Prédica: Marcos 6.1-6
Leituras: Ezequiel 2.1-8a e 2 Coríntios 12.7-10
Autor: João Guilherme Biehl
Data Litúrgica: 7º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 07/07/1991
Proclamar Libertação – Volume: XVI
“UMA TORRENTE DE RELÓGIOS ESQUECIDOS”
1. Poesia: Aquilo que desperta o sentimento do belo (Aurélio)
Eu não canto a glória do poder ditatorial.
O braço duro do ditador é simbólico do poder horrível.
Em meus aposentos eu já separei evidência e gasolina
suficientes para fornecer aos ditadores poder inexaurível.
Serei eu o braço duro da Costa Rica?
Estarei de vermelho e verde no Consórcio da Chrysler?
Estarei eu odiando meu povo?
Eles me perdoarão os impostos pagos?
Devo eu receber minha bomba nos trilhos do destino?
Estou na linha de tiro agora?
Gente iluminada, vocês também são o poder.
Eu me recordo do poder em vocês.
Eu não me esqueci de vocês esquiando na Bavária,
nas encostas de neve com fogos de artifício e carabinas.
Eu não me esqueci de vocês esfregando mãos de graxa
em meu avião, deixando assinaturas obscuras na carcaça
de uma arrasa-quarteirão!
Não! Eu não me esqueci da bazuca forrada com palmitos
atada aos ombros de um negro apontando um tanque
cheio de arianos!
Eu não me esqueci das granadas, o medo e a urgência
que elas espalharam na trincheira de um dos irmãos.
Vocês são o poder, gente iluminada!
O poder não é o que é jogado de um avião
Um chapéu é poder
O mundo é poder
Sentir medo é poder
Ficar parado numa esquina sem ter ninguém
para encontrar é poder
O demónio não é tão poderoso senão quando
anda pelas ruas
Um anjo não é tão poderoso senão quando
olha e depois deixa de olhar.
Poema de Gregory Corso, ou um santo das sarjetas. Anjo nascido nas estrebarias de New York, 1930. Filho de pais miseráveis. Infância em orfanatos e reformatórios. Adotado alternadamente por diversas famílias. Aos 17 anos foi para as estradas dos Estados Unidos. Sabendo que não há caminhos, só ruas, viadutos e avenidas (Itamar Assunção). É poeta mal-dito com todos os beats, entre Lawrence Ferlinghetti, Allen Ginsberg, Jack Kerouac. Esses estrangeiros foram, são pedaços da alma norte-americana perguntando ao pó das estradas, on the road, por onde perder o sono. E riem acordados na imensa noite da sua arte, tecendo outro pesadelo que não o sonho biodegradável a que os obriga o cotidiano. O próprio Kerouac apontou o amigo Corso como sendo o melhor poeta da América do Norte. Gregory era um garoto que levava uma vida dura no Lower East Side e que se alçou como um anjo sobre a cidade cantando melodias italianas com a mesma doçura de Caruso e Sinatra, mas sua música eram as palavras. Gregory estonteante e belo, primeiro e único, o arauto Gregory Corso. Leiam devagar e descubram.
Em Corso a poesia é a única forma de eternidade. Ela tem a ver com milagre, com magia, já que é capaz de fazer as coisas acontecerem indiretamente através da mudança na percepção das pessoas. A poesia vem fantasiada no lixo dos dias que passam o tempo. Diz o poeta: Ela se aproxima, vou contar a vocês como ela vem, imensa com estopas de gasolina e pedaços de fios e pregos velhos e tortos, por um arrivista obscuro, de uma obscura correnteza interior. Corso grita solitário que o poder não é o que é jogado de um avião ou de qualquer torre de babel. Poder tem a ver com silêncio, com saber olhar e deixar de olhar, pra então perceber algo ali adiante, ainda que se tenha que ficar parado na esquina sem ninguém a esperar por. Pelas palavras é possível beber as imagens soltas no apodrecimento do cotidiano. Mas é necessário deixar-se ser visto, revelado pelas imagens. Elas vão des-cobrindo um poder de imaginar, de criar. É melhor que seus olhos falem e escutem, além de enxergar. Por isso há que se ouvi-lo. Não ao poeta, mas ao poema, que se projeta na carne das palavras que não ficam no cinema enquanto morre uma criança. Recita o mago: Muita gente dirá que um poema nessa forma não tem polimento, etc. — mas é isso exatamente o que eu quero que eles sejam — eu os fiz se tornarem verdadeiramente meus — alguma coisa inevitavelmente nova — como a velha espontaneidade do jazz de verdade, a novidade é aceita e esperada — pelo eleitos que sabem escutar.
2. Teologia: lugar comum
Era uma vez um grupo de alunos que queria testar seu professor de Biologia Perguntaram ao mestre se a borboleta que um deles tinha escondida entre as mãos estava viva ou morta. Na verdade tudo era um jogo ou uma armadilha, como queiram. Caso o professor dissesse que a borboleta estava viva, eles a amassariam e a apresentariam morta. Se ele dissesse que ela estava morta, eles a deixariam voar livremente. Diga, professor, gritavam os animados estudantes, a borboleta está viva ou morta? Ele pensou por alguns segundos, olhou direto no túnel dos seus olhares e enfaticamente respondeu: Queridos amigos, vocês me perguntam se a borboleta está viva ou morta, mas isso é algo que, afinal, depende unicamente de vocês! O autor do Evangelho de Marcos (que bem poderia ser João Marcos, o que viajou com Paulo e Barnabé — At 13.13; 15.18-41 — e que manteve contato direto com Pedro durante seus últimos dias na capital do Império Romano) diz algo semelhante à comunidade cristã reunida em Roma (entre 68 e 70 d.C.): Está nas mãos de vocês, depende tão-somente de vocês, se a mensagem de Jesus Cristo, a alternativa da ressurreição do corpo, está viva ou morta!
Como sempre, os tempos eram um tanto complicados quanto difíceis. Roma estava possessa pela ditadura e loucura de Nero. Os cristãos eram capturados, torturados e mortos sob a acusação de incendiarem a cidade e de não obedecerem ao imperador (em livre associação evoquei Os Mucker). Em Israel o movimento revolucionário dos zelotes havia sido desmantelado. Jerusalém e o templo estavam completamente destruídos. Entre as lideranças da comunidade de Marços circulava a interminável e cansativa luta pelo poder. Muitos queriam uma comunidade mais triunfalista, espiritualizada e hierarquicamente estruturada, e dessa maneira separada dos problemas que são a vida cotidiana. Outros estavam perdidos na passividade do terror. Enquanto alguns poucos ainda pleiteavam ações guerrilheiras. Para Marcos, no entanto, a alternativa estava explícita: era somente através da prática dos crentes (assim como a prática dos estudantes da nossa estória) que às Boas Novas trazidas pela vida e pelo ensinamentos de Cristo iriam se tornar ou um conjunto de dogmas anacrónicos ou poder capaz de manter vivos os sonhos de uma humanidade recriada no rosto de uma comunidade a partir das margens de sistemas necrofílicos.
Marcos apresenta Jesus como um ser eminentemente histórico. Ele não está interessado em defender qualquer concepção divina de Jesus. Que é descrito como um carpinteiro vindo de Nazaré (Mc 6.1-6) e que foi apresentado por Deus como Messias. À última tentação de Cristo, de Martin Scorcese, também enfoca a vida de Jesus nessa perspectiva. O Jesus de Marcos não quer as pessoas penduradas nele. Quer vê-las independentes, perdidas na noite.
Ó geração incrédula, até quando vos sofrerei? (Mc 9.19.) Jesus não idealiza os feios, sujos e malvados que o cercam. É cansativo lidar com a espécie humana tão desapropriada de pão, relação, sonho. Quanto tempo haverá de ser necessário para que consigam reconhecer-se, gostar-se e lutar pelo que vêem? … Talvez o espaço da vida. Mesmo assim, ele continuava jogando de volta às pessoas a possibilidade de enunciar maravilhas, de pro-curar, de curar, de trazer à tona suas fantasias, celebrando algum carnaval no dia-a-dia. É, por exemplo, o trabalho solidário dos amigos que tira a vida da paralisia em Mc 2.1-12. É para o pai, que junto com a multidão traz seu filho (que desde criança é jogado no fogo e na água pelo poderes da morte) para ser curado, que Jesus diz: “ Tu podes! Tudo é possível ao que crê! (Mc 9.23.)
Jesus não percorria aqueles sertões para ser seguido. Ele não queria desapropriar as pessoas do restante de sua força imaginária, fantástica. Pelo contrário. Jesus estava entre elas justamente para ajudá-las a des-cobrir suas próprias forças, capacidades, suas e nossas infinitas possibilidades de reconstruir a vida. O Messias afirmava que somos os braços, as pernas, o coração de Deus no mundo… Que seria da cascata sem as gotas d'água? Que seria de Deus sem cada um de nós e sem todos nós? E por graça temos manifesto que Deus se revela neste exato tempo e espaço por fé. E fé é a linguagem do desejo.
Para Marcos é nessa ambígua região, entre o desejo e a impotência, que nossa humanidade se desnuda frente a Deus. E grita: Eu creio. Ajuda-me na minha falta de fé! (Mc 9.24.) Ou se cala e se escandaliza, não querendo reconhecer a si própria como carpinteira do maravilhoso (Mc 6.3)
3. Alegoria: exposição de um pensamento sob forma figurada (Aurélio)
A estória começa com a partida. Jesus está a caminho, on the road. O espaço é sempre passagem. Os discípulos o acompanham. Dependem de sua sombra. Agora Jesus vai para sua terra natal. Mas volta a caminho, de passagem. Para rever rostos, lugares, memórias de um tempo que já foi. Coisa do pretérito imperfeito. A ação conjugada nesse tempo verbal é passada, imóvel, mas é sentida como viva. É o tempo da saudade. Deus sente saudades? Parece. Aparenta. Visita os parentes. E multidões não vêm ao seu encontro (v. 1).
A vida na terra natal obedece aos rituais. No sábado Jesus vai à sinagoga. Os rituais dão identidade à anomia. Lá o mestre ensina, recita seus poemas. A ponto de muitos se maravilharem ouvindo o mundo recriado pelas palavras do desejo. Mas não; se deixaram encantar. Contemplam muito pouco. Querem logo entender. Não exclamam. Perguntam. Querem classificar aquela sabedoria dos desertos, descobrir sua origem e racionalmente explicar) seus feitos. Quê? Donde? Como? (V. 2.) … Recordo um poema do Fernando Pessoa:
Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia alguma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
São muitos os que fazem essas perguntas. Não só os bandidos, os fariseus. Na terra natal, na sinagoga, no espaço da família os desejos são logo trancados na impotência daquilo que se concebe como sendo real. Os ouvidos ouvem maravilhas. Mas os olhos se negam a ver maravilhas. Ficam na superfície. Cobrem o maravilhoso com seus próprios limites, preconceitos, medos. Então os olhos somente enxergam a si próprios, nem mesmo ao avesso como no espelho. Diante deles, pois, está um carpinteiro que fala maravilhas e cuja casa é bem ali ao lado. Isso não pode ser. É ilógico. É impossível. Deve ser uma farsa. Os olhares dos muitos rejeitam o que vêem. Nem mesmo arriscam fechar-se para, quem sabe, viajar naquelas palavras maravilhosas. Em Jesus veem a si próprios, suas histórias de construir vidas, casas, famílias. Não querem isso. Mas estão certos de que maravilhas só podem vir do distinto, de dentro de televisores coloridos. E escandalizavam-se nele. Porque eram incapazes de perceber que eram eles próprios que em Jesus falavam maravilhas. Messianismo não acontece dentro de paredes institucionais. São os sem-terra, os sem-lar, os exilados que recriam o mundo por suas palavras fantásticas. Os muitos dentro da sinagoga não enxergam nada além da sua histórica impotência, dependência de pai, patrão ou deus infinitamente distinto. Não conseguem celebrar a si próprios. Destituídos do poder de dar nome aos seus desejos, vão aos rituais mendigar imagens do passado para continuarem morrendo mais devagar. Gente de pouca fé. Quer dizer, gente que não se permite falar a linguagem do desejo (v. 3).
O divino é a revelação do desejo. Desejo de uma criança, de um espaço, de um amor, de um tempo eterno. O profeta é um proclamador e/ou intérprete da revelação divina (Bauer, p. 723.) Jesus continua olhando para os muitos que gostam de ouvir maravilhas, mas que não crêem naquilo que seus olhos vêem: que são eles próprios que falam maravilhas. Jesus não xinga, não grita, só lhes diz o que fica evidente em toda essa história: com ou sem honra, existem profetas. E profetas são honrados, reconhecidos, estimados, celebrados, mas não na sua terra natal, entre seus parentes, na sua casa. O profeta abandona essas presenças. Ele vai pelos desertos ao encontro das ausências, as incorpora, e as traz de volta em palavras poéticas, maravilhosas. Mas as pessoas querem consumi-las e não vivê-las. Ainda mais quando elas vêm como em Jesus, fantasiadas de lixo, de serragem, num corpo migrante. Não, definitivamente, não é alguém assim que pode alegar, alegrar que não há por que ter medo de ser feliz. E assim Jesus não pode ali fazer nenhum milagre. Não pode justamente porque os muitos não têm fé, são incapazes de acariciar suas feridas, de trazer ao altar suas possessões, de carregar suas paralisias, de gritar suas mortes. Preferem o aconchego e a certeza da impotência, não saindo de casa, da sinagoga, da terra natal que habitam dentro de si. São seres para quem sobreviver basta. São incapazes de reconhecer que a possibilidade do maravilhoso está na frente deles, em Jesus, neles mesmos, tão perto de casa, basta abrir a janela, de fora para dentro (vv. 4,5).
Desta feita não são as multidões que se admiram dos feitos de Jesus (Mc 2.12). É Jesus que se admira da incredulidade de muitos. Não há por que ficar. Tão perto de casa e o sentimento de estar tão distante. E o mestre segue adiante, como sempre, a caminho, ensinando em outras aldeias. Pois em qualquer aldeia vivem as terras natais, as casas, as famílias, os desertos, os desejos e o maravilhoso (v, 6).
Para essa alegoria, parábola, essa história da volta de Jesus pra terra natal vale o mesmo que Allen Ginsberg diz sobre as andanças das palavras de Gregory Corso: Nós seremos os condenados das parábolas se escutarmos com desprezo. Então, mais uma poesia paralela de Corso:
De pé na luz fraca da rua escura
olho para minha janela no alto, foi lá que nasci.
As luzes estão acesas; outras pessoas se movimentam ali.
Vestido com capa de chuva, cigarro na boca,
chapéu caído nos olhos, a mão na arma.
Atravesso a rua e entro no prédio.
As latas de lixo não pararam de cheirar mal.
Subo o primeiro lance de escadas;
Lóbulos-Sujos me ameaça com sua faca…
Eu lhe despejo uma torrente de relógios esquecidos.
4. Bibliografia
BAUER, Walter. A Greek-English Lexicon of the New Testament. Chicago, The University of Chicago Press, 1979.
CORSO, Gregory. Gasolina & Lady Vestal. Porto Alegre, L&PM, 1985.
PESSOA, Fernando. O Eu Profundo e os Outros Eus. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1980.