Prédica: 1 Coríntios 15.12,16-20
Leituras: Jeremias 17.5-8 e Lucas 6.17-26
Autor: Osmar Zizemer
Data Litúrgica: 6º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 16/02/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII
l. Considerações iniciais e delimitação
A escolha de l Co 15 como texto pregação para o 6° Domingo após Epifania (= Septuagesimae) surpreende um pouco. Pois o assunto central deste título todo é a ressurreição. E por isto as diversas subunidades deste título tradicionalmente têm servido como texto de pregação para o dia da Páscoa1. Confesso que ignoro os motivos, por que o lecionário ecumênico — agora também adotado pela IECLB — sugere este texto tão claramente ligado ao tema da Páscoa para este domingo. Como, porém, cada domingo é dia de Cristo, penso que este texto também é pregável fora do ciclo da Páscoa.
Já a delimitação do texto é um pouco complicada. Em si, a impressão do texto grego2 sugere como subunidade l Co 15.12-19. Enquanto isto a ordem de perícopes alemã — também adotada pela IECLB até há pouco — divide o texto em l Co 15.1-20 e l Co 15.19-28. Também as edições correntes em língua portuguesa não coincidem quanto à divisão das perícopes: Almeida subdivide assim: l Co 15.1 l9, 20-28,29-34 etc.; A Bíblia de Jerusalém divide assim: l Co 15.1-34; A Bíblia na Linguagem de Hoje subdivide da seguinte maneira: l Co 15.1-11, 12-34, 35ss.
Apesar da falta de um critério de subdivisão com larga aceitação na literatura, penso que a delimitação proposta para a perícope pode ser aceita. Pois, por um lado, o v. 12, de fato, inicia um novo assunto. Após ter realizado a demonstração histórica da ressurreição de Cristo nos vv. 1-11, Paulo inicia a sua polêmica com sons adversários de Corinto com o v. 12, citando a tese dos mesmos, e questionando-a a partir do que acabara de expor na unidade anterior.
O lecionário ecumênico a seguir propõe que se desconsidere os vv. 13-15, e se retome a perícope no v. 16. Esta exclusão é viável, sem que haja perda substancial no conteúdo de argumentação. Pois o v. 16 repete o argumento do v. 13: o v. 17 repete o argumento do v. 14, ampliando-o. Apenas o argumento de que Paulo seria falsa testemunha de Deus do v. 15 não é retomado nos versículos seguintes.
Embora o v. 20 contenha uma tese até certo ponto independente da argumentação anterior e encaminhe para a argumentação tipológica (Adão — Cristo), que segue, é importante que este versículo seja incluído e faça parte de nossa perícope, pois nele o apóstolo justapõe a tese por ele defendida à tese de seus adversários, e acentua mais uma vez a realidade da ressurreição de mortos, por ele levantada anteriormente.
Resumindo, defendemos a perícope nos limites propostos pelo lecionário, em bora não tenhamos encontrado tal divisão na literatura que tínhamos em mãos.
2. Análise de detalhes
V. 12: Neste versículo inicial Paulo chega a falar da tese defendida por seus adversários em Corinto: não há ressurreição de mortos! O apóstolo acabara de reafirmar a realidade histórica da ressurreição de Cristo, usando para isto o tradicional querigma de Páscoa (vv. 3-5), e ampliando-o com a citação de um número maior de testemunhas oculares, que tiveram um encontro com o ressurreto (vv. 6-8). Agora ele retoma esta verdade e pergunta: Como, então, afirmam alguns dentre vós que não há ressurreição de mortos?
Aparentemente os adversários de Paulo aqui não questionavam a ressurreição de Cristo. Apenas negavam a ressurreição dos mortos em geral! Como chegaram a esta afirmação? É difícil dizê-lo ao certo. Seriam eles defensores da tese da imortalidade da alma? E a partir daí defenderiam a morte como libertação da mesma do corpo mortal — não sendo mais necessária a ressurreição? Ou criam que a ressurreição já acontecera no momento em que receberam o Espírito Santo (cf. 2 Tm 2.18)? Não o sabemos ao certo. A primeira carta aos Coríntios como um todo dá a impressão de que se trata de grupos gnóstico-entusiastas, que tenderiam mais para esta última possibilidade. Seja lá como for: eles afirmavam que não há ressurreição de mortos.
Vv. 16-18: Nestes versículos Paulo toma o argumento dos seus adversários, e procura mostrar-lhes como é absurda a sua posição, deduzindo-lhes quais seriam as consequências desta tese para outros aspectos da fé cristã: Se não há ressurreição de mortos, então:
a) também Cristo não ressuscitou (e ele acabara de reafirmar a realidade da ressurreição de Cristo mediante testemunhas arroladas);
b) é vã (mataios = vazio de conteúdo; sem proveito, sem utilidade, sem efeito) a vossa fé.
c) ainda permaneceis nos vossos pecados;
d) os que dormiram (= morreram) em Cristo, i. é, os que morreram na fé cristã, pereceram, estão perdidos diante de Deus ( cf. v. 3b = Cristo morreu pelos nossos pecados).
É interessante observar que Paulo aqui faz uma ligação estreita entre a ressurreição de Cristo e a libertação dos pecados! Esta ligação não é tão explícita no querígma pré-paulino, de que o apóstolo fez uso na argumentação da unidade anterior: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, (…) foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. (Vv. 3 e 4.) Mas também ali está presente implicitamente esta unidade entre a cruz e a ressurreição. A cruz de Jesus e libertação dos pecados formam uma unidade à medida em que esta libertação só se torna real com a ressurreição de Cristo (Rm 6.3ss.; 8.3s.,12s.; 7.5s.; Cl 2.12ss.). Porque Cristo é o ressurreto, e, só por isto, a sua morte é morte pelos nossos pecados (Rm 4.24s.). Fé em Jesus, sem ressurreição é vazia de conteúdo, sem utilidade e sem efeito.
V. 19: Neste versículo há uma dificuldade de interpretação: a que se refere o termo apenas/somente (monon)? A esta vida? Neste caso o versículo diz que a nossa esperança/esperança cristã não se restringe, e nem pode restringir-se, apenas à vida terrena. Ou o termo apenas se refere à esperança (elpikotes)? Neste caso a frase diz que a fé cristã nesta vida não pode e nem deve restringir-se à esperança apenas. Dentre as diversas versões da Bíblia consultadas, a Züricher Bibel relaciona este apenas à esperança. Todas as demais versões relacionam-no a esta vida. Parece-nos que gramaticalmente este problema não pode ser resolvido. Mas, levando-se em conta todo o contexto, que fala da ressurreição de mortos e da ressurreição de Cristo, parece-nos mais provável que apenas se refere a esta vida. Mas esta leitura aponta para uma esperança passiva, alienada da realidade desta vida! Não, o termo “esperança(= elpis), entendido biblicamente, implica ambas as coisas: a visão para o futuro, que sabe da necessidade da intervenção de Deus para a instalação definitiva do Reino — e, portanto, conhece e reconhece a limitação humana (o ainda não); e o olhar para o presente, que sabe do irrompimento do Reino para dentro deste mundo em Jesus Cristo e do comprometimento ativo de seus seguidores na construção dos sinais de seu senhorio (o já agora).
Paulo, portanto, afirma que, se nossa esperança se restringe a esta vida — não tendo esperança na ressurreição, portanto — nós somos os mais infelizes dos homens, como traduzem Almeida e a Bíblia na Linguagem de Hoje. A Bíblia de Jerusalém é mais precisa ao traduzir: os mais dignos de compaixão. Mas esta expressão (cleeinoteroi panton anthropon)não significa que aqueles que esperam apenas nesta vida sejam os mais merecedores da compaixão de Cristo; pelo contrário, eles merecem o seu juízo (Mc 3.29). E por isso são dignos da compaixão dos homens. Portanto, apenas a certeza da ressurreição faz da fé dos cristãos uma fé verdadeiramente cristã, uma fé plena, não vã (contrária à descrita no v. 17 (= mataios). É a fé cristã, entendida como existência entre o já agora que nos compromete com esta vida, e o ainda não, que transcende as possibilidades humanas, passa a ter um sentido pleno.
V. 20: Neste versículo Paulo justapõe a sua tese à tese dos seus adversários: Cristo foi ressuscitado de entre os mortos como as primícias dos que dormem. A ressurreição de Cristo por Deus é para Paulo um fato inquestionável (e possivelmente também seus adversários não a questionavam). Mas ela não é um fato isolado do passado! Ele é a primícia dos que dormem. E sendo a primícia (aparche), ele traz em si a garantia da ressurreição dos demais mortos. O novo mundo de Deus, a vida eterna já irrompeu neste mundo através de sua ressurreição. Mas ao mesmo tempo é importante que, se ele é a primícia dos que dormem, a ressurreição dos mortos — e, portanto, a plenitude do Reino — ainda está por acontecer, é evento do futuro, é objeto da esperança dos cristãos (v. 19).
3. Escopo
A ressurreição de Cristo nos dá a certeza da ressurreição de mortos e, portanto, também de nossa ressurreição. Por isso a nossa esperança em Cristo não se restringe apenas a esta vida, mas se estende também à ressurreição e à vida eterna.
4. Meditando rumo à prédica
Não podemos, sem mais nem menos, identificar a posição dos leitores de Paulo em Corinto (seus adversários), com a/as posição/ões dos ouvintes de nossas pregações de hoje no que se refere à compreensão de vida, de morte c de ressonei cão. Existe toda uma distância histórica social, cultural e religiosa que separa os coríntios de século I dos latino-americanos e brasileiros do século XX. Por isto é necessário tipificar primeiro a atitude de fé dos ouvintes de hoje em relação à ressurreição de Cristo e dos mortos, para só então chegar a refletir sobre possíveis passos de pregação para o nosso texto.
Quando lemos meditações de autores do Primeiro Mundo, percebemos de imediato que eles têm em vista o homem e o mundo secularizado. Por isto encontramos nelas afirmações como: ressuscitou para dentro do querigma, vive. em sua mensagem, etc.
No Brasil e na América Latina em geral, não vivemos num mundo essencialmente secularizado, mas sim num mundo profundamente religioso! Isto não quer dizer que não haja pessoas secularizadas em nosso subcontinente. Elas existem, sem dúvida. Mas elas dificilmente estarão entre os ouvintes de uma pregação. A grande maioria das pessoas latino-americanas são profundamente religiosas. Na minha atividade pastoral dificilmente ouço alguém dizer que não crê no além, numa vida pós-morte, ou pelo menos na possibilidade da mesma! Ou as pessoas crêem na ressurreição dos mortos e no juízo final; ou então elas crêem na imortalidade da alma; ou então crêem na reencarnação — as regressões parapsicológicas a supostas vidas pregressas estão em alta! — ou então crêem em tudo isto simultaneamente, lenho senti¬do que as pessoas estão profundamente confusas.
Talvez o nosso texto seja uma boa oportunidade para nos acercar com a comunidade do testemunho bíblico: ressurreição dos mortos significa nova vida, recriada por Deus, em continuidade — apesar da descontinuidade — de nossa existência pessoal! O testemunho evangélico não é o da imortalidade da alma (onde então ressurreição do corpo significaria apenas que Deus daria um novo corpo imortal à alma que sobrevivera à morte), nem o da reencarnação, mas o da ressurreição dos mortos!
Um outro aspecto de posicionamento antagônico que se percebe, mesmo entre aqueles que parecem ter mais clareza quanto à ressurreição de Cristo — e dos crentes — é quanto às consequências que se tiram dela para a vida pessoal, social e comunitária:
— Há os que concentram, e praticamente exclusivizam as consequências para esta vida. Deus credenciou, conforme esta linha, a proposta de Jesus pela sua ressurreição. Logo o desafio para seus seguidores é o de concretizar aqui e agora o projeto de Jesus (linha mais social).
— Há os que afirmam: Nossa esperança está no porvir, no céu. O que acontece até lá não interessa decisivamente (linha mais espiritual).
O nosso texto propõe um meio termo no v. 19! Nem só esperança em Cristo na vida presente, nem só esperança na ressurreição e na vida eterna!
Pensamos que este texto, a partir desta reflexão, oferece duas possibilidades de pregação:
a) Concentrar a pregação no v. 19.
b) Procurar abranger o texto todo.
Pessoalmente nos decidimos por procurar abranger o texto todo. E seguindo esta decisão, propomos os seguintes passos para a prédica:
5. Passos da prédica
1. Como as pessoas se posicionam frente à morte, ressurreição, imortalidade', reencarnação? O que significa cada um destes modelos?
2. O que nós cremos a este respeito? — Recorrer aos 2° e 3° Artigos do Credo Apostólico, que acabamos de confessar.
3. Fazer uma homilia do texto, acentuando os pontos comuns aos 2° e 3º. Artigos do Credo Apostólico.
4. Que significa esta fé para nós: a) para nosso engajamento pessoal e comunitário-eclesiástico na vida social e política desta vida? b) para os nossos fracassos humanos no plano pessoal e comunitário-eclesiástico?
6. Subsídios litúrgicos
1.Confissão de pecados: Bondoso Deus e Pai. Através da vida, morte e ressurreição de teu Filho Jesus Cristo nos deste o perdão dos pecados, e nos despertaste para o discipulado e a esperança de nossa própria ressurreição para a vida eterna. No entanto temos de confessar-te humildemente: Ainda não estamos verdadeiramente livres dos pecados. Sempre caímos e carecemos de teu perdão. Caímos no peca do de nos considerar fortes o suficiente para construir o teu Reino aqui na terra com as próprias mãos, e procuramos a culpa pela não realização do mesmo nos outros. Ou caímos no pecado de culpar-te pelas mazelas deste mundo e de cruzar os braços, esperando tudo por ti. Perdoa-nos, Senhor, e fortalece a nossa fé. Dá-nos clareza para vermos o que podemos e devemos realizar no teu discipulado, e dá-nos humildade de reconhecer o que devemos esperar por ti. Tem piedade de nós, Senhor.
2. Oração de coleta: Agradecemos-te, bondoso Deus, por nos reunires em torno de tua Palavra. Dá-nos disposição para compreendê-la. Dirige a nossa fé para o centro do teu Evangelho. Dá-nos percepção clara do mesmo, e um coração aqueci¬do pelo teu Espírito Santo, para chegarmos a teu Filho Jesus Cristo e vivermos a verdadeira e única fé. Amén.
3. Assuntos para a intercessão final: a. As pessoas aturdidas e preocupadas com seu passado (existências passadas) e futuro, b. Pessoas em dúvidas de fé, e sem esperança, nem no presente, nem no futuro, c. Pessoas que não têm a humildade de reconhecer a sua limitação, a limitação
humana e o pecado.
7. Bibliografia
CULLMANN, Oscar -Unsterblichkeit der Seele oder Auferstehung der Toten? Kreuz-Verlag, Stuttgart/Berlin, 2a edição, 1963.
LIETZMANN, Hans — An die Korinther I/II, série Handbuch züm Neuen Testament 9; J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), Tübingen, 5a ed. ampliada, 1969.
VOIGT, Hans — Die Neue Kreatur — Homiletische Auslegung der Predigttexte der Reine IV, 3a ed. revisada; Vandenhoeck & Ruprecht, 1968.
WENDLAND, Heinz Dietrich — Die Briefe an die Korinther, série NTD. Diversos Autores — Proclamar Libertação XIII, p. 29ss.; Proclamar Libertação IX, p.207ss.; Proclamar Libertação XV, p. 207ss.
8. Notas
1 Ora l Co 15.1-20 é texto de prédica de Páscoa (conf. PL III, 13ss., XIII, 29ss.), ora l Co 15.19-28 é texto de prédica de Páscoa (conf. PL I,16ss.; IX, 207ss.; XV, 207ss.).
2 Confira NESTLE-ALAND — Novum Testamentum Graece, 26a edição.