Prédica: 1 Coríntios 15.45-49
Leituras: Gênesis 45.3-8a,15 e Lucas 6.27-38
Autor: Nestor Paulo Friedrich
Data Litúrgica: 7º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 23/02/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII
1. Introdução
Paulo inicia sua polêmica com os fortes, sábios e de nobre nascimento da comunidade de Corinto mostrando para o centro de sua pregação, isto é, o Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios (1.23). No v. 27, afirma com igual força que Deus escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar os fortes (v. 27). A polêmica de Paulo é com o grupo minoritário, mas dominante da comunidade. Eles já estão fartos, ricos. Já estão no céu. Já ressuscitaram.
Em Corinto atuam entusiastas, que antecipam no espírito uma Ressurreição universal. Eles ensinam: anastasis ede gegonesai, 'a ressurreição já se realizou' (cf. 2 Tm 2.18; 2 Ts 2.2). Com truques eles omitem em seu entusiasmo o fato de que o Jesus terreno ressuscitou como apache, primícias, e foi transferido para o futuro de Deus como tempo de Deus. Seduzidos pela certeza fictícia da nova era, eles, como salvos, identificam-se com o Espírito-Salvador que não tem mais ligação alguma com o mundo. Eles negam qualquer compromisso ético na terra e bagatelizam a realidade da morte. (Schoenborn, pp. 177-178.)
A comunidade de Corinto vive uma profunda crise. Esta atinge o centro d;i fé cristã. No capítulo 15 isto se reflete nas seguintes questões: 1) v. 12 — alguns afirmam que não há ressurreição dos mortos; 2) v. 34 — alguns ignoram tudo e, 3) v. 35 — alguém dirá: como ressuscitam os mortos? Com que corpo? Os coríntios depreciam o físico em relação ao pneuma, no sentido do dualismo helenista. (…) Para Paulo, porém, o corpo não é 'prisão' do Espírito, mas antes seu 'templo' (l Co 6.19). O culto se realiza nele e com ele (Rm 12.1), pois o corpo possibilita ação histórica e comunicação pessoal. (…)Os pneumáticos de Corinto, porém, consideram-no desprezível (Goppelt, pp. 391-392).
Dentro desta perspectiva, qual é o meu compromisso com o próximo? Com a realidade que me cerca? O problema todo desta cosmovisão grega, dualista, que separa corpo e alma, espírito e matéria está nas consequências éticas. Este dualismo está presente nas filosofias gregas, religiões dos mistérios e sistemas gnósticos. Este dualismo, contudo, não é só uma questão de ideia, cabeça, mas se reflete concretamente na sociedade. O dualismo é a ideologia que sustenta todo o sistema sócio-econômico e político. Em termos de organização social isto significa que a matéria corresponde a tudo o que é ruim, os analfabetos, ignorantes, trabalho manual, os que são do mundo da matéria, por isso devem trabalhar e obedecer. De outro lado, à alma/espírito corresponde tudo o que é bom, os inteligentes, sábios, doutores, autoridades. Estes são do mundo do espírito, por isso devem mandar e dirigir.
Ora, esta ideologia sustenta, legitima e mantém toda uma realidade de opressão, marginalização, o que também se reflete na comunidade de Corinto. Um exemplo desta realidade é a celebração da santa ceia (cap. 11).
Neste contexto, a proclamação da ressurreição tem consequências sociais muito grandes. A Boa-Nova da ressurreição é para a grande maioria marginalizada da comunidade uma questão de vida, de ser! Para a minoria dominante não significa nada, já estão fartos, ricos, já reinam, apenas os confirma em seu status quo. Eles já existem! A ressurreição coloca como desafio a transformação do que não vale nada em ser algo, em existir. A ressurreição da qual Paulo fala não é só da alma, mas integral, do espírito e matéria, corpo e alma. Esta fé não autoriza a discriminação, mas coloca em pé de igualdade a todos.
Que significa tudo isto? Significa que o corpo semeado na corrupção, desonra, fraqueza, ressuscita na incorrupção, glória e poder. Conforme Rubeax, em l Co 1.1-31, os grupos sociais na comunidade refletem o mesmo vocabulário, especialmente os vv. 26-31. Nesta relação a mensagem da ressurreição de Paulo é revolucionária. Assim como se transformam o corpo humano na ressurreição, assim se deve transformar a relação social na comunidade como sinal da fé na ressurreição, pois a semente da mesma já está semeada na comunidade.
2. Texto
V. 45 — Quando o apóstolo Paulo fala em alma vivente, não pensa em termos dualistas, mas no termo correspondente do AT néfesh. Néfesh é a força da vida, a própria vida. A alma faz parte da vida terrena. O pneuma é um poder! Este poder dá liberdade, dá vida, abre a perspectiva do futuro. Cristo, o segundo Adão, é Espírito vivificante, que dá vida! Receber este espírito é estar sobre a graça e o amor de Cristo (Rm 5.2). O pneuma é o poder que toma conta da totalidade do homem, corpo e alma. Ao contrário do pensamento gnóstico, o primeiro Adão e o segundo Adão não são consubstanciais. A alma não pertence à esfera divina, nem é uma centelha divina soterrada na matéria, no corpo.
O espírito vivificante age no presente (particípio presente) nas pessoas, como sinal da libertação futura (2 Co 3.6,17ss.; 4.8ss.; 5.5,17; Rm 8.23). Nele está dado o penhor para a continuidade entre o presente e o futuro. Os coríntios perderam esta perspectiva. A dimensão escatológica e as consequências da presença do espírito vivificante perderam-se de vista.
O crucificado em sua existência espiritual é também espírito vivificante (15.22). A existência dos cristãos, sua ressurreição, não é fato consumado como o entendiam os coríntios. A morte ainda não foi vencida (v. 26). Contudo, no espírito a ressurreição de Jesus se torna atuante no presente (Rm 8.9-11; 2 Co 6.3,17). Conforme Karl Barth, o segundo Adão, que em l Co 15.45 é contraposto ao primeiro Adão, tanto nessa passagem, quanto em Rm 5.12, é indubitavelmente idêntico com o novo ser humano como também com Jesus Cristo. O novo ser humano é a criatura grata para com Deus. Sua justiça e santidade é a resposta à graça de Deus (Col 3.12; Ef 6. 10ss.).
Vv. 46-48 — Paulo corrige a ordem. Não primeiro o espiritual, mas o natural. O mas procura alertar para o perigo da supervalorização do espírito em detrimento do corpo. No v. 47 Paulo aprofunda sua reflexão quando se apóia em Cl 2.7. O primeiro Adão é terreno, do pó, é mortal. A mortalidade é ressaltada. Enquanto que o segundo Adão é do céu. Em seu entusiasmo, o grupo em Corinto não consegue perceber para além de sua realidade terrena (vv. 16-19). Não percebem o novo homem de Deus revelado em Cristo pela ressurreição. Paulo procura mostrar que a plenitude está no futuro. Paulo mostra para sua própria vida ao mencionar seu intenso trabalho (v. 10), sua exposição aos perigos (v. 30), sua luta com feras (v. 32) que a ressurreição ainda não aconteceu. Os inimigos ainda estão aí (vv. 24 e 26). O poder vivificante do Cristo ressurreto age e se traduz num andar em novidade de vi da (Rm 6.4), o corpo já não é mais desprezível, mas templo do espírito (6.17ss.). Os cristãos, dado o seu relacionamento com Cristo, já não serão só terrenos, mas também celestiais.
V. 49 — Questão difícil neste versículo é a segunda parte onde há possibilidades de traduções diferentes. Uma seria seremos semelhantes ou traremos a imagem do celestial, o que é apoiado pelo Códice Vaticano e outros. Outra seria devemos trazer a imagem ou tragamos, o que é apoiado por muitos textos antigos. Esta última alternativa seria uma exortação ética. Paulo estaria dizendo que o ser celestial está ao alcance de nossas mãos, o que contradiz o acima exposto. Por enquanto, só existe um ser celestial, Cristo. Se as pessoas até agora foram marcadas e trouxeram a imagem do primeiro Adão, com a ressurreição serão cheios do espírito do ser de Cristo. (Wolff, p. 204).
3. Reflexões
Fatos da vida:
1. Um grupo de cerca de meia dúzia de homens, alguns com uns livros debaixo dos braços ou entre as pernas, esmurrava e dava pontapés num homem de mais ou menos sessenta anos, que, encurralado junto a uma banca, estava com o rosto cheio de ferimentos que sangravam. Em determinado momento o velho conseguiu desvencilhar-se e na ânsia da fuga, deu uma cabeçada na boca de um homem atarracado que liderava o grupo de agressores. Isso desencadeou uma fúria redobrada, pois a seguir, o velho foi lançado ao solo, pisoteado e recebeu vários chutes na cabeça e no estômago. Um deles calcou-lhe a garganta com o pé, tentando esganá-lo.
Mais incrível ainda é que os livros que os agressores portavam eram bíblias e hinários… (Folha de São Paulo, 13.04.1984.)
2. Eu gostaria que a bíblia fosse compreendida e exposta num ângulo mais espiritual, depois material. A igreja se esqueceu da alma. Em vez de se preocupar com as coisas da realidade, política, deveria olhar mais para o interior, (aluna, 1° ano 2° grau)
3. Recessão vai afetar saúde mental do povo. O problema da falta de dinheiro atinge principalmente o sistema nervoso das mulheres (…) nos homens há incidência assustadora de alcoolismo (…) o casamento passa a ser um fardo. (Zero Hora, 21.12.1990.)
Os fatos da vida mostram para a separação entre fé e vida. O concreto, a matéria, o corpo, o mundo, o que provoca o sofrimento é visto com aversão, de forma negativa. O que é real traz problemas! Compromete! É preferível a ilusão, a fuga, o milagre!
Esta postura é conveniente! Não compromete! É até simpática, principalmente se o presbitério é composto por pessoas socialmente bem estabelecidas e comprometidas com a ideologia da sociedade. Paulo tem razão, o Cristo crucificado é loucura, escândalo!
Paulo puxa os coríntios já no céu de volta à realidade. Confronta-os com o Cristo crucificado. A cruz de Cristo se volta contra toda a ilusão religiosa, e remete o homem à sua humanidade (E. Kaesemann). Para Paulo, aquele que foi morto é também aquele que vive, que dá vida, que age no ser humano!
Ali onde perdemos a dimensão da cruz de Cristo, isto é, de sua concreticidade, crueldade, materialidade, realismo, historicidade, opção pela vida em pobreza, pelo fraco, marginalizado, doente, faminto, corremos o risco de transformar a fé em algo puramente intelectual, sem implicações para o hoje. Ali a cruz é abafada. Onde só se fala em vitória, já estou salvo, já estou no céu, a sexta-feira santa de cada dia não é mais levada em conta. Fé transforma-se em ópio, comodismo, não há mais nada a fazer, nem mesmo por que lutar e sofrer. Fé e vida passam a ser coisas distintas.
O discipulado sob a cruz de Cristo na perspectiva da ressurreição aponta para nossa proximidade com o sofrimento. Tem em vistas o ser humano todo. O espírito vivificante do Cristo ressurreto nos ensina o aprender a dar, a servir, nos coloca ao encontro dos que sofrem, nos motiva a sermos solidários assim como Cristo o foi. A cruz de Cristo é sinal de auto-entrega e amor. Esta dimensão não existe ali onde tudo é vitória, onde já estou no céu.
l Co 15.45-49 é forte crítica a uma prática de fé voltada apenas para o meu grupinho, separada da realidade da vida, do próximo, da própria comunidade. Nosso texto tem em vista o ser humano todo. O espírito vivificante age no presente na vida das pessoas como o espírito que dá vida, que transforma o que não vale nada em alguém! Paulo desafia a abrir os olhos para a realidade de discriminação, marginalização que acontecia dentro da própria comunidade. A nova pessoa em Cristo vive de sua graça. Seu corpo é instrumento de ação histórica. Não é desprezível como o entendiam os coríntios. Mas é instrumento do amor de Deus, o serviço ao próximo no mundo!
4. Pistas para a prédica
1. Contextualizar o texto. Contar um pouco sobre a realidade da comunidade. Dualismo e seus reflexos na sociedade.
2. Fatos da vida.
3. O ressurreto age como espírito vivificante, que dá vida! Somos instrumentos desta vida! O fazemos sob a cruz de Cristo que abre nossos olhos para as cruzes de nossa realidade, ao mesmo tempo que nos lembra do amor e serviço de Jesus por todos nós.
5. Bibliografia
Ata do Curso Intensivo do CEBI. 1989. Tema; 1 Coríntios (assessor: Francisco Rubeaux).
GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. Vol. 2, São Leopoldo/Petrópolis, Vozes/Sinodal, 1982.
HOEFELMANN, V. Corinto: Contradições e conflitos de uma comunidade urbana. In: Sociologia das Comunidades Paulinas (Estudos Bíblicos, n° 25), Petrópolis,Vozes, 1990, pp. 21-33.
SCHOENBORN, U. Fé entre história e experiência. São Leopoldo, Ed. Sinodal, 1982.
WOLFF, C. Der erste Bríef des Paulus an die Korínther, Zweiter Teil 7/II., Evangelische Verlagsanstalt Berlin, 1982.