto, como a crítica à arte, ou como a prosa está para a poesia. O Lecionário Ecuménico ABC prevê, no ano B, os seguintes textos: Jr 31.7-9; Sl 126; Hb 5.1-6(7-10); Mc 10.46-52 e como versículo de aclamação do evangelho 2 Tm 4.18. Todos estes textos deveriam constar da celebração litúrgica. A utilização destes textos, da confissão de pecados e das orações permite orientar a celebração em torno da textura temática deste domingo: o anúncio de um retorno para o futuro de Javé efetivado a partir do contexto da fraqueza. Pranto e júbilo, dor e canto, fraqueza e salvação são as antinomias que perpassam os textos. Tornar possível hoje o canto de amanhã é o que nos convida a essa celebração.
Na pregação os três textos podem complementar-se. A rememoração da promessa de Jeremias e do Salmo 126 representa a moldura na qual se inscreve a promessa de Javé ao seu povo. Hebreus afirma o método da redenção, o caminho que vem da fraqueza e que está firmado de uma vez por todas, unindo a via da paz (salém) e da justiça. O texto do evangelho ensina como a fé torna a quem está à margem (reificado na sua marginalidade) sujeito de sua libertação: por própria decisão homem humano. Travessia.
Mas a prédica como parêntesis reflexivo em uma doxologia torna possível, também, problematizar a questão central que nos traz o texto do evangelho: o que nos impede de enfrentarmos o caminho? Seria o medo de que tenha um fim, que leve à cruz? Seria a capa que recolhe as esmolas (salário, família, status, amigos, etc.) que nos acomodam à beira da estrada, nos catalogam e reificam? Seria a cegueira que nos poupa os horrores da vida e, já por isso, isenta-nos da ressurreição? Como reagimos aos gritos que ouvimos? Queremos, como a multidão, também calá-los pois seu caráter subversivo traz consigo o risco? Quais são os gritos que temos ou escutamos e de que maneira neles verte-se a fé? E o salto de Bartimeu? Serve como prova de uma fé que idealizamos, ou como pintura que ilustra a rebeldia que também nos move? Lembro-me da fábula de Esopo sobre o sujeito que, de volta à sua terra, falava de grandes atos heróicos que havia realizado em suas viagens pelo mundo. E contava, também, que na distante ilha de Rodes havia realizado um salto inigualável, o que poderia ser testificado por testemunhas na ilha. Não é necessário, disse, não sem ironia, um dos seus conterrâneos, aqui é Rodes, faça aqui seu salto. Assim também nossa fé não é provada pelo salto de Bartimeu, apenas ilustra a graciosa licença à rebeldia, aqui e agora. Hic Rhodus, hic salta.
4. Para consulta
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Markus. 3a ed. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt, 1968.
JEREMIAS, Joachim e STRATHMANN, Hermann. Die Briefe an Thimotheus und Titus; der Brief an die Hebrãer (NTD). Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1968.
MAJOR, H. D. A., MANSON, T. W., WR1GHT, C. J. The Mission and Message of Jesus. New York, Dutton, 1956.
SCHNIEWIND, Julius. Das Evangelium nach Markus; das Evangelium nach Matthäus (NTD). 8a ed. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1959.
WEISER, Artur. Das Buch Jeremia (ATD). 5a ed. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1969
ZIMMERMANN, Wolf-Dieter. Markus über Jesus. Gütersloh, Gerd Mohn, 1970.